A despedida do poeta

Já cessara no oeste o canto ríspido
Do nigérrimo corvo sobre as tulipas
Ao rebentar a luz fria do crepúsculo
Entre as nuvens de uma tarde fúlgida
Em silenciosas lágrimas insípidas.

Calou-se em minhas mãos a poesia,
Filha primogênita de teus versos,
Na angústia de um canto insólito
De um sentimento incógnito e avesso,
Dissolveram-se minhas canções em agonia

Não permitirei que se alimente o verme
Da perda anatômica do irmão amado,
Carregar-te-ei no peito aos confins da terra
Para que a miserável ânsia dum verme desgraçado
Não te definhe aos meus olhos a epiderme!

Abençoar-te-á, glorioso irmão, a ínfima luz da lua
Saciarei minha sede com tuas palavras céticas
Na esperança de libertar-me a poesia paralítica
Declamarei taciturno aos desertos a elegia
Em frígidos vocábulos e náuseas epiléticas
Ao poeta que, quando infante, abracei outrora
E fora covardemente extinto pela pneumonia!

O espelho - Capítulo 12: A Revelação

David, ao despertar, não possuía mais ao seu lado a companhia dos anjos que o resguardavam. Estava recolhido ao seu próprio corpo, coberto pelo vento, pela calmaria. Banhado pelas estrelas. E pela Lua. Outrora, não faz muito tempo, a Lua banhava-se submersa às águas dos rios. Toda criatura voltara-se para as águas, exaltando a beleza da Rainha. Rainha que vence as trevas, banhando-a de luz. Flores. Estrelas. A noite. Todos os astros. Todas as flores. Todo o Universo voltou-se, naquela noite, para o planeta Terra, que tivera honrosamente o prazer de receber a Lua em seus braços. Em suas águas abençoadas. Todavia, a Lua já se estendera ao céu, coberta por seu manto negro, coroada de estrelas. Desejava David deitar novamente em seu colo. Em sua estufa de carinho materno.

David seguiu viagem, reverenciando todo o Reino Celestial. Sua atenção, porém, foi surpreendida, de repente por uma ave. Sua penugem era belíssima, de tão negra e brilhante. Seus olhos, dourados e misteriosos. Seu corpo era comprido. Media pouco mais de meio metro. Ainda que não fosse muito alta, era coberta de um longo manto negro, capaz de paralisar qualquer criatura com que se deparasse, pronta para ser trucidada por suas navalhas entreabertas. David a reconheceu. Sua respiração cessou. O corvo o encarava, como um predador a uma presa. Como a Morte a um enfermo que há muito a esperava.

David fraquejava, trêmulo. Sua respiração falhava constantemente. Seu suor pôs-se a escorrer pelo seu corpo frágil. O pequenino levou as mãos à cabeça. Fora atacado covardemente por uma cefaléia insuportável. Seu crânio parecia encolher-se, comprimindo seu cérebro. Suas veias dilatavam-se aos poucos, estampando-se abaixo de sua pele. Debatendo-se sobre o pequeno bote, a criança berrava. Suor e lágrimas escorriam pelo seu rosto. A criança tremia epilepticamente, agitando o barco. Os berros do garoto rasgavam o silêncio. Seus dedos cravaram-se em sua cabeça de tal forma, que suas unhas tão pequeninas foram capazes de cortar-lhe testa e pescoço. O sangue escorria levemente sobre a pele escorregadia.

O corvo observava-o, impassível.

Por um instante, calaram-se os gritos. A criança tremia, engasgada. Abruptamente, David ergueu-se, reclinando-se para fora do barco. A dor permanecia incontrolável. E entre um e outro soluço fez-se o vômito, atirado sobre o rio, a desmanchar sua pureza. O vômito esguichava de seu corpo com força tamanha que a cada golfada seus ombros e cabeça eram arremessados contra a lateral interna do barco, ameaçando derrubar o garotinho sobre as águas maculadas.

