O espelho - Capítulo 12: A Revelação

David, ao despertar, não possuía mais ao seu lado a companhia dos anjos que o resguardavam. Estava recolhido ao seu próprio corpo, coberto pelo vento, pela calmaria. Banhado pelas estrelas. E pela Lua. Outrora, não faz muito tempo, a Lua banhava-se submersa às águas dos rios. Toda criatura voltara-se para as águas, exaltando a beleza da Rainha. Rainha que vence as trevas, banhando-a de luz. Flores. Estrelas. A noite. Todos os astros. Todas as flores. Todo o Universo voltou-se, naquela noite, para o planeta Terra, que tivera honrosamente o prazer de receber a Lua em seus braços. Em suas águas abençoadas. Todavia, a Lua já se estendera ao céu, coberta por seu manto negro, coroada de estrelas. Desejava David deitar novamente em seu colo. Em sua estufa de carinho materno.

David seguiu viagem, reverenciando todo o Reino Celestial. Sua atenção, porém, foi surpreendida, de repente por uma ave. Sua penugem era belíssima, de tão negra e brilhante. Seus olhos, dourados e misteriosos. Seu corpo era comprido. Media pouco mais de meio metro. Ainda que não fosse muito alta, era coberta de um longo manto negro, capaz de paralisar qualquer criatura com que se deparasse, pronta para ser trucidada por suas navalhas entreabertas. David a reconheceu. Sua respiração cessou. O corvo o encarava, como um predador a uma presa. Como a Morte a um enfermo que há muito a esperava.

David fraquejava, trêmulo. Sua respiração falhava constantemente. Seu suor pôs-se a escorrer pelo seu corpo frágil. O pequenino levou as mãos à cabeça. Fora atacado covardemente por uma cefaléia insuportável. Seu crânio parecia encolher-se, comprimindo seu cérebro. Suas veias dilatavam-se aos poucos, estampando-se abaixo de sua pele. Debatendo-se sobre o pequeno bote, a criança berrava. Suor e lágrimas escorriam pelo seu rosto. A criança tremia epilepticamente, agitando o barco. Os berros do garoto rasgavam o silêncio. Seus dedos cravaram-se em sua cabeça de tal forma, que suas unhas tão pequeninas foram capazes de cortar-lhe testa e pescoço. O sangue escorria levemente sobre a pele escorregadia.

O corvo observava-o, impassível.

Por um instante, calaram-se os gritos. A criança tremia, engasgada. Abruptamente, David ergueu-se, reclinando-se para fora do barco. A dor permanecia incontrolável. E entre um e outro soluço fez-se o vômito, atirado sobre o rio, a desmanchar sua pureza. O vômito esguichava de seu corpo com força tamanha que a cada golfada seus ombros e cabeça eram arremessados contra a lateral interna do barco, ameaçando derrubar o garotinho sobre as águas maculadas.

Do desespero, aos poucos, fez-se o alívio. Ainda ofegante, David voltou-se para o barco. A ave permanecia insensível, apática. Seus olhos dourados encaravam o garoto pálido e hesitante. David recostou-se na extremidade traseira do barco, encarando amedrontado aquela fera. As asas vistosas estenderam-se. Os pés ciscaram. A voz rouca bradou. O corvo levantou vôo e se foi, a esmo. E num assalto, suas garras afiadas atacaram a criança indefesa, fincando-lhe às costas suas unhas afiadas. Fragilizado, David foi atirado de bruços, mas não se deixou vencer. Munido da pouca força que lhe restava, seus braços tentavam alcançar o corpo do animal. O corvo bicava-lhe ferozmente a cabeça, arrancando-lhe aos poucos o couro cabeludo, fio a fio. Durante a luta, David conseguiu virar seu corpo, de forma que ficasse frente a frente com o animal, que agora lhe agarrava o peito. O bater violento das asas impedia que o garoto permanecesse por muito tempo de olho aberto. Bastante fraco e com o corpo ensangüentado, David bradou, furioso, golpeando três vezes o animal com seu punho fechado. A ave recuou, repousando sobre a extremidade do bote. Ergueu seu bico vistoso para o alto e entre um brado e um bater de asas, levantou vôo.

