Retrato falado


Você vive entre muralhas
Mas ao serem derrubadas elas se reerguem
Você senta aborrecida
Chora e vocifera

Você é tão linda
De pé ou de joelhos
Desinfetada
E ansiosa por aprazer

Às vezes você se aborrece
Às vezes você se arde
Deus abençoou sua alma
Mas quando Ele lhe estende a mão
Você já partiu
Ao contrário de nosso pai
Você vive mudando

Cada vez que você deita e chora
Isso me destrói
Tento me controlar
Mas isso me destrói

Você ajuda as pessoas
E elas tentam lhe passar pra trás
E para se acalmar
Você senta e escreve

Adaptação de Sulk, música do Radiohead, em homenagem a minha irmã.

Luíza: Parte 4 (Final)

A freira olhou para cima do guarda-roupa e assustou-se: Era Luíza. Mas não era apenas uma, eram quatro “Luízas”: uma recém nascida, outra pequenina de apenas quatro anos, outra com um terço nas mãos, esta com treze anos, e a última era Luíza depois de morta, pálida, com os cabelos em frente a seu rosto e um crucifixo em seu pescoço.
- Quem são vocês? O que querem?
- Somos o nascimento, a infância, a adolescência e a morte. – disse a quarta Luíza
As três primeiras imagens desapareceram e a última prosseguiu:
- Esqueceu de mim, vovó? Há menos de um ano você dizia que me amava como amaria uma filha e que nunca me esqueceria. Pelo jeito você mentiu.
- Não estou entendendo. Diga-me quem és, por favor.
- Sou Luíza, a pequena freira que foi assassinada dentro de um elevador. Não está lembrada? – disse Luíza com uma voz rancorosa
- Filhinha! Você está viva! Desça já daí e me dê um abraço! – lacrimejou Heloísa
- Falsa! Você não me ama! Não deve nem mais lembrar quem sou eu!
- Não diga isso, querida! Você não sabe o quanto eu sofri após a sua morte.
- Duvido. Está tentando me enganar assim como o Lucas me enganou.
- Quem é Lucas?
- Não posso te contar. Se fizer isso nunca descansarei em paz.
- Este homem que você está falando é o assassino, não é? Onde está o desgraçado? Diga-me! – berrou a carmelita
- Não posso.
- Por que ele fez isso?
- Vocês me reprimiram! A culpa é dele e de todos vocês! Se vocês não reprimissem seus ditos filhos meu fim poderia ser outro! – entregou-se a menina ao choro – Eu poderia estar viva...
Ao terminar de falar a garota fez cara de espanto
- Cuide bem de suas crianças! Não deixe que elas terminem iguais a mim! Por favor, dêem a elas o direito de sentir prazer. De realizar seus desejos... Por favor. – chorou mais ainda.
- Por que está dizendo isso?
- Ele está chegando.
- Quem? – desesperou-se Heloísa
- Ele!
Antes que a senhora pudesse obter alguma resposta a imagem da jovem desapareceu e ouviu-se um batido na porta do quarto. Com o nervosismo à flor da pele Heloísa cobriu as crianças com um cobertor. Devagar ela abriu a porta. Estava muito escuro lá fora. Antes que ela saísse do cômodo sentiu o silêncio ser quebrado por uma voz sarcástica:
- O que fazes acordada a essa hora, Heloísa? Está sem sono?
- Quem está aí fora? – apavorou-se a freira
Ninguém respondia. Lentamente a porta era fechada e o pensamento da mulher era tomado pelo medo. Afinal, o que estava acontecendo? Nada parecia se encaixar. Cabisbaixa e pensativa, tudo na cabeça dela parecia embaraçado. Estaria ela ficando louca? Como se não bastasse tudo isso, percebeu-se a presença de uma quarta pessoa no dormitório.
- Parece cansada. Por que não tira um cochilo? Tem medo de este ser o seu último?
- Diga-me apenas quem és e vá embora. – disse a carmelita sem olhar para trás
- Ué! Sou um padre, ora. O que queres mais saber?
- O que você faz aqui?
- O mesmo que você, querida. – sorriu o homem
- Aqui não moram padres! Acha que eu sou idiota o suficiente para cair nessa piada?
- Como és corajosa! Sinto firmeza em sua voz.
- Vá embora! – virou-se ela e o encarou – Mas antes me diga quem é.
- Sou Padre Lucas, e a bela senhora deve ser Heloísa, estou certo?
- Lucas... Lucas... – sussurrou para si mesma
- Não gostou do meu nome?
Com os olhos cheios de ódio a freira deu um tapa na face do homem.
- Por que fez isso? – sorriu ironicamente Lucas
- Assassino! – repetiu ela o ato
- Do que está falando, velha louca? – gargalhou ele sutilmente
- Eu lhe mataria apenas com um olhar, homem desgraçado! Deveria estar ardendo no fogo do inferno, sentindo o calor abrir sua pele aos poucos, seu verme!
- Nossa! Acho que encontrei alguém pior do que eu. – riu ele novamente – Por que tens tanta raiva de mim? Onde está o amor que sentia por mim?
