A Partida

 

Era mês de Copa do Mundo e antes do banho o pequeno acabava de assistir Áustria e Camarões empatarem por um a um naquela noite que começara. Terminada a partida, saltou do sofá e procurou sua tabelinha colorida para anotar o placar com sua letrinha recém-alfabetizada. Talvez não tão recente, uma vez que aos oito anos ele já lia e escrevia com elogiosa fluência. Precisava ainda melhorar a caligrafia, apontava a professora, mas isso não tirava dele o seu destaque como um dos alunos mais aplicados da turma.

Anotado o placar, correu para o banho antes de tomar café à mesa com Vovô. Cuscuz com ovos. Com um pouco de leite por cima e a gema mole, é claro. Acompanhada a refeição com seu copo de leite e achocolatado, o menino se deliciava à presença do avô, que sempre após o cuscuz roía o ossinho da galinha cozida, preparada carinhosamente pela Vovó.

Vá para a sala, que eu vou limpar a mesa e lavar os pratos, ordenou a avó. Ele foi de imediato, pois Vovó não gostava de ter de pedir duas vezes. Os jogos daquele dia de Copa já haviam sido encerrados e o garotinho não sabia o que o divertiria antes que ele fosse para a cama. Lembrou então do joguinho de xadrez que havia ganhado da prima que voltara da Disney e foi buscá-lo, de imediato. Seus irmãos mais velhos não estavam a fim de brincar e seu irmão mais novo era novo demais para compreender a natureza do jogo. Resolveu brincar sozinho, no sofá da sala.

Como as peças possuíam uma base de ímã que as firmavam no tabuleiro de metal, ele não temeu que sua inquietude enquanto se movimentava no estofado do sofá pudesse derrubá-las. Caminhando pelo corredor vinha uma figura alta e magra, a qual andava com dificuldade, sob o auxílio de sua esposa. Sua barba bem feita e seu cabelo liso não disfarçavam o quanto ele estava abatido pela doença que o acometera e surpreendera a todos naquele ano.

Você sabe jogar xadrez? Veio do alto a voz rouca do homem que o interpelava. Ao levantar os olhos, sorriu para aqueles olhos castanhos que vestiam sua tradicional combinação de camisa branca e jaqueta jeans para se proteger do sereno da noite, os quais aguardavam sua resposta. Sei, sim, quer que eu te ensine? Ainda que abatido, o tio sorriu. Então me explique como é, desafiou ao jovenzinho.

Essas peças aqui, apontou o dedinho indicador para os peões, são os soldados do Rei. Eles são lentinhos, andam apenas uma casinha para a frente, mas servem para proteger as peças mais fortes que ficam atrás. Aqui na ponta são as torres, que podem ir para a frente e para os lados. Lá os soldados ficam escondidos esperando os inimigos chegarem. Os cavalos andam em ‘L’  e do lado deles ficam os bispos, que andam na diagonal. Tem um que fica na casa preta e outro na casa branca. Esta aqui é a Rainha, a peça mais forte do jogo, pois ela pode ir para todas as direções. E este é o Rei, que todo mundo tem que defender, pois se sofrer xeque-mate o jogo acaba.

Xeque-mate? Fez-se de desentendido, só para observar por mais um instante o sobrinho explicando as regras. É quando o Rei fica cercado e não consegue mais se defender nem fugir para lugar nenhum. Com um sorriso camuflado pela barba, Titio confirmou sua satisfeita compreensão. Então, vamos jogar? Animou-se o pequenino. Hoje eu estou cansado, vá treinando, que um dia a gente joga. E saiu caminhando com lentidão em direção ao quarto, auxiliado pela esposa, cujo olhar fundo revelava insuportável cansaço. Ele era pequeno demais para compreender o quanto o tio estava impossibilitado de jogar aquela partida, ainda que fosse pouco mais de sete horas da noite, mas respeitou sua decisão.

Teve uma ideia que lhe pareceu brilhante. Percebeu que as luzes do quarto ainda estavam acesas, e aproximou-se da cama de Titio para contar-lhe uma história incompleta que escreveu em seu caderninho de capa verde. Inspirada no seu xadrez, chamava-se “Quatrocentos Anos”, e era sobre reis e rainhas que conquistaram e perderam riquezas e territórios durante séculos de guerras e batalhas, com o auxílio de soldados montados em sua cavalaria. Titio apenas o observava. Silencioso, seus olhos mal respondiam. Ele precisa descansar, pediu sua esposa que o pequeno se retirasse, para que enfim se apagassem as luzes.