O barco seguia viagem. A ave se pôs a segui-lo a sobrevôo. David buscou um pouco de água no rio, para lavar seu corpo machucado. Para fazê-lo, teve de arrastar-se. Já não conseguia mais se pôr de pé. A ave o observava de cima, grasnando com sua voz rouca e medonha. Inesperadamente, o corvo lançou-se ao ataque. Desta vez, contra o barco. Arrancou um pedaço da madeira lateral. O bote sacudiu. O garoto atirou-se no chão, para não cair nas águas. O pássaro retornou, repousando na parte interna do barco. Já não havia mais impassibilidade no olhar daquele pássaro. Seu instinto assassino fervia-lhe o sangue. Cravando as garras no chão do barco, bicou-o incessantemente. David nada mais poderia fazer.

Mas o silêncio estava ali. Em algum lugar. Não o silêncio que fervia os olhos da ave que o atacara. Nem o silêncio que cobria a noite ou as águas do rio. Era um silêncio que ninguém jamais poderia alcançar. Era o silêncio que desde sempre dominou o interior de David. Desde o seu nascimento. Até a sua morte. Esse silêncio, por sua vez, não é aquele que nos torna vazio, diversas vezes. É silêncio que nos preenche. Foi assim que David venceu o medo. Através do silêncio.

A ave dilacerava o barco pedaço após pedaço. A água surgia, ao passo que suas garras e bico trituravam a madeira. Sentado, David cantava, sorridente. Cantava de tal forma que ninguém pudesse ouvir. Apenas sentir. David cantava o silêncio.

Pacificamente, David afundava junto ao pequeno barco. A água já lhe banhava as pernas exaustas. O garoto tentou erguer-se. Primeiramente, em vão. Estava muito fraco. Seus membros não o obedeciam mais. Todavia, David não se importava. Com o auxílio de suas mãos, David punha-se de pé lentamente, ainda que não possuísse mais força alguma. Alguns dos poucos fios de cabelo que lhe restavam recaíram sobre a sua testa coberta de arranhões. Outros caíam, às vezes. Suas vestes estavam bastante rasgadas. Seu corpo, machucado. Porém espiritualmente, David manteve-se estável a todo o momento. Ainda que houvesse o medo. Ainda que houvesse a fraqueza. Ainda que houvesse o desespero... Havia o silêncio.

Sustentado por seus frágeis pés, David atirou-se. Contra sua própria fraqueza. Contra o medo. Contra o corvo. E ambos afundaram nas águas do rio sem correnteza. O rio que dividia a Terra entre a Vida e a Morte.

Após alguns instantes imerso, David voltou à atmosfera. Sozinho. A ave desmanchou-se em pó, dissolvendo-se nas águas límpidas. Junto a ela, desfizeram-se todas as feridas que cobriam o corpo do garoto. David venceu, por fim, sua maior inimiga. David venceu a Morte!

Perto do garoto, passava um pedaço de madeira que restara do barco. Imediatamente, David o agarrou, deitando sobre ele. Não havia aonde ir. Portanto, David entregou-se aos sonhos mais uma vez.

Passado algum tempo, um amigo conhecido de David o acordou. Era o Sol. Sim, o Rei Sol! Sua luz banhava-lhe o corpo, dando-lhe energia. Fazendo-o despertar. Seus olhos lutaram bastante contra a luz que os atingia. Enfim, venceram. Seu corpo, deitado sobre a grama, espreguiçou-se. No céu brilhava o azul. Não havia nuvens. David levantou-se, para ver o Rei Sol mais de perto. O Rei que acabara de acordar.

Bem perto dali estavam as montanhas. David gargalhou de felicidade ao avistá-las. Mal podia esperar para atravessá-las. Ao preparar os passos para correr, David lembrou que algo fora deixado para trás.

Ali estava a sua bússola! Escondidinha na grama. Ao seu lado encontrava-se algo desconhecido. Parecia um objeto que havia sido quebrado há pouco tempo. Era oval e possuía detalhes negros nas extremidades. Sim, era um ovo! A torre. O relógio. O ovo. A origem de uma nova vida. A origem de um pássaro. A origem de um corvo. O corvo. A Morte.

A casca do ovo ainda estava fresca. O animal nascera fazia pouco tempo. Já se tinha passado exatos dezoito dias e dezoito noites desde que David o recebera da vistosa ave. A ave que se desintegrou nas águas do rio. Eis que nada disso mais lhe interessava. Suas aspirações eram muito maiores que suas lembranças. O vento corria, suave, tocando-lhe os poucos cabelos que lhe restaram. Seu corpo, ainda que magricelo, estava firme. Enfim, segurando firme seu guia, David correu para as montanhas.

Ao chegar às montanhas, David sentiu que deveria ir mais longe. Cada pedaço de folha o encantava. Cada fruto. Cada flor. Porém, algo o chamava muito a atenção: o cheiro do mar, proveniente do outro lado das montanhas. Ainda que estivesse apressado, o garoto não se pôs a correr. Desejava aproveitar cada instante acolhido no coração daquela floresta que protegia a cordilheira. Ao chegar ao alto da montanha mais alta, os olhos de David encheram-se de lágrimas. O mar ali estava. Azul. Resplandecente. O garoto sentia como se o céu tivesse caído para cobrir a Terra. No meio do mar, estava o Sol, tão grandioso! Como aquele mar era imenso. Parecia infinito! O Sol, idem à Lua, desceu à Terra para banhar-se. E David poderia ser o dono dele. Bastaria encontrá-lo. Bastaria abraçá-lo. E assim David o fez. Desceu as montanhas, sem muita pressa, a fim de tornar-se príncipe. Seu pai o esperava. No meio do mar. Pronto para abraçá-lo. Na face de David, lágrimas escorriam. Embora a separação de seus pais fosse ainda causa de incalculável sofrimento, David possuía a certeza de que os teria todos os dias ao seu lado, mesmo separadamente. O dia e a noite. O Sol e a Lua.

Foi num fim de tarde, quando o Sol já estava quase adormecendo, pronto para que a Rainha pudesse assumir o trono, que David chegou à praia. À areia macia da praia. O garoto ainda podia sentir o calor proveniente do amor paterno. Apesar de sentir um beijo frio dos lábios maternos tocarem-lhe o rosto. Naquela praia, David passou o melhor momento de todos os seus dias. Pai e mãe o tocavam novamente. O amor o preenchia completamente. O único capaz de ser mais forte que seu mais fiel companheiro. Seu melhor amigo. O silêncio.

David não habitava sozinho aquela praia. Bem perto do mar caminhava uma belíssima mulher, que trajava um vestido branco, como se fosse noiva. Usava uma coroa, como se fosse rainha. Caminhava descalça. Seu sorriso fascinaria qualquer matéria viva ou bruta. Seus cabelos lisos e negros tocavam-lhe os ombros. Entre os dedos, uma rosa azul. Era Júlia.

David ficou extático ao deparar-se com a figura da mãe. Em carne viva, não em forma astral. Não era a Lua. Era Júlia. Sua mãe. Sua amada mãe.

Júlia o observava, sorrindo. Contendo o choro. David apressou-se, caindo na areia algumas vezes, pois suas pernas ainda não se haviam recuperado de toda a enfermidade. Das feridas. Da batalha contra o Corvo. Da batalha contra a Morte. Contra o câncer no cérebro.

No céu flamejava o vermelho, despedindo-se do Rei Sol, aclamando a chegada da Rainha. A Lua talvez não chegasse. Nesta noite que chegava, a Lua optou por caminhar com seu filho pela praia deserta.

Júlia beijou o filho no rosto incontáveis vezes, molhando-o de lágrimas. De mãos dadas, ambos marcharam em direção ao mar. E seguiram mar adentro sem medo. Sem mácula. Seguiram ao abraço de seu pai, que o esperava. O Rei Sol. Caminharam até afundarem nas águas do manto que confortava a Terra.

Foi assim que David passou o resto de seus dias. Ano após ano. Junto à sua mãe. À sua protetora. À sua Rainha. Dia após dia afogado. Em suas ilusões. Em seus sonhos. Como uma criança qualquer. Porém, uma criança que jamais deixou de ser criança até o fim de seus dias.