Ao terminar de falar Lucas tomou outra forma: estava um pouco mais velho (aparentava agora cinqüenta anos), cabelos ainda grisalhos, óculos na ponta do nariz, trajava um casaco vermelho e uma calça preta e tinha um livro em mãos.
- Beije-me, meu amor. O nosso último beijo.
- Arthur? É você, meu amado marido? – disse Heloísa com os olhos cheios d’água – Faz quinze anos que você se foi. Por que me deixou aqui sozinha? Por quê?
- Era minha hora, meu doce amor.
- Arthur... Meu amado Arthur! Esperei por tanto tempo... Você nem imagina.
- Agora a barreira do tempo está quebrada, meu bem. Apenas me beije.
Aos poucos as cabeças se aproximavam e os lábios estavam prestes a se tocar. Antes que eles se beijassem ela recuou.
- Não posso. Por mais que eu te ame eu não posso.
-Mas não é isso que você deseja?
- Sim, mas não é isso que eu farei!
Voltando à sua forma original e bastante furioso o padre disse:
- Eu voltarei, fique ciente disso. Quando você menos esperar estarei ao seu lado. E lembre de cuidar de suas crianças...
- Estarei esperando.
Lentamente a imagem do homem sumiu do aposento, causando alívio em Heloísa. Esta saiu do cômodo e o trancou. Desceu as escadas em passo acelerado, levando consigo um punhal que achara no quarto em que estava. Não demorou muito para ela chegar à saída do convento. O que faria fora dali durante a madrugada? Queria chegar à cidade. Estava com pressa, mas sua idade não a deixava correr, portanto foi ela paciente. Demorou quase uma hora para chegar ao lugar desejado, mas ao menos chegou antes do amanhecer. E lá estava seu destino: o prédio mais belo da zona mais rica da cidade. Entrou no edifício sem muitos problemas, afinal, o porteiro dormia na guarita.
Ao chegar frente à porta do elevador respirou fundo, abriu a porta e entrou. Pressionou o botão que indicava o nono andar. Aos poucos imagens se formavam frente a ela: eram Luíza e Lucas. Ele tentava beijá-la, mas a menina o repelia. Devagar ele se aproximava e logo a jovem se rendeu. Antes que o beijo acontecesse Heloísa começou a rezar:
- Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o Vosso nome, venha nós ao Vosso reino...
Isso indignou Lucas. A imagem da menina permaneceu parada como uma estátua:
- O que fazes, velha imbecil?
-... Seja feita a Sua vontade...
- Pare com isso agora! O que pensa que está fazendo?
-... Assim na terra como no céu...
Lucas tomou novamente a imagem de Arthur e tentou beijá-la.
- Entregue-se a seu amado, minha bela! Renda-se ao amor...
Com os olhos fechados ela mordia os lábios e, suando frio, continuou orando baixinho:
-... O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas...
- Ninguém vai ficar sabendo. Eu sei que você ainda me ama, portanto me beije. Vamos, se entregue ao amor!
-... Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido...
- Não adianta! Tuas orações não vencerão a mim e nem a seus desejos reprimidos.
-... E não nos deixei cair em tentação...
- Isso já está me irritando... – aproximou-se o pároco
Heloísa lambia os lábios e vagarosamente sentia a respiração de Arthur tocar sua face, entretanto, a três centímetros do beijo ele deitou-se bruscamente sobre os ombros dela ,que friamente cochichou no ouvido dele:
-... Mas livrai-nos de todo o mal...
Afastando-se, Lucas, com os olhos arregalados e a boca cheia de sangue, retomava sua verdadeira forma.
- Como pôde fazer isso comigo?
Heloísa cravou no peito dele o punhal que trouxera do convento. Tonto, ele caiu encostado na parede, sujando-a com sangue. Havia um corte profundo em seu peito em forma de cruz.
- Nos vemos no Inferno! - despediu-se ele
-... Amém!
Ao Heloísa dizer esta última palavra o ascensor despencou em altíssima velocidade, chegando rapidamente ao térreo, lançando a senhora porta a fora. A carmelita obviamente desmaiou e só acordou às oito horas da manhã, quando foi socorrida por uma ambulância que fora chamada por pedreiros que seriam responsáveis pela derrubada daquele prédio que estava às ruínas.
Aliviada a carmelita disse a si mesma: “Acabou”
Enquanto era carregada numa maca a freira observou caminhando perto dela a pequena Luíza que sorriu dizendo:
- Obrigado.
Três rapazes carregaram-na para dentro da ambulância, fizeram alguns curativos e a deixaram em casa. Ao chegar lá, perto do meio-dia encontrou Allan, em sua cadeira de rodas, acompanhado de Lúcia. O menino a abraçou e perguntou:
- Posso brincar com ela, vó?
- Pode sim, com quem você quiser.
O menino paraplégico e a pequena cega deram as mãos e foram ao pátio junto à Irmã Lúcia.
A partir daquele momento tudo passou a ser diferente: ao menos por enquanto...

Luíza: Parte 1

Luíza. Esse era seu nome. Morava em uma casa comum em algum lugar do Brasil. Irmãos? Não os tinha. Vivia com seus pais cujos nomes eu não tenho conhecimento. Ela era jovem, apenas dez anos, longos cabelos negros, da cor de seus olhos, branquinha que só. Sua vida era monótona, baseada numa rotina “casa-igreja-escola”, afinal, a educação que recebia era extremamente rigorosa.
Tinha apenas treze anos quando seus pais morreram em um trágico acidente de carro. A sua guarda ficou sob custódia de seus avós, que a colocaram num convento. A garota de nada reclamou, aceitou tudo silenciosamente.
O convento se localizava em um local meio isolado da cidade. Lá, as freiras costumavam viver à moda antiga, usando vestes pesadas e com educação rígida. Pelas redondezas andavam a cavalo e a noite era iluminada por belos lampiões. Havia lá também uma escola que se iniciava a partir do Ensino Médio. Apesar de todos os costumes, todas elas iam freqüentemente à cidade e tinham conhecimento do que havia por lá.
No dia em que Luíza chegou a tal lugar notou rapidamente a enorme diferença entre este e a cidade, mas brevemente se adaptou. Porém, agora se tem hora para comer, brincar, orar e estudar. Mesmo assim, Luíza às vezes desrespeitava as normas.
A garota não dormia. Ficava apenas deitada ou fingia dormir até perceber que todos dormiam para poder admirar a noite e caminhar pelos jardins. Certa vez, em plena madrugada, deitada sobre a leve e macia grama coberta de belas flores que envolviam o chafariz, quando ouviu alguém chamar seu nome. Assustou-se, pensando imediatamente na possibilidade de ser uma das freiras como a Irmã Laura, que batia naqueles que a desobedecessem. Mas não era. Ficou de pé, trêmula e com os olhos arregalados, observando tudo o que podia, até ouvir a mesma voz, que vinha de detrás de uma árvore. Ela caminhou vagarosamente na direção daquele belo cajueiro. E lá estava um bonito rapaz, que trajava uma batina e guardava um crucifixo por detrás desta. Luíza, assustada, perguntou como ele sabia seu nome, e ele disse-a que ficasse calma, pois também era do convento, e a menina jurava nunca tê-lo visto. O homem beijou a mão da mocinha e a convidou para ir à cidade. Convite recusado, pois era lei sair apenas com permissão. Sorrindo, o indivíduo afirmou ser um padre, que era uma autoridade. A doce criança pediu um pouco de tempo, e que ele a encontrasse no dia seguinte, na hora do almoço ou na missa. Ele respondeu que não seria possível, mas que os dois se encontrassem na madrugada do dia seguinte.
Ao acordar Luíza permaneceu sentada em sua cama, pensativa, brincando consigo mesma de tentar adivinhar o nome do novo amigo. Não, ela não tinha interesse algum para com aquele homem, ela só quer um amigo, e afinal, ele é um padre.
Após o almoço a menina procurou o pároco dentro do convento, porém não o encontrou.