Do desespero, aos poucos, fez-se o alívio. Ainda ofegante, David voltou-se para o barco. A ave permanecia insensível, apática. Seus olhos dourados encaravam o garoto pálido e hesitante. David recostou-se na extremidade traseira do barco, encarando amedrontado aquela fera. As asas vistosas estenderam-se. Os pés ciscaram. A voz rouca bradou. O corvo levantou vôo e se foi, a esmo. E num assalto, suas garras afiadas atacaram a criança indefesa, fincando-lhe às costas suas unhas afiadas. Fragilizado, David foi atirado de bruços, mas não se deixou vencer. Munido da pouca força que lhe restava, seus braços tentavam alcançar o corpo do animal. O corvo bicava-lhe ferozmente a cabeça, arrancando-lhe aos poucos o couro cabeludo, fio a fio. Durante a luta, David conseguiu virar seu corpo, de forma que ficasse frente a frente com o animal, que agora lhe agarrava o peito. O bater violento das asas impedia que o garoto permanecesse por muito tempo de olho aberto. Bastante fraco e com o corpo ensangüentado, David bradou, furioso, golpeando três vezes o animal com seu punho fechado. A ave recuou, repousando sobre a extremidade do bote. Ergueu seu bico vistoso para o alto e entre um brado e um bater de asas, levantou vôo.

O barco seguia viagem. A ave se pôs a segui-lo a sobrevôo. David buscou um pouco de água no rio, para lavar seu corpo machucado. Para fazê-lo, teve de arrastar-se. Já não conseguia mais se pôr de pé. A ave o observava de cima, grasnando com sua voz rouca e medonha. Inesperadamente, o corvo lançou-se ao ataque. Desta vez, contra o barco. Arrancou um pedaço da madeira lateral. O bote sacudiu. O garoto atirou-se no chão, para não cair nas águas. O pássaro retornou, repousando na parte interna do barco. Já não havia mais impassibilidade no olhar daquele pássaro. Seu instinto assassino fervia-lhe o sangue. Cravando as garras no chão do barco, bicou-o incessantemente. David nada mais poderia fazer.

Mas o silêncio estava ali. Em algum lugar. Não o silêncio que fervia os olhos da ave que o atacara. Nem o silêncio que cobria a noite ou as águas do rio. Era um silêncio que ninguém jamais poderia alcançar. Era o silêncio que desde sempre dominou o interior de David. Desde o seu nascimento. Até a sua morte. Esse silêncio, por sua vez, não é aquele que nos torna vazio, diversas vezes. É silêncio que nos preenche. Foi assim que David venceu o medo. Através do silêncio.

A ave dilacerava o barco pedaço após pedaço. A água surgia, ao passo que suas garras e bico trituravam a madeira. Sentado, David cantava, sorridente. Cantava de tal forma que ninguém pudesse ouvir. Apenas sentir. David cantava o silêncio.

Pacificamente, David afundava junto ao pequeno barco. A água já lhe banhava as pernas exaustas. O garoto tentou erguer-se. Primeiramente, em vão. Estava muito fraco. Seus membros não o obedeciam mais. Todavia, David não se importava. Com o auxílio de suas mãos, David punha-se de pé lentamente, ainda que não possuísse mais força alguma. Alguns dos poucos fios de cabelo que lhe restavam recaíram sobre a sua testa coberta de arranhões. Outros caíam, às vezes. Suas vestes estavam bastante rasgadas. Seu corpo, machucado. Porém espiritualmente, David manteve-se estável a todo o momento. Ainda que houvesse o medo. Ainda que houvesse a fraqueza. Ainda que houvesse o desespero... Havia o silêncio.

Sustentado por seus frágeis pés, David atirou-se. Contra sua própria fraqueza. Contra o medo. Contra o corvo. E ambos afundaram nas águas do rio sem correnteza. O rio que dividia a Terra entre a Vida e a Morte.

Após alguns instantes imerso, David voltou à atmosfera. Sozinho. A ave desmanchou-se em pó, dissolvendo-se nas águas límpidas. Junto a ela, desfizeram-se todas as feridas que cobriam o corpo do garoto. David venceu, por fim, sua maior inimiga. David venceu a Morte!

Perto do garoto, passava um pedaço de madeira que restara do barco. Imediatamente, David o agarrou, deitando sobre ele. Não havia aonde ir. Portanto, David entregou-se aos sonhos mais uma vez.

Passado algum tempo, um amigo conhecido de David o acordou. Era o Sol. Sim, o Rei Sol! Sua luz banhava-lhe o corpo, dando-lhe energia. Fazendo-o despertar. Seus olhos lutaram bastante contra a luz que os atingia. Enfim, venceram. Seu corpo, deitado sobre a grama, espreguiçou-se. No céu brilhava o azul. Não havia nuvens. David levantou-se, para ver o Rei Sol mais de perto. O Rei que acabara de acordar.

Bem perto dali estavam as montanhas. David gargalhou de felicidade ao avistá-las. Mal podia esperar para atravessá-las. Ao preparar os passos para correr, David lembrou que algo fora deixado para trás.

Ali estava a sua bússola! Escondidinha na grama. Ao seu lado encontrava-se algo desconhecido. Parecia um objeto que havia sido quebrado há pouco tempo. Era oval e possuía detalhes negros nas extremidades. Sim, era um ovo! A torre. O relógio. O ovo. A origem de uma nova vida. A origem de um pássaro. A origem de um corvo. O corvo. A Morte.

A casca do ovo ainda estava fresca. O animal nascera fazia pouco tempo. Já se tinha passado exatos dezoito dias e dezoito noites desde que David o recebera da vistosa ave. A ave que se desintegrou nas águas do rio. Eis que nada disso mais lhe interessava. Suas aspirações eram muito maiores que suas lembranças. O vento corria, suave, tocando-lhe os poucos cabelos que lhe restaram. Seu corpo, ainda que magricelo, estava firme. Enfim, segurando firme seu guia, David correu para as montanhas.

Ao chegar às montanhas, David sentiu que deveria ir mais longe. Cada pedaço de folha o encantava. Cada fruto. Cada flor. Porém, algo o chamava muito a atenção: o cheiro do mar, proveniente do outro lado das montanhas. Ainda que estivesse apressado, o garoto não se pôs a correr. Desejava aproveitar cada instante acolhido no coração daquela floresta que protegia a cordilheira. Ao chegar ao alto da montanha mais alta, os olhos de David encheram-se de lágrimas. O mar ali estava. Azul. Resplandecente. O garoto sentia como se o céu tivesse caído para cobrir a Terra. No meio do mar, estava o Sol, tão grandioso! Como aquele mar era imenso. Parecia infinito! O Sol, idem à Lua, desceu à Terra para banhar-se. E David poderia ser o dono dele. Bastaria encontrá-lo. Bastaria abraçá-lo. E assim David o fez. Desceu as montanhas, sem muita pressa, a fim de tornar-se príncipe. Seu pai o esperava. No meio do mar. Pronto para abraçá-lo. Na face de David, lágrimas escorriam. Embora a separação de seus pais fosse ainda causa de incalculável sofrimento, David possuía a certeza de que os teria todos os dias ao seu lado, mesmo separadamente. O dia e a noite. O Sol e a Lua.

Foi num fim de tarde, quando o Sol já estava quase adormecendo, pronto para que a Rainha pudesse assumir o trono, que David chegou à praia. À areia macia da praia. O garoto ainda podia sentir o calor proveniente do amor paterno. Apesar de sentir um beijo frio dos lábios maternos tocarem-lhe o rosto. Naquela praia, David passou o melhor momento de todos os seus dias. Pai e mãe o tocavam novamente. O amor o preenchia completamente. O único capaz de ser mais forte que seu mais fiel companheiro. Seu melhor amigo. O silêncio.

David não habitava sozinho aquela praia. Bem perto do mar caminhava uma belíssima mulher, que trajava um vestido branco, como se fosse noiva. Usava uma coroa, como se fosse rainha. Caminhava descalça. Seu sorriso fascinaria qualquer matéria viva ou bruta. Seus cabelos lisos e negros tocavam-lhe os ombros. Entre os dedos, uma rosa azul. Era Júlia.

David ficou extático ao deparar-se com a figura da mãe. Em carne viva, não em forma astral. Não era a Lua. Era Júlia. Sua mãe. Sua amada mãe.

Júlia o observava, sorrindo. Contendo o choro. David apressou-se, caindo na areia algumas vezes, pois suas pernas ainda não se haviam recuperado de toda a enfermidade. Das feridas. Da batalha contra o Corvo. Da batalha contra a Morte. Contra o câncer no cérebro.

No céu flamejava o vermelho, despedindo-se do Rei Sol, aclamando a chegada da Rainha. A Lua talvez não chegasse. Nesta noite que chegava, a Lua optou por caminhar com seu filho pela praia deserta.

Júlia beijou o filho no rosto incontáveis vezes, molhando-o de lágrimas. De mãos dadas, ambos marcharam em direção ao mar. E seguiram mar adentro sem medo. Sem mácula. Seguiram ao abraço de seu pai, que o esperava. O Rei Sol. Caminharam até afundarem nas águas do manto que confortava a Terra.

Foi assim que David passou o resto de seus dias. Ano após ano. Junto à sua mãe. À sua protetora. À sua Rainha. Dia após dia afogado. Em suas ilusões. Em seus sonhos. Como uma criança qualquer. Porém, uma criança que jamais deixou de ser criança até o fim de seus dias.

O espelho - Capítulo 11: O cometa

De olhos fechados, David afundava lentamente, a fim de abraçar o infinito. A fim de abraçar o silêncio.

As águas daquele rio eram frias. Plácidas. Acalentavam o garotinho como uma mãe que abraça o filho contra o próprio seio. O menino sorria. Em profundo êxtase, o pequenino adormeceu. Sorrindo. Seus braços foram-no abraçando, carinhosamente. Suas pernas, dobrando-se, de maneira que todo o seu corpo ficasse encolhido. Como se fosse um feto. Como se estivesse... Renascendo!

Assim sendo, David adormeceu por um longo tempo. Ali mesmo. Submerso. Por tempo indeterminado. Um tempo incalculável. Debaixo daquelas águas não existia tempo. Não existia passado. Nem futuro. Só o presente. O tempo presente. A vida presente. O silêncio presente.

Após tal sono profundo, o pequenino finalmente acordou. Ainda sorria. Seu corpo estremeceu. Seus braços, casados a suas próprias pernas, separaram-se num brusco movimento. Ainda que tocasse seu próprio corpo, David não o sentia. Mas pouco importava. Seu fiel companheiro estava ali. Seu único amigo. O silêncio.

Suas pálpebras ainda estavam fechadas. Seu sorriso, ainda nos lábios. Enfim, David suspirou. Despertara. Duas mãos gélidas surpreenderam-no, tocando-lhe as mãos. O garoto debateu-se. Ainda que estivesse entorpecido, ele pôde senti-las. Eram mãos suaves, ainda que tão álgidas. Todavia, não eram mãos quaisquer. Eram as mãos de dois anjos. Anjos de olhar negro.

Suas faces eram desenhadas de profunda apatia e morbidez, pintadas por uma palidez indescritível, molduradas de cabelos negros que lhes cobriam a testa. Vestiam um manto branco. Não tinham asas nem auréola. Mas eram anjos. Seguraram firmemente as mãos do pequenino e puseram-se a nadar. David adorou a idéia.

Aos poucos, aqueles seres angelicais soltaram-no as mãos. Juntos, nadaram por léguas e léguas. Faziam belíssimas manobras, dançando pelas águas. Sentiam-se como se estivessem no ar. Suspensos.

Surgiu ao fundo uma luz. Parecia distante, mas aproximava-se em alta velocidade. Transmitia um calor bastante intenso, que àquela distância se poderia senti-lo. Os anjos agarraram a mão do garotinho. Era um asteróide. Possuía o tamanho de um automóvel pequeno. Mas era um astro. Um carro astral. Nas profundezas do rio! Aproximando-se o cometa em velocidade avassaladora, David os anjos sobre ele saltaram, levando consigo o garoto. Devido à rapidez do meteoro, eles não conseguiram alcançá-lo. Mas heroicamente agarraram-se em sua cauda azulada!

Mesmo tendo como principal adversário a nuvem de poeira astral deixada como rastro pelo cometa, não se passou muito tempo até que eles conseguissem montar sobre a área sólida do fascinante pequeno astro. Os fluxos de poeira e gás liberados formaram uma enorme e extremamente tênue atmosfera em torno do cometa, traçando desenhos fascinantes, provocando imensurável deslumbre em David, que não perdia de vista um detalhe sequer daquela onírica viagem.

Ao horizonte, despontava uma luz. Era ao seu encontro que o cometa seguia radiante. David manteve-se sentado. Não tinha pressa. Apenas esperança. Esperança que jamais envelhecia. Que jamais enfraquecia. Que jamais morria.

Ao norte, avistava-se um enorme astro. Um poço de beleza e virtudes. A Rainha da noite. A Rainha dos astros. A Lua. Coberta estrelas. Vestida de nuvens. Nuvens que escondia sua nudez. Seu corpo arredondado. Sua sensualidade encantadora. David por nada disso procurava. Queria apenas desfrutar de sua beleza. De sua terra macia. De sua palidez única e indecifrável.

Ao sobrevoá-la, o cometa os lançou sobre a atmosfera lunar. Os anjos seguiram viagem. David atirou seu olhar sobre aquele manto sagrado que abençoa todas as noites do planeta Terra. Sobre ele brincava uma linda garotinha de cabelos dourados. Seus cachinhos deleitavam-se sobre o ombro. Seus olhos brilhavam de tão verdes. Trajava um vestidinho branco, com bordadinhos cor-de-rosa. Era ela. Dançava pelo chão arenoso, sozinha. Ainda que não se importasse com a solidão. Gostava de estar ali, sozinha. Ela e o silêncio.

Ao se encontrarem, ambos paralisaram, sorrindo. E os sorrisos tornaram-se risos. E os risos, gargalhadas.

Simultaneamente, arremessaram-se sobre a areia macia, e puseram-se a balançar braços e pernas, sem tirá-los do chão. Quão gostosa era a brincadeira! No solo, formavam-se o desenho de dois anjo. Os braços desenhavam suas asas. As pernas, seu manto.

Os dois estavam ali. Adjacentes. No solo, formava-se uma simetria perfeita. Duas crianças. Dois anjos.

Mais uma vez, David afogou-se em sonhos. Junto a ele, a garotinha. Tão doce. Tão pura. Deitados sobre a Lua. Abençoados pelas estrelas. Estrelas que refletiam sua luz em um colar escondido no bordadinho do vestido. Um colar que revelava seu nome: Divad.

Os anjos retornaram, remando tranquilos. Ambos no mesmo bote. Aproximaram-se de David, acolheram-no nos braços e o deitaram sobre o bote.

E remaram. Deixavam aos poucos a atmosfera paradisíaca sobre a qual adormecera dois pequenos anjos. Como uma rosa no deserto, Divad permaneceu adormecida. Resplandescente. Ainda que sozinha. Ela. O sorriso. O silêncio.

Os anjos foram navegando pelas águas límpidas daquele rio pacífico. Não tinham pressa. Não tinham medo. Remavam impassíveis. Viajaram pelo silêncio... Rumo à superfície!

O espelho - Capítulo 10: A rosa

O garoto não se rendeu ao cansaço. Ainda que sua respiração insistisse em ceder. Vidrado no seu novo guia, caminhava incessantemente rumo ao horizonte guardado sob as montanhas. O Sol, por sua vez, mantinha-se ali, num ponto eqüidistante entre todos os quatro cantos da Terra, coberto de nuvens.

O tempo fechava-se, e aquele céu transformava-se em uma imensurável massa cinzenta. Gotículas abandonavam as nuvens e, carregadas pelo vento, desciam em espiral. David não temia a chuva. Protegeu cuidadosamente o ovo que carregava, embora alterasse em momento algum a freqüência de seus passos.

A poucos pés dali, avistou-se um rio. Um tão cobiçado rio. Um rio que parecia atravessar a Terra de leste a oeste, partindo-a em duas metades. Impedindo David, desde então, de alcançar as montanhas. Desta vez, David apressou-se e correu.

Ao chegar à margem, David ajoelhou-se bruscamente, deixando escapar de sua mão esquerda o ovo, que sobre a relva se guardou. O garotinho nem havia notado, mas a beira do rio cobria-se de flores. Flores brancas, vermelhas, amarelas. Porém, havia uma delas que se destacava. Era uma rosa. Uma rosa azul. Impecável. Única. Curvada para o rio.

O menino fitou-a, esquecendo de tudo quanto houvesse à sua volta. As flores. A relva. O ovo. O rio. A chuva. As montanhas. As nuvens. O adormecido Rei Sol. Naquele momento, o mundo se limitava a ele e a rosa. Apenas.

Misteriosamente, a flor ergueu-se, como se percebesse que estava sendo admirada. Delicadamente, suas pétalas azuladas punham as gotas a deslizarem pelas sépalas, caule e folhas, as quais se desmanchavam pela terra numa minuciosa explosão, partindo-as em gotinhas ainda menores. Quase invisíveis. David continuara perplexo, atento a cada detalhe. O caule charmosamente delicado pôs-se a mover para a direita e para esquerda, em uma dança suave, junto aos olhos da criança, quando repentinamente paralisou-se. A formidável flor curvou-se vagarosamente para a água, novamente. Junto a ela, todas as demais flores. Rosas, margaridas, girassóis. Exceto David. Algo naquela flor o fascinara. Suas retinas hipnotizadas atinham-se a toda a flor. Não digo toda flor. Digo toda a flor. Aquela flor. Seu conjunto. Uma gota microscópica retirada da ponta de uma sépala significaria para David um livro sem um capítulo.

Finalmente, David desviou-lhe olhar da rosa. Transferiu-o ao reflexo da mesma. A água fluvial de tão límpida refletia impecavelmente todos os céus e Terra. As flores. A relva. O ovo. O rio. A chuva. As montanhas. As nuvens. O adormecido Rei Sol. Simetricamente ao rio, como se este fosse o eixo de simetria de dois universos paralelos. Seus olhos escorregaram da rosa, e passearam pelo céu abaixo de seu nariz. Ainda que milhares de gotas caíssem ali, o rio conservava-se estável. Como se não chovesse sobre ele.

E dois olhares se encontraram. David curvou-se rapidamente para trás. Lentamente, avistou na água uma luz. Na verdade, eram lindos cachinhos dourados, olhos verdes de esmeralda, que lhe estendiam a mão. Da outra face do rio. No universo simétrico abaixo d’água. Era uma menininha. E o garoto a reconheceu. Era ela. A menininha do espelho. Após um instante de silêncio, o gelo quebrou-se em gostosas gargalhadas. Gargalhadas que dissiparam a rosa em esquecimento. Como tentara outrora no espelho, ainda que não tenha conseguido, David tentou tocá-la. A pequenina. Ela estava perante seus olhos. Novamente. Desta vez, pouco abaixo da superfície do rio.

Com o dedo indicador, David pôs o dedo sobre a água propagando uma série de ondas, que invadiram o rio adentro, embora se tenham perdido em meio ao vão. A menina, encantada, entranhou-se na brincadeira e desenhou-lhe uma rosa. David lançou a mão sobre a água, num tapa feroz, desmanchando a rosa e a menina.

A água acalmou-se aos poucos, e a garotinha novamente surgia. Esticando o braço, David tocou mais uma vez o rio, a fim de sentir aquela face que lhe parecia tão suave. O prazer, desde sempre, extinto pela inocência.

E por inocência, David afogou-se em esperança. Na tentativa de um abraço, caiu de braços abertos nas águas profundas daquele rio sem correnteza. O rio que dividia a Terra ao meio. A Vida e a Morte.

Pelo rio, navegava uma rosa. Uma rosa navegava pelo rio.

O espelho - Capítulo 9: O rio

Guardou-o nos braços, abraçando-o cuidadosamente. Em seguida, saiu caminhando com o objeto protegido sob seus bracinhos, como um pai carregando uma criança no colo. Desceu as escadas, apoiando-se nas paredes tomadas pela escuridão. Mal olhava para frente. Apenas para o pequeno ovo. Após incontáveis degraus, sentiu um leve brilho, provindo de alguma fenda que acidentalmente deixara escapar a luz. Era uma saída. Havia, no fim do corredor, uma porta. Uma porta fechada. Não diria trancada, mas fechada.

Chegando à porta, David a tocou com a mãozinha esquerda. A porta rangeu. Um feixe de luz doce como a bruma tocou-lhe os olhinhos miúdos, que bruscamente se fecharam. Aos poucos, suas pálpebras brotaram junto a um sorriso. Seus pés tocaram a grama. Seus olhos tocaram o céu. Lá havia um incêndio. Não havia fogo. Não se ouvia gritos. Não havia desespero. Mas era um incêndio. Uma grande mancha vermelha sangrava o azul celeste, que se cobria de nuvens brancas, róseas e alaranjadas. Não digo que o vermelho contrafazia a pureza daquele céu tão divino, nem que ele perdia aos poucos sua inocência, como as mocinhas ao atingirem a puberdade. Digo muito menos que o vermelho sangrento o enfraquecia, ou que o fervor daquele fogo ardente o consumia até se desmanchar em profundo cosmo negro adormecido... Contudo, eu não diria também que ali os anjos festejavam a vida, derramando sobre o céu o mais saciável dos vinhos. O céu, pequeno David é um universo de significações indecifráveis. Significações que se reduzem ao conteúdo de nossos conceitos. De nossa consciência.

David apenas sorria. Com motivo, ou não. Não importa, era um sorriso!

E lá estava o sol. Oh, Rei Sol! Que fazes aí coberto de nuvens? O que temes? Tu, que ocupas o centro do universo, que vence a noite a cada aurora, e a liberta a cada crepúsculo... Por que te escondes? Tu que dominas o fogo, que te livras do pecado. O fogo que te guarda a imortalidade... Por que sangras? E o Rei Sol nada respondia...

Cada passo dado do pequenino em grama verde era um novo sentimento despertado pelos mistérios do céu que se transformava! Do Sol que entre nuvens se aconchegava. Que se preparava para anoitecer. Todavia, algo curioso estava acontecendo. O sol. Sim, o Rei Sol. A majestade do universo, desde então, se detinha há algumas horas ali, no meio do céu. Como se não se apressasse, pois, a pôr-se quase um dia inteiro.

David sorriu para o sol, agradecido.

David peregrinou a esmo entre os arbustos. Até encontrar uma bússola. Estava ali no chão. Esquecida. Era velhinha, velhinha. Suas bordinhas douradas eram cobertas pelo tempo e pela terra. E parecia quebrada. Ela só apontava para uma única direção. O Norte. Por mais que David a girasse, ela sempre apontava firmemente para o Norte... E não havia quem a fizesse mudar de direção. David foi vencido pela insistência. Porém, agora ele possui uma direção. Um objetivo. O Norte. E é para lá que ele vai. Para as formosas montanhas que cobriam o horizonte. Desejava encontra um rio. Seja ele qual fosse. Só gostaria de encontrar um rio. Ainda que ele não existisse entre as montanhas...

Assim, David foi à busca de águas límpidas. Antes que fosse tarde de mais. Antes que o Sol acordasse. Antes que se passassem dezoito dias e dezoito noites.

O espelho - Capítulo 8: O corvo

Ali mesmo, seu melhor amigo o abraçou. Tão fiel quanto invisível. O silêncio. Em passos melancólicos, o pequeno desceu ao chão. Cantarolando baixinho, foi-se retirando a contar seus passos. De braços abertos, para não perder o equilíbrio. Em seguida, pôs as mãos no bolso e foi retornando ao seu ponto de chegada.

Avistadas as janelinhas, os passos foram-se tornando mais lentos. O corpinho tão jovem já cambaleava. E a parede de pedra lhe parecia tão confortável! O garoto estava cansado. Estava faminto. Estava com sono. Pausou perante a janelinha bordada de ouro e ali mesmo se recostou. Era manhã, mas a parede ainda estava fria. E como estava confortante! Ah, estava! Deitado sobre o chão frio, abraçado ao próprio corpo, David ali ficou. Confortavelmente entorpecido.

Não lhe interessava quanto tempo passaria ali. Suas pálpebras exaustas cerravam-lhe os olhos, e em poucos instantes o garoto adormecia. Profundamente.

Repousado sobre o parapeito da janela sob a qual David se encostara, pairava uma penugem belíssima de tão negra e brilhante, possuidora de um olhar dourado e misterioso. Seus pés ciscaram, acompanhados de uma voz rouca. Fitou o pequeno sonolento, como se o protegesse ou ameaçasse. Num pequeno pulo, caiu sobre a cabeça do menino. Com o bico longo, mexeu por entre a cabeleira negra, e arrancou-lhe um fio de cabelo. Olhou para os lados, desconfiado, e tornou para onde repousava. Abriu suas asas sedutoras e partiu.

Passadas as horas, David acordou. Sentou-se desajeitado. Balançou-se para os lados, com os olhos entreabertos. Espreguiçou-se num bocejo, esticando os braços. Passou a mão nos olhos e pausou um instante. Surpreendeu-se. Ao seu lado havia um pacote. Algo embrulhado, um pouco amassado, como se alguém o tivesse arremessado ali. Optou por desdobrá-lo. Estava tomado de curiosidade. Ao tocar o pacote, ouviu-se um sussurro rouco. Lá estava a ave negra. Com seu bico de navalha e seus olhos vivamente dourados. Ambos se encararam. David, sentado, a admirava estático. Quão majestosa era aquela ave! Era compridinha, compridinha. Pouco mais de meio metro. Embora não fosse muito alta, sua parte traseira era coberta de um longo manto negro, capaz de paralisar qualquer um com quem se deparasse, ainda que fosse uma humilde presa, pronta para ser trucidada por suas navalhas entreabertas. Num lapso, bradou um grito rouco, apavorante, que a qualquer outra ave espantaria. David, ainda sentado, se arrastou para trás, trêmulo. O animal ergueu bravamente suas asas, bico aberto, pronto para voar. Ou atacar. Saltou, berrando. Bateu as asas, pairando sobre o garoto. Pousou sobre o pacote. Calou-se. Ciscou sobre o embrulho. David permaneceu pálido, encarando-o. Com o bico, a ave soberana pôs-se a desatar os nós de cada cordão que envolvia o embrulho. Terminado o trabalho, encarou novamente a criança. Percebendo que nada o garoto faria, o pássaro inclinou-se para frente e, numa última vez, berrou! Como o último desespero de uma vítima perante um assassino. Como uma mãe desamparada presenciando a perda de seu único filho. Freneticamente, bateu suas asas e debateu-se, rasgando em picados o papel envelhecido que cobria o pacote. Por fim, a ameaçadora rainha partiu, aos berros. David, cabisbaixo, abraçado aos joelhos, ergueu a cabeça lentamente e confirmou que a ave partira. Mas não completamente. Algo dela ainda estava ali. David recolheu em suas mãos o embrulho de papel velho e dilacerado, e finalmente retirou o que ali dentro havia. Uma caixinha. Quase um cubículo, se não fosse o fato de que seus sete centímetros de altura fossem um pouco maiores que seus seis centímetros e meio de largura. No caixote havia alguns pontos rasgados por aquelas garras ferocíssimas. O garoto levantou-se e caminhou até a janela, onde havia luz. Concentrou-se nas fendas. Só se viam leves tonalidades de azul. E mais nada. Enfiou-lhe os dedos na caixinha de papelão, rasgando-a. E deixando cair o objeto que ela guardara por, aparentemente, tanto tempo. O artefato quicou duas vezes e rolou pelo recinto. David largou o embrulho deu três passos e saltou, atirando-se ao chão e alcançando o objeto. Era fortemente azulado, com detalhes negros nas extremidades. Oval. E resistente. Era um ovo!