As Dunas

 Não se sabe ao certo por quanto tempo ele viajou, mas sugere-se que todo o itinerário fora percorrido durante algumas horas, dada a posição do Sol naquele momento. No olho do furacão de areia que o redemoinho se tornara, a Pipa resistia a todos os obstáculos que enfrentava e o andarilho segurava-se firme a ela, sem se preocupar com a altura em que se encontrava, pois cria que a força da tempestade o impediria de cair, além de confiar na força de tração da linha que o levara até ali.

A garganta marrom que o mantinha em cativeiro rugia e ruminava areia, e por dentro dela o vento uivava. Os pés pendurados balançavam em ziguezague e o corpo girava feito um acrobata em torno de sua corda no ato final de um espetáculo circense.

Pouco a pouco a poeira fina e terrosa dispersava-se, e no céu era possível admirar a Pipa verdinha norteando-se para as dunas, na parte mais alta da região. Paisagem adentro, tudo era areia e sal. O mar era o manto azul que cobria toda aquela costa, sem que houvesse um trecho sequer de mata verdinha que pudesse cobrir sua nudez.

Existiam duas grandes dunas, idênticas entre si, e foi no ponto de encontro entre as duas que a Pipa o repousou e partiu, para que ele mesmo escolhesse para onde iria a partir de então. O andarilho curvou-se para a esquerda e pôs-se a caminhar sobre a areia quente, posto que o Sol acusava que eram meados da tarde. Não bastasse o calor e a inclinação da subida, a caminhada era lenta e homeopática uma vez que seus pés afundavam a cada passo da escalada.

À tardinha, a areia já esfriava, e o céu se alaranjava, alarmando que a noite em breve chegaria. O Sol não mais o castigava, pois se escondera do outro lado das dunas. Tivesse ainda forças, arriscaria o esforço para prestigiar o pôr-do-sol, mas o cansaço não permitia que ele sequer pensasse em tal possibilidade.

A noite chegou e com ela a praia tomou uma coloração fria e cinzenta. Ao menos era mais confortável caminhar sobre as dunas naquele instante. Erguendo sua visão para o alto, viu um ponto de luz no topo e descartou a possibilidade de ser resquícios do pôr-do-sol, já que ele se punha por completo. Como estava bastante próximo, aguardou com paciência até que se aproximasse para verificar o que era aquela luz.

Era uma fogueira. As brasas eram vivas e a chama consistente, mas não parecia ela ter sido acesa recentemente, inexistiam sinais de que alguém por ali tivesse passado nas últimas horas ou até mesmo dias. A fumaça proveniente era esbranquiçada, e destoava com a negritude da noite vazia e escura.

Visto que a única fonte de iluminação era a fogueira, procurou nas proximidades o melhor espaço em que ele pudesse adormecer. As opções não eram diversas, afinal, tratava-se de um lugar desértico, inabitado, desflorestado, reduzido minimamente ao pó. Ataques por animais de hábitos noturnos eram improváveis de acontecer, por isso sua única preocupação seriam as variações de temperatura até que amanhecesse.

Com as mãos em formato de concha, ajuntou uma porção de areia para que lhe servisse de travesseiro e ele pudesse recostar sua cabeça. O frio não era intenso, destarte seu agasalho aliado ao calor da fogueira o manteriam aquecidos. Deitado, olhos ao céu, contemplava a escuridão plena da noite sem lua nem estrelas. A fumaça branca na subida se perdia, a chama ardia, mas não se consumia.  O andarilho, sob o calor do fogo, adormecia.

As nuvens surgiam densas, por todo lado da Terra, como montanhas de gelo suspensas que se derretiam em chuva arrojada. A água fria respingava sobre o corpo do andarilho, que sequer se movia. A fogueira não se intimidava e queimava sem cessar. A terra molhada, cada vez mais viscosa e enlameada, lentamente afundava o corpo daquele que dormia, o qual, por fim, despertou. Trêmulo e assustado, sem assimilar o que estava ocorrendo, levantou com certa dificuldade, pois seus membros e a lama já estavam em estado de simbiose.

Sobrepondo as mãos ao fogo para mantê-las aquecida, temia perder sua única fonte de luz e calor, que felizmente resistia com êxito. Olhou para dentro da fogueira para se certificar de que ela duraria até o amanhecer, mas seus olhos incandesceram, pois poderosa era a sua luz. Repentinamente, a chuva deixou de molhar a ele, à terra e a tudo o que estava no topo daquela duna. E era possível tudo enxergar como se fosse dia, pois a chama brilhava como o sol.

Toda a sua luz se tornou branca, que permitiu que o andarilho enxergasse sem que seus olhos se irritassem. E ele teve a seguinte visão: No coração de uma praia paradisíaca, surgiu um reino que continha um gigante castelo de areia, governado por uma rainha vestida de pérolas. O príncipe, seu filho, era protegido por um lobo branco. O castelo tinha quatro torres, e em cada uma delas habitava um animal guardião, sendo eles um uma águia, um cavalo, um falcão e um guepardo. Em seguida, viu o céu enrubescer, tomado por uma lua de sangue, e todo aquele que olhasse para ela ficaria cego. Por fim, viu o príncipe vestido de branco chorando sobre os escombros do castelo de areia, e à volta, por toda a costa, tartarugas mortas. Após a visão, a luz branca se ofuscou, transformando-se novamente na chama que ardia.

Do fogo, materializou-se uma pomba branca que trazia consigo um punhal de ouro. Saltando em sua direção com as asas abertas, ela lho entregou e se desfez em cinzas. Atemorizado, o andarilho sentiu as mãos e a fronte arder, e tomado por profunda sonolência, caiu em terra, com a arma empunhada e o rosto em pó, até a viração do dia.

A Pipa

 

Havia abandonado na praia um tronco de árvore, o qual não se bastava a ponto de enfeiar a paisagem, no entanto não era discreto de modo que permanecesse despercebido por quem cruzasse com ele, uma vez que sua casca era grosseira, o que lhe dava uma aparência bastante robusta. Não era possível calcular de forma precisa como ele chegou até ali, dado que não havia árvores naquele entorno, o que seria justificado apenas com a interferência humana.

O modo como o tronco fora parar ali não lhe era nem de longe a verdeira preocupação, mas sim aquilo que o adornava. Armada por varetinhas de madeira caprichosamente encapadas por um fino papel de seda, presa à linha que mantinha atrelada ao tronco estava uma pipa, cuja cauda valsava com o vento, que a ritmava lentamente um passinho para a direita, outro para a esquerda.

O andarilho olhou para os lados e arriscou voltar-se para trás, a fim de se certificar de que ninguém o observava. Ele se encantou por tamanha sutileza, não só pela combinação entre os tons de verde que a coloriam, mas também pelo cheiro suave que ela exalava.

Devagarinho, tirou da cabeça seu chapéu pontudo para que não danificasse a preciosa obra de arte que contemplava, e então aproximou seu nariz junto à seda que compunha a asa da pipa, a qual, como se o compreendesse, inclinou-se, recostando-se ao lado esquerdo de sua face, e, como o beijo de um casal apaixonado, sua cauda enrolou-se a seu braço, acariciando-o.

Era mistério quem a teria colocado ali; em contrapartida, era nítido o seu desejo por ser livre. Deslizou seus dedos pela linha, até encontrar onde estava o nó que fazia dela prisioneira do tronco abandonado.

Desatado o nó, sem hesitar abandonou-a ao vento, para que ela pudesse usufruir da sua liberdade. Duas, três piruetas ao ar abanando o rabinho, a Pipa girou em torno do seu próprio eixo e descansou ao seu lado. Não havia nada que a impedisse de voar, do contrário, a ventania lhe era favorável. Mas ela permaneceu ali.

Afastando-se lentamente, o andarilho acenou, despedindo-se da amiga que libertara. A linha, por sua vez, enroscou-se ao seu pulso e puxou-lhe de súbito, fazendo-o tropeçar em seus próprios pés. Na asa, em meio aos diversos tons, havia dois pequenos losangos  separados simetricamente pela varetinha central, que se assemelhavam a olhos de esmeralda.

A rabiola verde-mar se agitou, a surpreendê-lo provocando um pequeno redemoinho que magicamente tirou seus pés do chão. De olhos entreabertos, sentiu seu coração acelerar em um misto de fascínio e confusão. Mais surpreso que assustado, agarrou-se à rabiola, lançando seu próprio corpo de volta para o chão.

O redemoinho foi-se tornando uma tempestade de areia, que o ascendeu para o alto lentamente, contra a qual ele não tinha forças para lutar. Por mais que agitasse seus pés em direção ao chão, a Pipa resistia ao peso que carregava e o levava ao destino que lhe reservara.

Ele respirou fundo e nesse inspirar encontrou silêncio dentro de si, posto que a elevação a que estava submetido logo lhe trouxe paz, após o breve momento de estranhamento.

Naquele instante, seu espírito encontrou plenitude, e ele se ouviu cantar em uma língua que nem mesmo ele conhecia. Mas sua alma compreendia cada palavra balbuciada com louvor. Nela ecoava uma orquestra ministrada por anjos, cujo coro se manifestava através de sua voz.

Aos seus pés, a areia se dissipava à proporção que a Pipa o conduzia, e de cima ele podia visualizar a corrente de ar desfazendo suas pegadas, uma a uma, até a última, apagando assim da memória da praia os sinais de seu arrebatamento. Até que a tempestade de areia subiu para escoltá-lo, e sua intensidade não lhe permitia mais enxergar o caminho com os olhos naturais.

Decidiu, assim, continuar sua viagem onírica com os olhos da própria fé, mediante a certeza daquilo que se esperava, provando a si aquilo que não se via.


O Barquinho

 

Seguia perseverante quase ao horizonte flutuando sobre a enseada um barquinho. Guiado pela brisa oceânica, cortava a água como se nele houvesse um grande marinheiro, que desbravava os mares à procura de grandes aventuras, no entanto era apenas um barquinho de papel.

Ao longe, aquele que caminhava solitário pela praia o acompanhava, tomando-o por guia naquela manhã azul. Se o barquinho titubeava para a esquerda, assim ele o fazia. Se avançava para a direita, era para lá que ele corria.