Dias depois, num fim de tarde demasiadamente chuvoso, o país estava em festa. A seleção brasileira de futebol participaria mais uma vez da final de uma Copa do Mundo e as expectativas para o pentacampeonato eram elevadíssimas. Diferente da estreia, que reuniu a família na sala de estar para contemplar o primeiro triunfo dos canarinhos sobre a amadora Escócia, neste dia o jogo foi assistido no quarto dos fundos, no quintal. Deitado no colo de Mamãe, ele se indagava por que todos não estavam novamente reunidos, em festa, como fora nos demais jogos da Copa. Tios, primos, irmãos, Vovô e Vovó. Seu tio não está bem hoje, sussurrou mamãe com voz pesarosa antes de o narrador anunciar o início da trágica partida que terminara com a amarga derrota de nossa seleção por três a zero, para os franceses, donos da casa, os quais conquistavam seu primeiro título.

Foi quando o tempo passou e foi determinado: você vai passar um tempo na casa de sua madrinha. O tempo que for necessário. Primos, cachorrinha, casa grande, a ideia não parecia ser nada ruim. E pelo tempo que for necessário. E de fato não era, salvo pelo motivo da estadia. A doença do tio avançava, e era na casa da Vovó, onde o pequeno morava com a mãe e os irmãos, que o tio recebia os cuidados médicos necessários. E enquanto os dias se passavam, pensava-se quando ocorreria a tão esperada partida de xadrez. Será que Titio ainda lembra as regras? Tudo bem, era só ensiná-las novamente.

Já era novembro, quando, ao acordar, o menino decidiu sair do quarto, em silêncio, para não acordar as primas, que ainda dormiam. Eram cinco horas da manhã. Viu pela fresta da porta entreaberta seus padrinhos elegantemente vestidos de roupas pretas, tais quais o Rei e a Rainha de seu joguinho de xadrez. Eles caminhavam pela casa, apressados, e falavam baixinho, então o garoto optou por permanecer na cama.

No café da manhã, pão, queijo, presunto e silêncio. As crianças à mesa comeram depressa para não se atrasarem para a aula. A prima mais velha anunciou que os pais dela estavam ocupados e que seu irmão os buscaria naquele dia na escolinha.

Acabado o turno matutino, ele esperou a chegada de seu primo, sentado no pátio da escola, assistindo aos colegas voltarem para casa e à chegada dos alunos do turno vespertino. Sentiu fome e receio de ter sido esquecido, mas não tardou que o primo chegasse. Na volta para casa, um silêncio incômodo. O garotinho e a prima mais nova apenas se entreolhavam desentendidos do que se passava. Ao volante, o primo chorava. O garotinho apenas observava em sua quietude.

Naquela tarde de quinta-feira, a madrinha os convocou à sala, interrompendo a brincadeira no quintal. Arrume suas coisas, hoje você voltará para casa. O jovenzinho sorriu, Titio certamente estava melhor. Finalmente aconteceria a tão aguardada partida de xadrez, e mal podia ele esperar para aplicar seu infalível xeque-mate. Além disso, poderia contar como seu povo enfim conquistou a paz e a prosperidade almejada por quatrocentos anos de batalhas sangrentas. Com seus jogos de botão, juntos poderiam jogar uma Copa do Mundo inteirinha, e...

Não será possível, interrompeu a madrinha seu devaneio. Seu tio está morto. O vão que separava as cadeiras de ambos no centro da sala parecia se transformar em um abismo. Mas, e a partida de xadrez? Dentro de si, sua respiração acelerava disfarçadamente, entrelaçada às memórias daquilo que jamais aconteceria um dia. Após o lanche, despediu-se do padrinho e primos e a Madrinha o levou para casa. No trajeto, via os edifícios da cidade, altos como as torres do seu tabuleiro. Frente à igrejinha, estava lá o bispo para celebrar mais um dia de missa. A vida por si só era um jogo de xadrez. Sua cidade era apelidada de tabuleiro de xadrez. Mas dentro do coração do menino, faltava uma peça.

Tendo chegado a casa, o menino atravessou a sala, pediu a bênção da Vovó e seguiu para o quarto vazio. Cama, cortinas e silêncio. Titio realmente não estava mais ali. E no crepúsculo daquela quinta-feira, aos recém completos nove anos de idade, ele aprendeu a regra mais difícil do xadrez da vida. Não importa o quão boa é a estratégia do jogador, ou a quantidade de peças que se tenha sob o próprio domínio, ou ainda se se é preto ou branco: sorrateiramente, a morte sempre nos aplicará o xeque-mate.

0 comentários: