O espelho - Capítulo 11: O cometa

De olhos fechados, David afundava lentamente, a fim de abraçar o infinito. A fim de abraçar o silêncio.

As águas daquele rio eram frias. Plácidas. Acalentavam o garotinho como uma mãe que abraça o filho contra o próprio seio. O menino sorria. Em profundo êxtase, o pequenino adormeceu. Sorrindo. Seus braços foram-no abraçando, carinhosamente. Suas pernas, dobrando-se, de maneira que todo o seu corpo ficasse encolhido. Como se fosse um feto. Como se estivesse... Renascendo!

Assim sendo, David adormeceu por um longo tempo. Ali mesmo. Submerso. Por tempo indeterminado. Um tempo incalculável. Debaixo daquelas águas não existia tempo. Não existia passado. Nem futuro. Só o presente. O tempo presente. A vida presente. O silêncio presente.

Após tal sono profundo, o pequenino finalmente acordou. Ainda sorria. Seu corpo estremeceu. Seus braços, casados a suas próprias pernas, separaram-se num brusco movimento. Ainda que tocasse seu próprio corpo, David não o sentia. Mas pouco importava. Seu fiel companheiro estava ali. Seu único amigo. O silêncio.

Suas pálpebras ainda estavam fechadas. Seu sorriso, ainda nos lábios. Enfim, David suspirou. Despertara. Duas mãos gélidas surpreenderam-no, tocando-lhe as mãos. O garoto debateu-se. Ainda que estivesse entorpecido, ele pôde senti-las. Eram mãos suaves, ainda que tão álgidas. Todavia, não eram mãos quaisquer. Eram as mãos de dois anjos. Anjos de olhar negro.

Suas faces eram desenhadas de profunda apatia e morbidez, pintadas por uma palidez indescritível, molduradas de cabelos negros que lhes cobriam a testa. Vestiam um manto branco. Não tinham asas nem auréola. Mas eram anjos. Seguraram firmemente as mãos do pequenino e puseram-se a nadar. David adorou a idéia.

Aos poucos, aqueles seres angelicais soltaram-no as mãos. Juntos, nadaram por léguas e léguas. Faziam belíssimas manobras, dançando pelas águas. Sentiam-se como se estivessem no ar. Suspensos.

Surgiu ao fundo uma luz. Parecia distante, mas aproximava-se em alta velocidade. Transmitia um calor bastante intenso, que àquela distância se poderia senti-lo. Os anjos agarraram a mão do garotinho. Era um asteróide. Possuía o tamanho de um automóvel pequeno. Mas era um astro. Um carro astral. Nas profundezas do rio! Aproximando-se o cometa em velocidade avassaladora, David os anjos sobre ele saltaram, levando consigo o garoto. Devido à rapidez do meteoro, eles não conseguiram alcançá-lo. Mas heroicamente agarraram-se em sua cauda azulada!

Mesmo tendo como principal adversário a nuvem de poeira astral deixada como rastro pelo cometa, não se passou muito tempo até que eles conseguissem montar sobre a área sólida do fascinante pequeno astro. Os fluxos de poeira e gás liberados formaram uma enorme e extremamente tênue atmosfera em torno do cometa, traçando desenhos fascinantes, provocando imensurável deslumbre em David, que não perdia de vista um detalhe sequer daquela onírica viagem.

Ao horizonte, despontava uma luz. Era ao seu encontro que o cometa seguia radiante. David manteve-se sentado. Não tinha pressa. Apenas esperança. Esperança que jamais envelhecia. Que jamais enfraquecia. Que jamais morria.

Ao norte, avistava-se um enorme astro. Um poço de beleza e virtudes. A Rainha da noite. A Rainha dos astros. A Lua. Coberta estrelas. Vestida de nuvens. Nuvens que escondia sua nudez. Seu corpo arredondado. Sua sensualidade encantadora. David por nada disso procurava. Queria apenas desfrutar de sua beleza. De sua terra macia. De sua palidez única e indecifrável.

Ao sobrevoá-la, o cometa os lançou sobre a atmosfera lunar. Os anjos seguiram viagem. David atirou seu olhar sobre aquele manto sagrado que abençoa todas as noites do planeta Terra. Sobre ele brincava uma linda garotinha de cabelos dourados. Seus cachinhos deleitavam-se sobre o ombro. Seus olhos brilhavam de tão verdes. Trajava um vestidinho branco, com bordadinhos cor-de-rosa. Era ela. Dançava pelo chão arenoso, sozinha. Ainda que não se importasse com a solidão. Gostava de estar ali, sozinha. Ela e o silêncio.

Ao se encontrarem, ambos paralisaram, sorrindo. E os sorrisos tornaram-se risos. E os risos, gargalhadas.

Simultaneamente, arremessaram-se sobre a areia macia, e puseram-se a balançar braços e pernas, sem tirá-los do chão. Quão gostosa era a brincadeira! No solo, formavam-se o desenho de dois anjo. Os braços desenhavam suas asas. As pernas, seu manto.

Os dois estavam ali. Adjacentes. No solo, formava-se uma simetria perfeita. Duas crianças. Dois anjos.

Mais uma vez, David afogou-se em sonhos. Junto a ele, a garotinha. Tão doce. Tão pura. Deitados sobre a Lua. Abençoados pelas estrelas. Estrelas que refletiam sua luz em um colar escondido no bordadinho do vestido. Um colar que revelava seu nome: Divad.

Os anjos retornaram, remando tranquilos. Ambos no mesmo bote. Aproximaram-se de David, acolheram-no nos braços e o deitaram sobre o bote.

E remaram. Deixavam aos poucos a atmosfera paradisíaca sobre a qual adormecera dois pequenos anjos. Como uma rosa no deserto, Divad permaneceu adormecida. Resplandescente. Ainda que sozinha. Ela. O sorriso. O silêncio.

Os anjos foram navegando pelas águas límpidas daquele rio pacífico. Não tinham pressa. Não tinham medo. Remavam impassíveis. Viajaram pelo silêncio... Rumo à superfície!