O vento arrepiava a superfície da água, e a distância se via o barquinho tomar-se de gostosa agitação, tal qual uma embarcação que enfrenta uma forte tempestade. Os pés, que anteriormente se preocupavam em não deixar marcas onde passava, paulatinamente elevavam seu ritmo ao passo que percebiam que a pequena embarcação se distanciava.

E correu, ainda que meio desajeitado e perdendo o equilíbrio, com seu jeito curioso de pisar batendo os pés ao chão, e balançar as mãos ao inclinar seu corpo para frente para pegar impulso. A cada pisada, sentia a água fresquinha respingar em seu rosto. Com as mãos para frente, brincava de tentar capturar a gotinhas que desciam. Experimentou fazê-lo com a língua, abrindo a boca e fechando os olhos para senti-las melhor. Péssima ideia, a água era deveras salgada. Ainda de olhos fechados enquanto corria, inevitavelmente reduziu o passo e esfregou o dorso da mão esquerda nos lábios. Reabrindo os olhos, desacelerou ao calcular que estava suficientemente próximo ao barquinho para não perdê-lo de vista.

Sentiu uma mancha escura correr por debaixo d’água, entre seus pés. Saltitou para o lado, assustado. Observou ao seu redor através da água cristalina e constatou que nada havia ali de ameaçador. Antes que reiniciasse sua caminhada, viu, novamente entre seus pés, uma mancha pontiaguda e triangular que avançava na mesma direção para onde ele seguia.

Tentou, sem sucesso, capturá-la com os pés. Ela era intocável. Tinha apenas forma, mas era impalpável – era uma sombra. Inclinou seu olhar para o céu e viu pousar como pomba sobre seus ombros e alçar voo em seguida. Ainda que voasse, não era ave. Era um avião. Um aviãozinho de papel.

Persistente e sagaz, a sombra do aviãozinho crescia por dentro da água à medida que se levantava ao sol. Abriu os braços e acompanhou o plano de voo, enquanto os pés cortavam as águas que carregavam sem cansar o barquinho de papel. O vento guiava o avião; a água, o barco. A fé, os pés e braço de quem os acompanhava.

Notou-se que o córrego se estreitava, e com ele o barquinho desacelerava. O caminho da enseada foi-se encurtando até que o barco deixou de correr e flutuou lentamente até encontrar uma pedra fincada à areia. A água límpida conservava sua boa aparência, apesar de saber que o tempo a faria desgastar-se até enfim definhar.

Parado diante da pedra, decidiu se tomaria para si o barco ou o desviaria da pedra para que ele reencontrasse seu rumo. Com receio de que ele se desmanchasse, afinal era um barco de papel repousado sobre a água, espalmou suas mãos e cavou cuidadosamente uma porção de areia para que a embarcaçãozinha tivesse sustentaçao.

Cada dobrinha pareceu-lhe ter sido feita com divino capricho, tendo em vista a sua simetria. Os ângulos e as formas que o compunham encantavam pela organização geométrica de sua estrutura, curiosamente resistente e intacta. Decidiu por levá-la consigo, e o fez da maneira mais ingênua e criativa possível. Apertou-lhe um pouquinho nas extremidades, e ele expandiu às laterais. Cuidadosamente, guardou-o sobre sua cabeça, tornando-o um divertido chapéu.

O aviãozinho, enciumado, pousou em seu ombro. Ao recolhê-lo com a ponta dos dedos para não amassá-lo, notou que em sua asa havia em pequenas letrinhas uma escritura que dizia: “Eis o meu filho amado, que me dá muita alegria”. Sua face enrubesceu e seu espírito se encheu de Silêncio.

Olhou para o Sol e, com a mão esquerda, pegou impulso e arremessou o aviãozinho para cima, que cortou o vento rumo ao infinito seguindo o caminho de luz que o conduzia e desapareceu diante dos seus olhos.

Por fim, pegou a pedra em mãos e com a ponta dos dedos rabiscou o nome que daria a ela. Feito isso, deixou-a no mesmo lugar onde a encontrara e tornou à sua caminhada, que dali em diante marcaria suas pegadas na areia fina, quente e fofa.

E foi assim que no meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Fincada à areia, carregava o nome que lhe deram: Ebenézer.

A Enseada

  

O vento fresco e preguiçoso arrepiava a costa larga da erma praia à luz da aurora renascente enfeitada pelas nuvens de algodão rosa que passeavam pelo céu de baunilha. O arrulhar dos pombos que ora brincavam, ora brigavam entre si à procura de alimento ecoava pelo vazio, misto ao coro das águas que forravam a areia macia e úmida. Como as teclas de um piano as ondas se sobrepunham umas sobre as outras sob o respirar divinal que as conduzia para frente e para trás.

O incessante louvor era ministrado pelas águas que se aqueciam pelo sol nascente, cujas línguas de fogo repousavam sobre a maré baixa. O sopro quente e invisível agitava os grãozinhos de areia que se dissipavam pelo ar litorâneo dissolvendo-se no azul da aquarela daquela manhã que surgia.

O Silêncio pairava sobre as vagas entreabertas, deitando-se pelas mornas espumas de sal que se formavam e logo se desmanchavam no encontro com a areia fina e esbranquiçada. Num suspiro suave, as ondas tornavam a adentrar o oceano, desnudando a praia em sua quietude, e assim sorrateiramente, num beijo mais demorado, o mar pudesse invadi-la em sua intimidade, amaciando-lhe a areia e refrescando sua costa nua.

Como um casal apaixonado que celebrava as núpcias a cada amanhecer, mar e praia desfrutavam de seu eterno amor. Como uma mão aveludada, os dedos de sal escorregavam pelo tapete arenoso, a encontrar um pequeno castelinho de areia.

O muro que protegia as dependências do castelo era dotados de elegante singeleza, bem como a formosidade com a qual as torres foram erguidas. Adornado com pequenas conchas que reforçavam a proteção contra investidas inimigas, o muro alto resistia aos sopros matinais, bem como ao confronto das espumas. Sendo assim, o átrio externo não inundava, deixando a salvo a cavalaria guardada nos estábulos.

Ao passo que a manhã se estabelecia no azul celestial, a faixa de areia se encurtava, e, não fosse o corpo deitado em sua volta, o castelinho certamente desmoronaria.

A água morna e agitada não fora suficiente para acordá-lo, posto que se encontrava em sono profundo. O castelinho era protegido como um pai a um filho recém-chegado, posto que, adormecido em torno de sua criação, seu corpo formava uma barreira suficientemente eficaz.

A maré, por sua vez, seguia avançando, alagando os entornos do castelo. Enquanto ela subia, num breve respirar, aquele que descansava o rosto na areia aspirou água por seu nariz e boca, acordando assustado em breves espasmos. Seus olhos entreabertos assistiam o mar diluir seu castelinho, com a ajuda de uma pomba branca que buscava alimento entre as conchinhas que protegiam seu muro.

Lentamente, ele sentou à areia, frente ao mar, sem se importar se encharcara sua camisa branca agarrada ao seu corpo, ou se manchara seu casaco azul com a lama que se formara após a invasão da maré ao seu território. Admirava, sentado, a perfeita simetria cuja linha que separava os dois eixos encontrava-se no horizonte da imensidão do mar. O Sol aquecia sua face alva, secando-lhe os cabelos negros que, cacheados, adornavam-lhe a fronte.

Levantou-se, sem desviar a atenção um segundo sequer do movimento das vagas que iam e vinham, incansavelmente. Caminhou, a passos lentos, abandonando sua construção desmanchada no coração da praia. O mar na areia esbranquiçada desenhou uma trilha que refletia o azul celestial, como uma enorme cobra de vidro que o guiava, de modo que, sem pressa, ele percorria seu caminho sem deixar vestígios de sua passagem.

E seguiu viagem. Para onde, ninguém sabia dizer. Apenas o Silêncio que se esvaía junto a suas pegadas e subitamente se deleitava no gotejar das suas mãos molhadas, ou ainda no bater das asas da pomba que alçou voo e pôs-se a acompanhá-lo de longe, em seu caminhar que ele realizara a esmo incontáveis vezes desde que ele ali estivera pela primeira vez.

O telefonema

 

Terças-feiras são dias de trabalho cansativos por natureza. Pobre segunda-feira, sempre criticada por ser o primeiro dia de labuta após nossos tradicionais dois míseros e preciosos dias de descanso, popularmente conhecidos como fim de semana. Mas ninguém fala sobre a terça. Diferente do dia que a antecede, ela carrega sobre si o fardo de suceder um dia de trabalho e de anteceder outros três, quando não quatro. Envio de boletins, devolução de simulados, preparação de revisões para o NEM, organização de reunião de pais e mestres. Esse era o retrato do meu terceiro dia da semana, por cujo fim eu já clamava ali, às dezoito horas, enquanto conferia as notas da terceira série do Ensino Médio.

Telefone vibrou à mesa. Pais, alunos, professores, diretora, colegas de coordenação. Todos eles justificam o fato de meu aparelho permanecer no modo silencioso desde o dia de sua compra. Ao deslizar meu dedo pela tela para atender a chamada, a ligação foi encerrada. Era Vó.

Vó não é minha avó. Mas é. Todos aqueles que convivem comigo encaram com naturalidade minha parentalidade clandestina. Vó é uma delas. Ela, assim como alguns irmãos e meu filho, não compartilham do mesmo sangue que eu, e me conhecera após os meus vinte e cinco anos. Ainda que seu neto e meu irmão tivesse partido para o sudeste do estado em março do ano passado, nosso contato permaneceu, como bons neto e vó que somos. Dia dos avós, aniversário de ambos, saudades ou novidades acerca do meu irmão, sempre houve um motivo para uma breve ligação, uma vez ao mês que seja.

Meu coração se agitou de alegria. Em uma de suas ligações, ela me comunicara que meu irmão viria para a cidade, passar um tempo conosco. Talvez fosse um convite para um café, e ao chegar lá eu me depararia com ele sentado no sofá e de braços abertos, prontos para receber meu beijo e abraço. E se ele abrisse a porta quando lá eu chegasse, contando que ficaria na até o final do ano? Para não estragar surpresas, evitei pensar demais e achei de bom grado retornar de imediato a ligação.

Como se ainda estivesse com o celular em mãos, não tardou que ela atendesse. Oi, meu neto, que saudade. Meu peito aqueceu, e sem esforço, sorri. Está chegando meu aniversário, e gostaria que você estivesse aqui conosco, para a gente se despedir. Minha língua dobrou-se entre meus dentes, a respiração cessou e senti meus pés formigarem. Estou indo embora para Fortaleza, e no meu aniverário quero me despedir de meus entes queridos. As pessoas por aqui não estão gostando muito da ideia, mas nem tudo na vida é como a gente quer, não é mesmo.

De fato. Não me senti à vontade para perguntar-lhe o motivo que a levaria embora para tão longe, por isso aguardei alguma informação a respeito. Não me recordo de ela ter parentes em Fortaleza. Estava eu tão desnorteado, que não compreendera que não apenas ela partiria, mas toda a família. Minha filha foi promovida. Todos nós iremos embora.

Todos.

É demasiadamente empolgante ouvir que a mãe de seu irmão foi promovida. A notícia está diretamente ligada a sucesso profissional, bem-estar e prosperidade. E demasiadamente frustrante foi entender que, se a família do meu irmão, o qual vive hoje em São Paulo, está partindo para Fortaleza, as nossas possibilidades de reencontro praticamente se anulam. Meus olhos corriam pelo chão branco do corredor frente à minha sala, e senti as frestas entre os pisos se abrirem e a saudade me engolir.

Tivera eu aproveitado os cafés após o trabalho, sucedidos pela poltrona reclinada e as carícias do pequeno cachorrinho que não parava de saltar de alegria sobre mim, entre lambidas e latidos? Usufruí eu das partidas de futebol no videogame, ainda que tivesse que aceitar que minhas habilidades eram infinitamente inferiores? Cada abraço de chegada ou de partida foram dados com a significação que eles mereciam? Poderia eu ter cantado mais uma música junto a meu irmão no Karaokê nas festas de família, embora nossos gostos musicais fossem tão distintos? E se eu tivesse rejeitado meu sono mais um pouquinho, só para ouvir mais uma peripécia da infância de meu irmão contada à mesa por sua mãe? Deveria eu ter pulado na piscina com a Vó em seu aniversário de setenta anos, em vez de ter rejeitado o momento por não estar com a roupa apropriada? E todos os beijos na testa da Vó, foram suficientes? E todas as vezes que acordei, após o almoço, e meu irmão dormia no sofá, observei-o em silêncio? Beijei-lhe cuidadosamente a cabeça antes de voltar ao trabalho sem que o acordasse?

A tempestade de lembranças foi interrompida pela vozinha embargada do outro lado da linha, que desejava minha presença em sua festinha de aniversário. E sua despedida. Ainda com os olhos ao chão e monossilábico, procurei fragmentos do meu coração que ali se despedaçara. Ao fim do telefonema, o gosto amargo do nunca mais. Não o nunca mais do que está porvir, pois este não me pertence. Mas o nunca mais daquilo que passou, daquilo que vivemos, que não mais poderá ser revivido, apenas reapreciado por intermédio de meus vocábulos perdidos nesta folha onde derramo minhas memórias, de riso ou de pranto.

Bolo de cenoura

 

  

A sexta-feira que nascia era azul e ensolarada, como tinha que ser uma sexta-feira na minha cidade durante o mês de julho, uma vez que a temporada de chuvas constantes costuma-se encerrar ao final do mês anterior. Precisava me organizar para a viagem que realizaria no dia seguinte, para o casamento de um amigo de infância, cuja cerimônia ocorreria na cidade grande onde ele mora.

Entre malas, gravatas e sapatos, recebi a mensagem de um amigo não tão antigo para ser considerado “velho amigo”, mas não tão recente para não receber a devida importância que lhe darei aqui. Tudo certo para daqui a pouco? Perguntei-lhe, e ele avisou que em instantes ficaria pronto e eu poderia ir buscá-lo em casa.

Não posso negar que se trata de uma amizade que anos atrás eu jamais imaginaria trazer em minha casa para almoçar e passar o dia, tendo em vista a forma como ele me foi apresentado. Estranho, sombrio e um pouco psicopata foram apenas alguns dos adjetivos que puseram em meu colo quando eu o encontrei pela primeira vez. E, de fato, todas as pessoas ao nosso redor agiam de forma que confirmassem essa falsa verdade a que fui exposto logo em nosso primeiro contato. O tipo de pessoa que todo mundo que conhece alega já ter sentido medo em algum momento de suas vidas, seja por uma fala ou comportamento apresentado de maneira atípica.

Atípico. Esse é o adjetivo que, sem medo ou rótulos, posso atribuir-lhe sem receio de estar provocando um mau julgamento acerca de sua pessoa. Você é a única pessoa que ele respeita ou por quem ele demonstra qualquer sentimento. Ouvi isso, não poucas vezes, e tal colocação me deixava entre o lisonjeado conforto e o inevitável medo do indivíduo com quem paulatinamente eu estreitava os laços. Entretanto, foram esses laços que me fizeram confrontar toda e qualquer opinião ao seu respeito, posto que nossa relação de amizade me revelava exatamente o contrário.

Participamos, junto, de uma apresentação teatral, da qual ele julga se envergonhar até hoje, diga-se de passagem. O palco de um teatro é o último lugar onde se imaginaria encontrá-lo, pois é de sua natureza a aversão a qualquer tipo de exposição de sua imagem. Todavia ele esteve ali. Não digo que contra a sua vontade, há quem diga que foi por consideração a mim. Sendo esse o motivo, eu realmente devo ter o mínimo de importância que seja, aos seus olhos. A propósito, seus olhos castanhos parecem longans maduros que tudo observam minuciosamente, detalhe por detalhe; quando fitados por outrem, eles revelam ter contato direto com a alma de quem ousar encará-los.

Cheguei à portaria de seu condomínio, onde fui recebido com o tradicional beijo e abraço com o qual cumprimento todo e qualquer amigo. Seguimos para uma mercearia, cuja existência e localização me surpreenderam, uma vez que o espaço revelava que sua existência é de longa data, mas da qual jamais tive conhecimento, ainda que ela se localize a caminho de meu trabalho.

Quantas batatas? Trouxe-me de volta à realidade, enquanto eu me perdia decidindo qual massa de bolo eu compraria para a sobremesa. Diferente de mim, ele foi assertivo e não hesito em determinar sua preferência. De cenoura, com cobertura de chocolate, por favor. Sem retrucar, apanhei os materiais selecionados e o encontrei na fila do pagamento. Dividimos a conta e seguimos viagem para a minha casa.

Como de praxe, ele foi muito bem recebido pelos meus gatos, em especial pelo branquinho, o mais agitado, porém também o mais carinhoso. Não tardou para que ele revelasse que nunca havia visto gatos tão hospitaleiros, uma vez que eles costumam se esconder ao encontrar estranhos. Vamos jogar xadrez? Desafiei-o, todavia ele achou mais inteligente preparar o almoço para que pudéssemos jogar enquanto a lasanha estivesse no forno. Ajudamos um ao outro, salvo o fato de que o perfeccionismo que ele apresentou ao amassar as batatas tenha me irritado um pouco.

Sua linha de pensamento era unifocal, e a multifocalidade proveniente de minha hiperatividade se utilizou disso para que eu pudesse derrotá-lo no xadrez três vezes consecutivas sem muito esforço. Ao término da terceira partida, ele deu um sorriso sem graça, aceitando meu triunfo. Não fica com raiva de mim não, viu? Levantei-me da cadeira, beijei-lhe o rosto em tom de brincadeira e satisfação com minha vitória.

A lasanha estava pronta, entretanto precisávamos decidir se compraríamos o leite que esquecemos ou usaríamos o creme de leite para a preparação do bolo vindouro. Como ambos não estavam dispostos a sair de cara para o que quer que fosse, arriscamos sem medo de errar o uso do creme de leite, que nos caiu como uma luva. Enquanto preparava a calda de chocolate, notei sua concentração incomum perante à tela de celular. É um jogo que jogo com um pessoal da Índia, riu consciente de que eu iria me surpreender com aquela informação. Então se dispôs a detalhar todas as funcionalidades de seu joguinho, e até me apresentou o grupo do qual ele faz parte, em que as pessoas conversam em sua língua nativa cujo significado ele precisa se desdobrar para compreender.

Após o almoço, rendi-me aos encantos  de meu tapete, e percebendo o quanto eu estava à vontade, ele fez o mesmo no sofá. Não é possível mensurar quando e por quanto tempo cochilei, mas asseguro que não foi por muito tempo. Sentei-me e nos pusemos a conversar sobre tudo o que nos viesse à mente, sem preocupação com filtros impostos socialmente para com a conversa entre dois amigos adultos, seja sobre a sessão na psicóloga ou sobre relacionamentos antigos que se enveredaram para o fim.

Falamos do passado, de amigos em comum, relacionamentos amorosos anteriores e um pouco sobre os atuais, e assim consumimos as horas a fio que se rendiam ao nosso bom papo. Quero bolo de cenoura, pediu-me quando sentiu que o papo já esfriara um pouco. Peguei-o com cuidado para não machucar as mãos, posto que ele esfriava o sobre o balcão da cozinha, e repousei-o sobre a mesa. Comemos bastante e bebemos, mas nem tanto, visto que o refrigerante já estava perto do fim após ser devolvido à geladeira ao fim do almoço.

Como precisava prestigiar a exposição artística de minha irmã mais velha, comuniquei-o que era chegado o momento em que me fazia necessário tomar banho e me organizar para ir ao encontro dela, no shopping center. Reapareci à sua presença instantes depois, devido à rapidez com que tomo banho e me arrumo para sair. Abri a porta, sem despedidas, pois precisava cumprir meu papel de deixá-lo em casa novamente.

No carro, procurei em suas mãos a agressividade que o acusavam ter e não a encontrei. Apenas a cumprimentei no dia em que ele estava prestes a entrar em confronto fisicamente com um amigo e eu corajosamente esbravejei que se aquilo acontecesse eu não pouparia esforços para estapear cada um dos dois. Não sei como nem por que tive essa coragem, mas é válido dizer que funcionou naquele dia, e eu fui o único capaz da apaziguar aquele conflito. E se eu não o conhecer de verdade? Cheguei a imaginar, mas preferi depositar minha fé na crença de que sou um dos poucos que o conhecem, que ele permitiu conhecê-lo de verdade.

Acabada a exposição, recordei-me de que eu necessitava me preparar para a viagem que realizaria amanhã. Liguei para o salão de beleza e agradeci a Deus por ele ainda estar em seu pleno funcionamento às vinte horas de uma sexta-feira pandêmica. Visual repaginado, voltei para casa e fiz as malas sem muita dificuldade, afinal eu permaneceria naquela cidade por apenas dois dias. Tive sorte de encontrar passagem para a manhã do sábado, e sosseguei diante de minha irresponsabilidade de resolver tudo de maneira demasiadamente apressada e urgente.

Abri a geladeira e vi que ainda havia parte majestosa da lasanha e o bolo praticamente inteiro, os quais seriam desperdiçados, pois era certo que ao retornar os encontraria embolorados e estragados na geladeira. Mirei o relógio, e eram quase vinte e duas horas. Por sinal, eu já deveria estar dormindo naquele horário, contudo naquele dia fiz diferente. Tudo ficou muito bom, aquela lasanha estava de outro mundo. Certifiquei-me de que era o certo a se fazer. Vou levar aí, então. Se ela permanecer na geladeira, estraga. A essa hora, nego? Perguntou-me utilizando o vocativo que sempre utiliza ao se dirigir a mim.

Entrei no carro e fui guiando-o junto às vasilhas que carregava. Dessas de sorvete, claro, para não haver o risco de perder alguma de minhas tupperware. Em poucos minutos cheguei lá, apesar de ter contado com a sorte de haver uma blitz na avenida e ter sido liberado sem abordagem policial. Licenciamento do carro atrasado, e quem deve teme. Parei o carro próximo à portaria e logo ele chegou vestindo uma camiseta preta e um sorriso. Entrou no carro e me beijou o rosto e abraçou-me como se tivéssemos nos encontrando a primeira vez em anos. Foi sua forma de agradecimento, li de imediato.

Boa viagem, ele me disse antes de fechar a porta. Pelo outro lado do vidro, um novo sorriso, esse um pouco mais tímido. Você sabe ou eu preciso te dizer? Eu sei, respondi rindo com leveza. Através do vidro, mando-me um beijo pela última vez naquele dia e eu retornei para a casa que recebera mais cedo, alguém cujas circunstâncias confirmariam um desafeto sem dificuldade, e do contrário tornara-se uma daquelas poucas companhias que nos permitem sermos autênticos o tempo inteiro, como tem que ser. Com ele descobri que nem toda capa permite que seu livro seja julgado, e se ele for lido por alguém que não tenha a sensibilidade literária necessária para compreendê-lo como ele merece, certamente ele se torna ilegível e indigesto. Mas quando se é um leitor ativo e persistente, não há bolo de cenoura ou lasanha que se compare ao prazeroso saber de uma boa leitura.

Paternidade

 

O céu limpo e fresco, aliado à monotonia dominical, me impulsionaria a ir à praia naquele domingo de agosto, salvo se não fosse o que aquela data comemorava. Era dia dos pais. O gosto amargo e saudosista da infância ao lado do avô misturou-se com o sabor adocicado do leite gelado no café da manhã, o qual me ajudaria a digerir as memórias afetivas que vivenciava já tão cedo. Há quem dissesse que o mal-estar que essa data comemorativa me provoca tenha relação com a ausência da figura paterna durante toda a minha vida, mas reitero que ela sempre foi bem-vinda nos anos que compartilhei com meu avô, falecido à flor de minha adolescência.

O último pedaço do pão recheado com requeijão cremoso deu uma pausa em minhas lembranças e sem muito resistir dispus-me a lavar os pratos, para que eles não se acumulassem de maneira diretamente proporcional a minha preguiça matinal. Enxuguei minhas mãos e me entreguei à maciez negra do meu tapete e de minhas lembranças que ainda se mantinham vivas no calor de meus pensamentos.

Você vem me ver? O almoço seria, como de tradição, na casa da avó da namorada, mas permaneci ali deitado, e neguei minha presença na reunião, posto que possivelmente eu não me manteria comunicativo e bem-humorado por muitas horas e me tornaria, assim, um convidado inconveniente e mal-educado. Deixei o celular adormecido no tapete e me vi abraçado às almofadas que estavam ao meu alcance naquele instante. Costumeiramente as horas aos domingos tendem a passar mais lentamente, e não havia motivo para que aquele dia fosse diferente. O ponteiro dos segundos do relógio da sala marcava de maneira audível seu passo, ainda assim não impediu que a maciez das almofadas me fizesse adormecer.

Acordei pouco depois das onze horas, e ao abrir a geladeira em busca de água para me hidratar percebi que precisaria comprar ingredientes para a realização do meu almoço. A falta de disposição foi vencida pela necessidade e então fui à mercearia comprar o que era preciso para cozinhar o que sei fazer de melhor: lasanha com cobertura de purê de batata. Minha impetuosidade trouxe também a mistura para bolo e os ingredientes para a sua cobertura.

Hoje eu mereço, sorri. Durante meu crescimento, encontrei a figura paterna por duas vezes, sendo em meu avô, durante a minha infância e adolescência, e em mim mesmo, já na vida adulta. Estranha essa ideia de ter me tornado meu próprio pai, todavia não negarei que foi isso o que aconteceu. Admito que foi uma estratégia de meu inconsciente um pouco arriscada, bem como um pouco dolorosa, mas não devo negar jamais que ela existiu. Eu fui um ótimo pai para mim, e para quem me propus a ser, e por isso hoje eu mereço comemorar comigo meu dia, disse a mim mesmo ao receber o comprovante de pagamento no caixa da mercearia.

A tarde já se fazia presente, a refeição estava pronta, quando recebi uma mensagem de áudio quentinha como o bolo de cenoura que eu retirava do forno. Estou indo para a casa de meu pai agora, e quando eu sair de lá passarei aí, pode ser? Confesso neste parágrafo que parte de minha tristeza matinal se deu por conta do medo de ser esquecido por meu filho naquele dia que figurativamente me representava. Como não somos ligados biologicamente, não havia por que cobrar a presença dele naquele dia comigo, mas minhas expectativas eram imensuráveis, seja por uma ligação ou mensagem, ainda que o desejo fosse que ele se fizesse presente fisicamente. Minha paternidade amadureceu bastante no decorrer dos últimos cinco anos de convívio, uma vez que em tempos anteriores cheguei até a me incomodar por vezes com o inevitável fato de que via de regra o pai dele não era eu. Difícil era me convencer disso. Confesso que nunca me convenci.

A responsável fora a tia dele, irmã de seu pai. Você é o pai dele. Disse-me uma vez aquela senhora sentada à minha mesa, vestida com a seriedade que seu cargo de diretora de escola exigia de si. Você diz ser o coordenador dele, mas é muito mais que isso. Você o adotou. Você cuida dele como filho, você é o pai. E foi ali que tudo começou. Poderia eu, no auge de meus vinte e seis anos, tomar posse involuntariamente da paternidade de um garoto de quatorze anos cuja história se assemelhava à minha no tocante à ausência paterna em nossas vidas? Com admiração, ela justificava sua fala comprovadamente através de meu comportamento e minha relação com o garoto. Aquele encontro foi o ponto de partida da construção de minha história com aquele que posteriormente eu chamaria de filho, e traria para mim toda a responsabilidade paterna perante ele por todos os dias que a partir dali se sucederiam.

O almoço estava à mesa, e pacientemente o esperei sentado ao sofá com o celular em mãos, na expectativa de sua chegada. A fome fez morada em meu interior, afinal, para quem habitualmente almoça ao meio dia, esperar até às quinze horas é inevitavelmente desconfortável. E se ele simplesmente não vier? Levantei-me, inquieto, e me pus a caminhar pela casa a fim de eliminar a angústia que residia na possibilidade de estar fadado a reviver a amarga experiência da vã espera que tive aos treze. E, de fato, revivi outrora, por diversas vezes. Além dele, tive outros filhos clandestinos, por quem me dediquei por anos, e todos eles me deram como destino a sarjeta de suas vidas à medida que cresciam, apesar de ele, genuinamente, ter sido o único que me fora filho, de fato, dentro de mim.

A linha indigesta de pensamentos negativos foi interrompida com o toque da campainha. Antes de abrir a porta, verifiquei no olho mágico se se tratava de quem eu esperava. Era ele. Afoitamente, abri a porta e não esperei que ele adentrasse a sala para que eu o recebesse com forte abraço. Feliz dia dos pais, disse a voz repousada sobre meu ombro. Fechei a porta enquanto ele retirava da mochila uma caixa de bombons que me fez beijá-lo o rosto e abraçá-lo novamente. Estou morrendo de fome, desabafou ele fitando os pratos vazios posicionados sobre a mesa.

Entre uma mastigada e um gole de refrigerante, experienciei a interessante sensação paterna de admirar o filho e sentir que não há tempo que faça a gente abandonar a ideia de que ainda que eles cresçam e se tornem homens e mulheres, sempre serão nossas crianças. Perante mim, não estava apenas um homem em formação de dezenove anos, que falava sobre seus planos para o futuro ou os amores que encontrava no caminho, estava o mesmo adolescente de dezesseis anos que três anos atrás me pediu para passar o dia dos pais comigo pela primeira vez. Sorri com a alma.

Felizmente o banquete fora registrado antes que ambas as feras o devorassem impiedosamente. Sentados ao sofá, uma fotografia. Na tela, pai e filho abraçados de lado, com olhar preenchido por serenidade. Essa foto ficou muito boa. É a nossa melhor foto, estamos ficando cada vez mais parecidos, disse-me com ar de orgulho e satisfação. Senti em suas palavras que ser parecido comigo era motivo de sua gratidão a Deus, e mal sabia ele que ali ele me dava o seu maior presente.

A tarde findava e ele adormeceu na cama do quarto, enquanto eu fiquei assistindo a clipes de música no sofá da sala para aliviar o tédio. Já havia escurecido quando ele surgiu cambaleando no corredor em passos lentos e preguiçosos esfregando os olhos e perguntando que horas eram. Pediu bolo de cenoura, como era de se esperar de um filho meu. Servi-o e lhe preparei a surpresa de conversar com seu melhor amigo, para que pudéssemos confraternizar juntos àquela noite de dia dos pais.

Garoto divertido, alto-astral. Brincalhão, mas ajuizado, desses que a gente que é pai ama que seja amigo de nossos filhos. Entre orla e pizzaria, optamos por buscá-lo e trazê-lo para casa. É hoje que eu te derroto no futebol de botão, desafiou-me meu “filho por tabela”, como eu o chamo carinhosamente, uma vez que ele e meu filho se têm por irmãos. Sem muitas surpresas, ganhei a primeira partida modestamente e massacrei-o em seguida, e deixei-os jogando, divertindo-me com a falta de habilidade que eles demonstravam ter no jogo. Obviamente, tirei vantagem do fato de minha geração ter usufruído de jogos palpáveis como futebol de botão e pebolim, em contraposição à geração digital da qual eles fazem parte. A simplicidade habitava na realização de um momento em que três estranhos se constituíam de forma tão bonita e sincera como família.

Depois de comermos, e bebermos, e rirmos, e jogarmos, decidi contra a minha vontade que era hora de deixá-los em suas casas, pois trabalharia no dia seguinte. Pedi ao meu filho, que chegara à tarde de bicicleta, que me acompanhasse até à casa do amigo, e ao retornarmos, ele partiria para seu lar. Sem titubear, ele atendeu à solicitação. No carro, um sambinha de fim de noite para deixar o céu estrelado ainda mais bonito. Deixamos nosso amigo em casa, agradecemos sua presença e retornamos para o condomínio onde moro.

Ao chegar, subimos ao apartamento para buscar a mochila que ele deixara no sofá, junto ao seu carregador de celular. No coração, aquele leve aperto de despedida, ainda que pairasse sobre nós a certeza de incontáveis reencontros que estavam por vir. Obrigado, ouvi sua voz antes que eu movesse a fechadura. Por tudo. Seu olhar de gratidão desarmou quaisquer palavras que eu tivesse a lhe dizer naquele momento. Tudo. Pronome indefinido, que tem por significado “a totalidade das coisas; o que é importante, essencial; o que de fato importa”. Meu filho me agradeceu por tudo. Eu lhe agradeci em retorno com um abraço. Obrigado por aceitar ser meu filho, sussurrei. Ele riu. Obrigado por ter me escolhido, entre todas as pessoas que você já conheceu, para ser seu filho. Nossa história daria um belo livro, completou. Pediu-me a bênção, beijou minha mão, eu beijei-lhe a sua de volta, e se retirou no corredor escuro do edifício, em direção às escadas.

E foi quando finalmente percebi que ele me diz todos os dias aquilo que eu sempre esperava que ele dissesse por todos esses anos. Ansiava, dia após dia, como o pai que espera o filho recém-nascido dizer “papai” olhando-o nos olhos; ou como o cão que espera seu dono à porta após uma viagem ou um longo dia de trabalho. Eu esperei por todos esses anos por algo que ele me dizia em silêncio cotidianamente. Todavia eu jamais ouvia, talvez porque não houvesse som; eu jamais lia, porque não estivesse escrito. Estava no abraço. Estava no riso. Estava guardado na caixa de chocolate, ou atrás das cortinas, na fotografia. Estava entre uma partida e outra de futebol de botão, ou no intervalo de um nano segundo entre uma piada e o riso. Estava no obrigado. E eu não me atentara porque não havia vocativo. Talvez haja, um dia, mas a partir dali pouco me importa o dia em que isso venha a acontecer, porque enfim eu percebi que sempre fora dito.

Naquele dia ele me chamou de pai.

A Partida

 

Era mês de Copa do Mundo e antes do banho o pequeno acabava de assistir Áustria e Camarões empatarem por um a um naquela noite que começara. Terminada a partida, saltou do sofá e procurou sua tabelinha colorida para anotar o placar com sua letrinha recém-alfabetizada. Talvez não tão recente, uma vez que aos oito anos ele já lia e escrevia com elogiosa fluência. Precisava ainda melhorar a caligrafia, apontava a professora, mas isso não tirava dele o seu destaque como um dos alunos mais aplicados da turma.

Anotado o placar, correu para o banho antes de tomar café à mesa com Vovô. Cuscuz com ovos. Com um pouco de leite por cima e a gema mole, é claro. Acompanhada a refeição com seu copo de leite e achocolatado, o menino se deliciava à presença do avô, que sempre após o cuscuz roía o ossinho da galinha cozida, preparada carinhosamente pela Vovó.

Vá para a sala, que eu vou limpar a mesa e lavar os pratos, ordenou a avó. Ele foi de imediato, pois Vovó não gostava de ter de pedir duas vezes. Os jogos daquele dia de Copa já haviam sido encerrados e o garotinho não sabia o que o divertiria antes que ele fosse para a cama. Lembrou então do joguinho de xadrez que havia ganhado da prima que voltara da Disney e foi buscá-lo, de imediato. Seus irmãos mais velhos não estavam a fim de brincar e seu irmão mais novo era novo demais para compreender a natureza do jogo. Resolveu brincar sozinho, no sofá da sala.

Como as peças possuíam uma base de ímã que as firmavam no tabuleiro de metal, ele não temeu que sua inquietude enquanto se movimentava no estofado do sofá pudesse derrubá-las. Caminhando pelo corredor vinha uma figura alta e magra, a qual andava com dificuldade, sob o auxílio de sua esposa. Sua barba bem feita e seu cabelo liso não disfarçavam o quanto ele estava abatido pela doença que o acometera e surpreendera a todos naquele ano.

Você sabe jogar xadrez? Veio do alto a voz rouca do homem que o interpelava. Ao levantar os olhos, sorriu para aqueles olhos castanhos que vestiam sua tradicional combinação de camisa branca e jaqueta jeans para se proteger do sereno da noite, os quais aguardavam sua resposta. Sei, sim, quer que eu te ensine? Ainda que abatido, o tio sorriu. Então me explique como é, desafiou ao jovenzinho.

Essas peças aqui, apontou o dedinho indicador para os peões, são os soldados do Rei. Eles são lentinhos, andam apenas uma casinha para a frente, mas servem para proteger as peças mais fortes que ficam atrás. Aqui na ponta são as torres, que podem ir para a frente e para os lados. Lá os soldados ficam escondidos esperando os inimigos chegarem. Os cavalos andam em ‘L’  e do lado deles ficam os bispos, que andam na diagonal. Tem um que fica na casa preta e outro na casa branca. Esta aqui é a Rainha, a peça mais forte do jogo, pois ela pode ir para todas as direções. E este é o Rei, que todo mundo tem que defender, pois se sofrer xeque-mate o jogo acaba.

Xeque-mate? Fez-se de desentendido, só para observar por mais um instante o sobrinho explicando as regras. É quando o Rei fica cercado e não consegue mais se defender nem fugir para lugar nenhum. Com um sorriso camuflado pela barba, Titio confirmou sua satisfeita compreensão. Então, vamos jogar? Animou-se o pequenino. Hoje eu estou cansado, vá treinando, que um dia a gente joga. E saiu caminhando com lentidão em direção ao quarto, auxiliado pela esposa, cujo olhar fundo revelava insuportável cansaço. Ele era pequeno demais para compreender o quanto o tio estava impossibilitado de jogar aquela partida, ainda que fosse pouco mais de sete horas da noite, mas respeitou sua decisão.

Teve uma ideia que lhe pareceu brilhante. Percebeu que as luzes do quarto ainda estavam acesas, e aproximou-se da cama de Titio para contar-lhe uma história incompleta que escreveu em seu caderninho de capa verde. Inspirada no seu xadrez, chamava-se “Quatrocentos Anos”, e era sobre reis e rainhas que conquistaram e perderam riquezas e territórios durante séculos de guerras e batalhas, com o auxílio de soldados montados em sua cavalaria. Titio apenas o observava. Silencioso, seus olhos mal respondiam. Ele precisa descansar, pediu sua esposa que o pequeno se retirasse, para que enfim se apagassem as luzes.

Dias depois, num fim de tarde demasiadamente chuvoso, o país estava em festa. A seleção brasileira de futebol participaria mais uma vez da final de uma Copa do Mundo e as expectativas para o pentacampeonato eram elevadíssimas. Diferente da estreia, que reuniu a família na sala de estar para contemplar o primeiro triunfo dos canarinhos sobre a amadora Escócia, neste dia o jogo foi assistido no quarto dos fundos, no quintal. Deitado no colo de Mamãe, ele se indagava por que todos não estavam novamente reunidos, em festa, como fora nos demais jogos da Copa. Tios, primos, irmãos, Vovô e Vovó. Seu tio não está bem hoje, sussurrou mamãe com voz pesarosa antes de o narrador anunciar o início da trágica partida que terminara com a amarga derrota de nossa seleção por três a zero, para os franceses, donos da casa, os quais conquistavam seu primeiro título.

Foi quando o tempo passou e foi determinado: você vai passar um tempo na casa de sua madrinha. O tempo que for necessário. Primos, cachorrinha, casa grande, a ideia não parecia ser nada ruim. E pelo tempo que for necessário. E de fato não era, salvo pelo motivo da estadia. A doença do tio avançava, e era na casa da Vovó, onde o pequeno morava com a mãe e os irmãos, que o tio recebia os cuidados médicos necessários. E enquanto os dias se passavam, pensava-se quando ocorreria a tão esperada partida de xadrez. Será que Titio ainda lembra as regras? Tudo bem, era só ensiná-las novamente.

Já era novembro, quando, ao acordar, o menino decidiu sair do quarto, em silêncio, para não acordar as primas, que ainda dormiam. Eram cinco horas da manhã. Viu pela fresta da porta entreaberta seus padrinhos elegantemente vestidos de roupas pretas, tais quais o Rei e a Rainha de seu joguinho de xadrez. Eles caminhavam pela casa, apressados, e falavam baixinho, então o garoto optou por permanecer na cama.

No café da manhã, pão, queijo, presunto e silêncio. As crianças à mesa comeram depressa para não se atrasarem para a aula. A prima mais velha anunciou que os pais dela estavam ocupados e que seu irmão os buscaria naquele dia na escolinha.

Acabado o turno matutino, ele esperou a chegada de seu primo, sentado no pátio da escola, assistindo aos colegas voltarem para casa e à chegada dos alunos do turno vespertino. Sentiu fome e receio de ter sido esquecido, mas não tardou que o primo chegasse. Na volta para casa, um silêncio incômodo. O garotinho e a prima mais nova apenas se entreolhavam desentendidos do que se passava. Ao volante, o primo chorava. O garotinho apenas observava em sua quietude.

Naquela tarde de quinta-feira, a madrinha os convocou à sala, interrompendo a brincadeira no quintal. Arrume suas coisas, hoje você voltará para casa. O jovenzinho sorriu, Titio certamente estava melhor. Finalmente aconteceria a tão aguardada partida de xadrez, e mal podia ele esperar para aplicar seu infalível xeque-mate. Além disso, poderia contar como seu povo enfim conquistou a paz e a prosperidade almejada por quatrocentos anos de batalhas sangrentas. Com seus jogos de botão, juntos poderiam jogar uma Copa do Mundo inteirinha, e...

Não será possível, interrompeu a madrinha seu devaneio. Seu tio está morto. O vão que separava as cadeiras de ambos no centro da sala parecia se transformar em um abismo. Mas, e a partida de xadrez? Dentro de si, sua respiração acelerava disfarçadamente, entrelaçada às memórias daquilo que jamais aconteceria um dia. Após o lanche, despediu-se do padrinho e primos e a Madrinha o levou para casa. No trajeto, via os edifícios da cidade, altos como as torres do seu tabuleiro. Frente à igrejinha, estava lá o bispo para celebrar mais um dia de missa. A vida por si só era um jogo de xadrez. Sua cidade era apelidada de tabuleiro de xadrez. Mas dentro do coração do menino, faltava uma peça.

Tendo chegado a casa, o menino atravessou a sala, pediu a bênção da Vovó e seguiu para o quarto vazio. Cama, cortinas e silêncio. Titio realmente não estava mais ali. E no crepúsculo daquela quinta-feira, aos recém completos nove anos de idade, ele aprendeu a regra mais difícil do xadrez da vida. Não importa o quão boa é a estratégia do jogador, ou a quantidade de peças que se tenha sob o próprio domínio, ou ainda se se é preto ou branco: sorrateiramente, a morte sempre nos aplicará o xeque-mate.

A Oração

 


Amanheceu um dia ensolarado e bonito, desses que nos impelem a ir à praia. Acordei cedo, como de costume, e me organizei para ir ao culto matutino na pequena igreja do bairro vizinho. Eram nove horas da manhã, e o azul do céu transmitia aquela paz única e dominical do primeiro e mais preguiçoso dia da semana. Enquanto dirigia, ouvia louvores e cantava-os suavemente em agradecimento a Deus por mais uma semana que se iniciava.

Ao sair da igrejinha, recordei-me de que precisava comprar alguns ingredientes para o almoço, ainda que houvesse dúvida se eu o prepararia ou optaria por almoçar em algum restaurante perto de casa. Escolhi, por hábito ou coragem, ir ao supermercado. Enquanto escolhia entre macarrão ou arroz, suco de jenipapo ou Coca-Cola, o celular vibrou. Era dia de vestibular, e eu havia prometido a meu primo que o encontraria à porta da faculdade onde ele realizaria a prova para desejar-lhe boa prova, a qual ocorrera em janeiro daquele ano por conta da pandemia que se instalava mundo afora.

Já estou pronto, você já está indo para lá? Eram exatamente as combinadas onze horas. Ri comigo mesmo, não por ser uma situação engraçada, mas por estar acostumado a lidar com pessoas mal resolvidas com horários marcados. Apressei-me com as compras e parti rumo ao seu encontro. Ele morava atrás da faculdade onde realizaria a prova, portanto pediu-me que o comunicasse quando lá estivesse. E assim fiz.

Apesar de chegar cedo, mal dera 11h15, já havia bastante gente, tanto para realizar o exame quanto para apoiar os estudantes. Muito menos que o habitual, diga-se de passagem, uma vez que enfrentávamos ainda a Covid-19. Encontrei por milagre uma vaga para estacionar, pois enquanto acompanhava a fila de carros que entregava seus filhos ao teste, avistei um automóvel que sinalizava saída.

Na calçada, mulheres me ofereciam descontos em matrículas em universidades a bolsas de estudos para estudantes recém-saídos do Ensino Médio. Eu já tenho mais de trinta, mas agradeço. Ela me encarou, desacreditada, e eu lhe respondi que possivelmente a máscara de proteção escondia minha idade. Ofereceram-me água, eu aceitei. O sol à medida que abençoava também castigava os desavisados como eu que não costumam usar protetor solar.

Surge, então, na esquina, um jovem tímido e muito branco, o qual não tive dificuldade de reconhecer. Ergui o braço direito, em aceno, e ele de imediato  respondeu. Sua tranquilidade no caminhar escondia a tensão de quem tentava pela segunda vez o ingresso no curso de Direito da Universidade Federal. A camisa branca com detalhes em cinza nos ombros e a bermuda leve e cor-de-vinho, bem como a máscara branca com detalhes quadriculados transmitiam serenidade e segurança, mas os olhos miúdos e agitados e o balançar das pernas enquanto conversava não mentiam.

Não tivemos muito contato. Na vida pessoal, quase nenhum. O laço familiar que nos une é um pouco confuso e distante. Fomos descobertos como primos em uma reunião de pais na escola em que eu era seu professor, quando seu tio informou um parentesco de segundo ou terceiro grau com meu pai. Lembro também que ele não curtiu muito ao receber a informação, em seus 14 anos. Apesar de uma criança agitada na escola, dessas que vivem suando pelo pátio e não gostam muito de fazer a lista de atividades de análise sintática, sempre foi um menino educado e respeitador. Nunca respondia ou alterava a voz para quem quer que seja. Lembro-me de que ele mudou de escola ao concluir o Ensino Fundamental, o que foi o suficiente para que perdêssemos o contato que de alguma forma a vida cruzou nosso caminho outra vez um ou dois anos depois e fez questão de nos devolver.

Está quente, aqui. Vamos buscar uma sombra? Caminhamos em direção à lateral do prédio da faculdade, mas fomos impedidos por um rapaz que ali trabalhava. É proibido ficar aqui, o local é sujeito a provocar aglomerações, informou. Em tom áspero, inclusive, mas eu não estava a fim de bancar o educador perante um rapaz de vinte e poucos anos. Apenas obedeci.

Olha, uma árvore. E não tem ninguém ali. Interessante como elementos simples como a sombra de uma árvore nos são potencialmente mais valiosos quando necessitamos deles. Sua pele alva se confundiria com o branco de sua blusa se não fosse as listras cinzas que ornamentavam o tecido de sua veste ou ainda o avermelhar que surgia consequente dos poucos minutos que estávamos debaixo do sol.

Apesar dos recentes dezoito anos, admirei-me como ele já era convicto de tantas coisas, especialmente aquelas que diziam respeito à fé e a seus projetos de vida. A criança que quando conhecera tinha não mais que onze anos tornara-se um rapaz sério e convicto, e isso soava tão bonito quanto assustador, haja vista a percepção de tempo. Meu peito se regava de orgulho, ainda que também de dúvida acerca de minha influência em seu crescimento.

Em meio ao diálogo, um dèja-vu. Não que eu estivesse ali outrora, não era sobre isso. Revivi ali as minhas angústias, planos e desejos de meus saudosos dezoito anos, quando as oportunidades se escancaravam em minha vida. Apesar de nossa conversa se desenrolar de maneira leve, por um momento alcancei empatia tal que pude reviver o que era novo para ele naquele instante. Naquele contexto,  não assumi o papel da voz da experiência, até porque meu nível de maturidade encurtava um pouco nossa distância temporal de treze anos, mas senti espaço para compartilhar experiências positivas e negativas de minha jornada pós-vestibular. Acredite, jovem, há vida após ele. Ele sorriu com os olhos.

O movimento de estudantes em direção à entrada do prédio chamou a atenção. Era chegada a hora de sua prova e precisávamos nos despedir. Posso pedir uma coisa? Claro, respondi-lhe. Faz uma oração por mim. O barulho ao nosso redor imediatamente se ensurdeceu quando o ouvi dizer-me. Não sei qual o nível de referência espiritual que eu era para ele, acontece que era um pedido que transcendia o campo semântico das palavras, ou ainda da linguagem corporal dos olhos que me fitavam: ele me pediu com a alma. Fechei os olhos e impus minhas mãos sobre seus ombros, ele respondeu fazendo o mesmo. Oramos de tal modo que nada que nos fosse externo seria ouvido ou sentido até que novamente abríssemos os olhos.

Obrigado, primo. Essa era a oração que eu precisava ouvir para fazer uma prova tranquilo. Ela tirou dos meus ombros a ansiedade que eu vinha sentindo, e não tinha ninguém melhor que você para me transmitir essa paz. As palavras se perderam em algum ponto do meu aparelho fonador, contudo dei dois toques em seu peito com a mão esquerda, de modo que ele compreendeu a mensagem de agradecimento.

Nossos passos em direção contrária nos afastava paulatinamente, e eu o observava a distância até que ele se misturasse à multidão de estudantes que adentrava o prédio da faculdade. Ainda que o tivesse perdido de vista por trás dos portões que se fechavam e das pessoas que se movimentavam, eu o acompanhava de perto. Em espírito. Em oração.

A SOPA

 

Já escurecera, ainda assim eu permanecia frente a meu computador, sentado em minha cadeira que se tornava gradativamente menos confortável com o avanço das horas. Olhos cansados, a coluna pedia cama. Mas o evento seria no dia seguinte, e eu precisava concluir a digitação dos poemas que seriam entregues aos jurados do concurso artístico do dia seguinte. A ansiedade pela realização do evento crescia junto ao palco que se erguia perante mim, e eu podia trabalhar e acompanhar toda a sua organização graças à ampla janela que havia ali na coordenação. Luzes, plano de fundo, cadeiras para a plateia, ornamentação de palco, tudo se inclinava para que o amanhã fosse um dia grandioso.

Meu corpo já não conseguia produzir mais. Além disso, meu filho me esperava no pátio, cansado e faminto, e dependia de mim para voltar para casa. Aliei todas  as minhas emoções e sentimentos contrários à minha permanência ali e decidi que terminaria meus afazeres em casa.

Vamos, filho. Ele pegou de imediato sua mochila, levantou e acompanhou meus passos largos e sempre agitados. No carro, o alívio de uma sexta-feira à noite misturado ao pesar de uma tarefa interminável. A procrastinação tem seu preço e eu precisaria pagá-lo naquela noite. Meu filho, calado e voltado para a tela de seu celular, como todo adolescente de dezessete anos. Preparado para amanhã? Ele respondeu positivamente, não com a voz, mas com o balançar da cabeça sem desviar o olhar para quem com ele puxava assunto. Precisarei ensaiar em casa, eu trouxe o saxofone, daí o senhor ouve e diz se está bom, disse ele após alguns segundos de silêncio acompanhado do incessante labor do limpador de para-brisas que deslizava sobre a chuva fina que caía.

Estávamos ao semáforo, e dessa vez fui eu quem respondi positivamente com o balançar de minha cabeça, não por revanchismo, mas porque havia recebido uma mensagem e aproveitei para lê-la ao sinal vermelho. Amanhã não poderei ir, estou com febre. Fosse um ano atrás eu agradeceria a ausência, na verdade sequer haveria o convite, uma vez que o remetente me era um desafeto. No entanto, naquela circunstância eu me importei; nossas amizades em comum, em especial meu irmão que partira uma semana antes para São Paulo, fizeram com que eu deixasse de detestá-lo para considerá-lo uma companhia ao menos aceitável, ocasionalmente.

Abriu. Tendo ouvido isso, enviei OK para o indivíduo e segui viagem. Por um instante levantei a possibilidade de ele ter mentido, e em vez de admitir que um evento artístico não lhe era atrativo, optou por escolher um motivo que anulasse quaisquer possibilidades de sua presença. Seu irmão, que fora meu amigo, costumava alertar que não acreditasse nele, e talvez ele tivesse razão. Pouco me importava se ele mentia, eu tinha coisas mais urgentes para me preocupar, por isso ao estacionar o carro já avisei a meu filho que tomasse banho enquanto eu organizava o café a fim de não perdermos tempo na nossa subida para casa.

Banho e café finalizados, fomos para o quarto concluir os preparativos para o evento. Ainda que chovesse, a noite era quente demais para permanecer na sala. Meu filho pegou a caixa de som e seu saxofone, enquanto eu ligava meu notebook e tirava da pasta todos os poemas a serem digitados. Ele era muito bom na música, precisava apenas se sentir mais seguro. Eu o ouvia enquanto dava continuidade a minha infindável digitação de textos. Não está ficando muito bom, acho que não vou me apresentar amanhã, anunciou. Nem pensar, ri com ar de reprovação.

A minha febre ainda não passou. Você se alimentou? Você precisa se alimentar, senão ela não vai passar, mesmo. Meu pai não está em casa, não deixou nada pronto e eu não sei cozinhar, então acho que vou dormir sem comer, mesmo.

Não, não vai. Olhei para todos aqueles papéis embaralhados sobre a cama, pensei na possibilidade de não conseguir concluir o trabalho naquela noite caso eu pausasse o processo de digitação. Pensei no risco que correria em dormir tarde e acordar cedo e ter de comandar um grande evento que exigiria de mim muita energia e disposição. O relógio já apontava 21h, e não havia sequer previsão de quando eu terminaria aquilo que mal começara a fazer. Mas eu sabia o que fazer. Saltei da cama e vesti uma camisa. Sugeri que meu filho ficasse em casa ensaiando, mas ele optou por me acompanhar. Desci as escadas com pressa e pedi que ele acionasse o GPS, graças a minha dificuldade em me localizar geograficamente.

No trajeto, ri-me de mim mesmo, tentando compreender por que naquele momento eu me preocupava tanto com ele. Por muitos anos ele me fora um desafeto, e eu nunca fiz questão de esconder; sua presença me desagradava, mas suportava apenas por ser irmão de um amigo, ou ainda por termos amizades em comum. Mas era justamente de mim que ele precisava naquela noite, e isso fez minha alma aquecer por dentro, ainda que o orgulho permanecesse como adversário.

Não era dele que o senhor não gostava? Perguntou meu filho ao revelar-lhe para quem eu entregaria a sopa quentinha guardada no potinho que eu conduzia para o carro. Pelo visto, minha ojeriza pelo jovem era até mais pública do que eu tinha conhecimento. Respondi-lhe com um sorriso e desconversei ligando o som do automóvel para distrai-lo com minha cantoria desafinada.

Saindo do carro, olhei para o seu condomínio portão adentro e logo o vi a distância, ainda que ele fosse baixo e magro. Ele aproximava-se lentamente, os braços cruzados nos quais roçava as próprias mãos indicando estar com frio. Tome, é para você. Sopa de macaxeira, espero que goste, até veio com um pãozinho francês de acompanhamento. Seus passos, que eram lentos, cessaram. De imediato interpretei que ele esperava que eu também me aproximasse, por isso direcionei-me até ele. Toma, e vê se come todo, entreguei-lhe o potinho com a sopa. Olhei-o nos olhos, e percebi que eles estavam vermelhos e marejados.

Abruptamente, ele me abraçou. Abraços não são acontecimentos extraordinários na minha vida, uma vez que o distribuo diuturnamente a meus amigos, mas aquele foi um abraço diferente. Não porque senti em meus braços seu corpo febril; aquele abraço me transmitiu tamanha gratidão que seu “obrigado” em seguida se perdeu no vento que ali atravessava. Comprimi com as mãos sua cabeça a meu peito, que ao fim do gesto continha duas gotinhas proveniente de suas lágrimas. E ali permanecemos em silêncio por alguns instantes. Um silêncio de um abraço, um abraço de gratidão. Em silêncio, uma barreira se quebrava dentro de mim.

E foi assim que saí de casa achando que curaria a doença de um corpo; e retornei com a certeza de que Deus me levou para que eu curasse minha alma.


“Dá de comer a seu inimigo no de dia de sua fome. E no dia de sua sede, dá-lhe de beber. Porque assim amontoarás brasas vivas sobre sua cabeça”. (Romanos 12:20)

 

O abraço

 

Sexta-feira. Essa palavra é um bálsamo para os ouvidos de qualquer profissional, em especial aqueles que trabalham envolvidos na educação de adolescentes. A papelada com a qual eu necessitava lidar diariamente estava espalhada sobre o vidro da minha mesa, de modo que eu não sabia qual parte do trabalho eu deveria finalizar primeiro. Eu e minha mania de causar digressões nos meus processos.

Os pés que gritavam pelo corredor já haviam subido as escadas e já estavam acomodados (ou incomodados?) em suas salas de aula, e eu então poderia raciocinar melhor como proceder diante de tantos afazeres. Sem perceber, os minutos foram passando, e em instantes os alunos retornariam ao pátio a fim de se organizarem para ir embora para suas casas.

A porta da minha sala abriu, mas eu estava deveras concentrado para erguer minha visão de imediato, como de costume. Ouvi meu nome. Pois não? Preciso falar com você, sussurrou a voz ferida. Olhei para ela. A professora me direcionou um olhar pesado, que me esfriou a espinha. Ninguém quer lidar com problemas de gravidade severa ao meio dia de uma sexta-feira de sol castigante. A fome já me roía os ossos, àquela altura, e o cansaço recaía sobre meus ombros e semblante.

Esperei que ela falasse, para não apressar a má notícia que eu já aguardava com minha respiração presa. Vim deixar este celular com você, e espero que você possa conversar com o aluno, ouvi-a recebendo o celular sobre a minha mesa empapelada. Tudo bem, aliviei a respiração. Sendo o problema esse, está tudo bem para mim, pensei. Conversar com alunos sobre uso de celular em sala de aula era o menor dos meus problemas, que não eram poucos. Mas ela continuou. Ele se levantou e caminhou em minha direção, mas não pôs o celular sobre a mesa. Ele simplesmente bateu-o no birô, não apenas com a mão, mas também com a palavras; e essa foi a parte que mais me doeu. Até semana que vem, bom final de semana.

Inesperadamente, doeu em mim também. Fiquei com os dedos entrelaçados sobre os quais apoiava meu queixo, pensativo. Como ele foi capaz de dizer aquilo? E mais do que isso: por que ele? Quando a gente lida com adolescentes, aprende-se de imediato a primeira regra: eles vão nos desapontar. Por mais que meus até então dez anos de carreira me explanassem isso cotidianamente, a vida um dia nos mostra que sempre há uma ferida que ainda pode ser tocada. Ele era uma.

Uma poção amarga de lidar com adolescentes em uma escola é quando eles deixam de ser número e passam a ter nome. Com ele, foi inevitável. Ele era irmão caçula de um amigo muito próximo, então apesar de ser apenas o irmão de meu amigo, ele era irmão de meu amigo. E isso, no nosso íntimo, faz diferença. Ele tinha pai, mãe, irmão e endereço. E eu conhecia tudo isso, de perto. O que quer que eu tivesse de falar, o que quer que eu precisasse fazer, deveria ser dito ou feito ali na escola, sem atravessar os portões. Porém, quando se atravessa sem pedir licença a janela da alma, a conversa é outra, e não há esse profissional que não se abale.

Ao adentrar aquela porta, ela sabia o que estava pedindo, por isso pediu com tanta veemência, porque ela sabia o quanto seria desafiador para mim. Eu precisava matar em meu interior o irmão de um amigo, para encarar a indisciplina de um aluno. Todavia, não era apenas isso. Era a indisciplina de um dos melhores alunos da sala, desses que nasceram e se criaram na escola. Desses que a gente olha com orgulho, e projeta todas as melhores expectativas possíveis para seu futuro profissional e pessoal, que nos inspiram a ter filhos iguais a eles.

Meus devaneios foram interrompidos por uma figura alva, alta e magra, escondida por dentro de seu casaco azul, que surgia atrás do vidro de minha porta pedindo licença. Posso pegar meu celular? Não, pensei. Olhei, não para o relógio, mas para dentro de mim. Em seguida, transferi meu olhar para os olhos castanhos por detrás dos óculos de armação quadrada que esperavam de mim alguma resposta e lhe entreguei o aparelho de capa vermelha. Bom final de semana, nos despedimos. Não era o melhor momento. Todas as emoções e pensamentos que fervilhavam em mim impossibilitavam que eu tivesse o diálogo profissional à altura do papel que eu exercia na instituição. Dispensá-lo foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado naquele instante.

Após o almoço, senti o prazer de respirar o silêncio que eu merecia. No pátio, apenas o som do sol e das folhas secas que se espalhavam com o vento que por ali corria. Dentro de mim, uma bagunça incômoda. Segunda-feira conversamos, por que não? Até lá, organizarei meu bom discurso para ensinar a um dos melhores alunos da classe do nono ano a ter bons modos. Senti um misto de amargura, desapontamento e tristeza. Por que ele? Tentei me convencer de que eu esperava demais de um adolescente de quatorze anos, contudo meus argumentos eram insuficientes. É só esperar até segunda e tudo se resolverá. Até segunda. A possibilidade da espera me angustiava, pois eu não conseguiria me decepcionar até segunda-feira, era preciso que o sentimento morresse naquele mesmo dia. E estava decidido, haveria de morrer.

Peguei meu celular no bolso e mandei mensagem para o irmão dele, solicitando o número do indivíduo. Não quis refletir se era antiético, afinal, pelos protocolos escolares, eu deveria ligar para a mãe dele solicitando que ela se fizesse presente com o filho na escola. Aconteceu alguma coisa? Desconversei. Disse que precisava do número dele para falar sobre questões escolares do cotidiano, o que não deixa de ser verdade, ainda que parcialmente. Afinal, aquela situação não fazia parte do cotidiano, ao menos não do dele.

Precisamos conversar. Venha aqui na escola agora pela tarde, se possível. Não me apresentei, pois sabia que meu número estava salvo em seu celular, ainda que o salvamento não fosse recíproco. Estou indo aí agora. Nervosismo e alívio se embaralharam em meu estômago e o aguardei tomado pela seriedade que o momento exigia. Não tardou que ele ressurgisse à minha porta.

Sente-se. Não posso dizer ao certo o que ele sentiu naquela circunstância, mas não deve ser muito prazeroso receber uma solicitação de comparecimento à escola no turno oposto ao que se estuda para conversar com uma das autoridades máximas em uma sexta-feira. Você me decepcionou. Atirei contra ele essas palavras ao terminar de relatar o motivo da convocação. Seus ombros recaíram-se, junto a seu semblante. Joguei sobre ele todas as minhas expectativas e como elas haviam sido frustradas pela manhã. Espero que ela seja demitida, disparou para um colega ao retornar à carteira. Todavia, ela ouviu, e com nitidez. Você sabe como é difícil para uma profissional ouvir isso de um aluno cuja postura ela admira? Os olhos dele me responderam com silêncio e vermelhidão.

Pode se retirar, disse-lhe com seriedade e firmeza. Ele se levantou. Um sincero pedido de desculpas mudo, envergonhado, escorregou de seus lábios. Aceitei-o. O arrastar de seus chinelos ressoou pela sala vazia, não em direção à porta, em minha direção. Vi surgirem de repente dois braços timidamente entreabertos caminhando lentos até mim, e sem pedir licença eles me abraçaram, um abraço que seu vocabulário limitado de adolescente de quatorze anos não conseguira transmitir segundos atrás. Um abraço de perdão. Ali se ouvia apenas o leve bater das mãos às costas, ainda que ambas as almas conversassem. Sinalizei-lhe com a cabeça que estava tudo bem, e ele aos poucos se afastou. Retirando-se, olhou para trás uma única vez, certamente para se certificar de que eu o perdoara. Antes que a porta se fechasse olhei pela última vez para o aluno que saía, calculando se não havia mais nada que eu deveria dizer para que sua atitude não mais se repetisse. Não havia.

Você vem aqui hoje? Era sábado. Vesti minha bermuda e fui à casa dele a convite de meu amigo jogar videogame. O que se discute no trabalho, não pode sair do trabalho, disse a mim mesmo antes de sair. Talvez eu tivesse sido duro demais. Esquece isso, já está tudo bem. Ao tocar a campainha, uma surpresa. Um garoto alto, alvo e magro abriu a porta, sorriu e me cumprimentou naturalmente com um abraço. Por trás dos óculos de armação quadrada já não se encontrava mais o irmão de meu amigo. Por trás daqueles óculos encontrava-se meu irmão.

 

Até logo

 

A chuva que se derramava contra os vidros da janela do meu quarto me acordou naquele dia. Eram vinte e nove de fevereiro do ano de 2020. As nuvens de chumbo me encararam com profundo pesar quando abri uma frestinha da cortina para verificar qual seria o grau de dificuldade que eu enfrentaria para ir ao trabalho naquele sábado letivo. O céu estava triste, pesado e cinzento. Mas era dia de prova, e para coordenadores não existe segunda chamada, afinal. Levantei-me pouco depois das cinco e meia da manhã, de modo que a tempestade lá fora não me permitia escutar meus próprios passos dentro de casa.

Tentei não pensar demais. Tomei meu banho rápido e gelado de todas as manhãs, comi meu pãozinho com um copo de leite e me apressei para ir à escola. Já eram mais de sete. Tudo naquele dia me fazia pensar: o céu cinzento, o vento afrontoso, as janelas embaçadas, até a enorme aranha caranguejeira que encontrei no corredor, ao descer as escadas. Ela sobreviveria, se não fosse o berreiro do filho do vizinho do 204 que impulsionou o pai a matá-la a chineladas logo que passei por ela.

À porta, a rua pavorosamente alagada. Senti frio, ainda que estivesse agasalhado. A chuva não permitia que eu enxergasse dois metros à frente dos meus olhos, e seria uma piada acreditar que o guarda-chuva florido que fora de mamãe aguentaria a ventania que me aguardava edifício afora. Ainda assim, dei meu corajoso passo de partida e segui até o carro.

A dança das árvores em torno do condomínio localizado no coração de um manguezal, junto ao cinza dos edifícios que se misturava com o céu tenebroso, cujas cores mortas borravam na chuva torrencial que agredia meu para-brisas, provocavam-me a sensação de estar sendo engolido.

As ruas estavam vazias, frias, mórbidas. Não sabia eu se o meu interior coloria o mundo lá fora ou se o mundo lá fora invadia meu interior. A verdade é que naquele dia ambos se misturavam, a ponto de eu não mais saber distinguir o que vinha de dentro ou de fora.

Tive que selecionar as vias que não afundavam para finalmente chegar a meu destino. Iniciei a prova com uma hora de atraso, pois não faltaram ligações e mensagens de estudantes que estavam impossibilitados de chegar ao colégio, e todas elas foram respondidas com a devida compreensão.

Ao sair da escola, fui abraçado pelo calor de meio-dia de um sábado ensolarado. Coisa mais esquisita, pensei. Para onde foi toda aquela tempestade? Acho que o avanço das horas trouxe-a de vez para dentro de mim. Do estacionamento, avistei de longe seu edifício e suspirei um até logo. Apressei-me e cheguei em casa sem dificuldades. Almocei e deitei um pouco. Meu coração ainda estava cinzento. Pedi ao relógio que demorasse a chegar as quatro horas, mas naquele dia ele estava de mal comigo.

Já está vindo, irmão? Ouvi sua voz meio embargada e tive dificuldade de identificar se se tratava de alegria ou tristeza, mas quis acreditar que era uma mistura agridoce de ambas. Num suspiro, saltei da cama, e me organizei para enfrentar a verdade da qual eu fugia. A ansiedade me fez chegar antes. Fui recebido com alegria. Nossos amigos estavam lá. Vó, mãe e irmãos seus também. O salão de festas estava azul como o meio-dia, mas cheio de corações cinzentos como a manhã de chuva. Já eram quatro da tarde. Conversei através do olhar com sua mãe e vó diversas vezes. Sem dizer uma palavra, conseguíamos ler uns aos outros, e isso era muito bom, mas às vezes incômodo. Sentia-me despido, invadido.

Vou ficar lá em cima um pouco, irmão. Disse uma voz engasgada por trás do meu ombro direito. Ainda que eu sempre respeitasse seus momentos de solidão, desta vez eu o afrontei. Subimos juntos, nós três. Eu, você e o silêncio. Ele falava sobre algo ao qual eu não me atentara, pois meu coração trovejava alto demais para ouvi-lo naquela hora. Deitei na sua poltrona, como sempre o fizera. Você, no sofá. Da janela, contemplei o céu alaranjado. Ele tinha som e cor de até logo. Virei o rosto para o centro da sala: eu ainda não estava pronto para encarar essa verdade. Não tardou que nos procurassem. Descemos o elevador com o mesmo silêncio com que o subimos e adentramos o salão. Teu irmão estava te procurando, disse-me Vó. Eu respondi com um sorriso frouxo, e ela compreendeu.

A noite escura e sem nuvem já se apresentara lá fora, enquanto no salão os risos de memórias, petiscos e bebidas frescas coloriam o ambiente. Mas meu coração permanecia cinza, como a chuva torrencial que me acordou às cinco e meia. Olhei para você e reencontrei em sua retina o moleque chato e irreverente que conhecera cinco anos antes. Rimos juntos, com os olhos. Por algum instante eu desejei que o moleque não tivesse crescido. Que ele não precisasse partir. Vó nos olhava de longe, sorrindo. Era como se ela pudesse enxergar minha alma, tal qual uma porta aberta.

À meia noite, nossos amigos partiram para suas casas. Eu e seu amigo grandalhão, não. Era chegada a hora. Prateleiras e gavetas esvaziavam-se ao passo que suas malas se preenchiam. De repente, eu me vi com uma sacola cheia de camisas de super-heróis e três pares de sapato. Tudo seu, elas são a sua cara. Pode levar, riu sua mãe. É sua, irmão, deu-me você uma correntinha dourada, junto ao ‘r’ retroflexo e arrastado que só você poderia me entregar.

Deitei em sua cama e fechei os olhos para  fingir por um segundo que tudo era um sonho ou um pretexto criativo para escrever uma crônica. Irmão, vamos. Você vai comigo ao aeroporto? Acordei atordoado, com todos os que estavam no quarto rindo da situação. Tateei a cama à procura do celular a fim de ver que horas eram e li uma mensagem que me fez chover por dentro.

A madrugada já sussurrava, e sem demora fomos ao aeroporto. No carro, o grandalhão já chuviscava. Eu, completamente cinza. No aeroporto, beijos, abraços e fotografias. Até logo, irmão, dissemos. Sem você, assistimos juntos ao céu negro engolir o avião que alçava voo, como o casaco que você costumava vestir na adolescência e lhe devorava até os joelhos. Sorri um sorriso breve, saudoso. Na volta para casa, o grandalhão chovia escondido voltado para a janela, como aquela manhã de sábado. Soluçava, baixinho, para que ninguém o escutasse. Aquela chuva fria, fina e cinzenta. Aquela chuva de despedida.