Durante a noite a jovem fingiu dormir por horas, até o relógio marcar a meia-noite. Quando chegou o momento tão esperado, correu para o jardim e deitou-se na grama como de costume.
-Estava me esperando, Luíza?- soou uma voz grave em seus ouvidos.
-Padre? - ergueu-se ela e viu o clérigo sentado em um dos bancos do jardim.
-Sim, eu mesmo... – sorriu ele.
-Lembra que você disse ontem que me levaria à cidade hoje? Não é por mal, sabe, é que eu quero conhecer parte dela, e o senhor é o único homem que não teria más intenções para com uma criança como eu, e...
-Eu entendi, entendi... e... Senhor? Não, não, me chame por você mesmo... e obrigado pela confiança. – disse ele estendendo a mão à mocinha.
Quando chegaram à porta da imensa instituição ela parou de andar:
- Qual o seu nome? Acho que não perguntei...
- Sou o Padre Lucas. E você é a Luíza, não é?
- Sim, sou... como sabe meu nome? – riu com um sorriso de dúvida.
- Ora, sei o nome de todos daquele convento.
E assim continuaram a andar rumo à cidade. Andaram durante quase meia hora e comeram em um restaurante simples. Vendo que já eram duas horas da manhã, Lucas perguntou:
- Quer dormir lá em casa? Já é tarde... Mas calma, antes que pense algo mal intencionado, vou avisando que moro na parte do fundo de minha Igreja e lá também é um convento, não tão grande quanto o seu, mas tem meninas de sua idade e...
- Não... quero ir para a minha casa. Você, apesar de ser um padre ainda é estranho para mim, certo?
- Oh! Desculpa, Luíza. – baixou ele a cabeça – Eu te levo em casa.
A garota foi deixada na porta do seu lar e logo que deitou em sua cama, adormeceu.
Passaram-se três semanas e o clérigo não apareceu. Luíza aos poucos sentia saudades e pensou ter agido grosseiramente com Lucas.
Numa noite de sábado, enquanto ela dormia, sentiu calor, o que a acordou. Foi então abrir a janela, e ao fazê-lo assustou-se gritando. Lucas estava em sua janela.
- Que susto! – sussurrou ela
- Calma, sou eu. Vim aqui de passagem...
- Você não dorme? Você nunca dorme, não é?
- Eu celebro missas à meia–noite, por isso a essa hora estou de pé ainda. Acabei de sair da igreja.
- Hum...
- Já que você ta acordada, por que não troca de roupa e vamos a um restaurante de classe alta?
- Não posso...
- Como não? Vamos... vai ser rápido.
A garota rendeu–se ao convite rapidamente e trocou de roupa enquanto ele a esperava no jardim.
Jantaram às gargalhadas comidas estrangeiras como se fossem velhos amigos e nem notaram o tempo passar.
- Eu tive uma idéia: Que tal se eu passasse lá no apartamento onde passo o fim de semana, daí você me espera, eu troco de roupa e vamos a vários lugares da cidade?
- Mas por que você vai lá? Vamos assim mesmo.
- É que se virem que estou de batina saberão que sou padre e me vendo com uma menina que tem idade de ser minha filha vão pensar o que de mim?
- Mas não vamos demorar, certo? Tenho que voltar logo.
Eles não precisaram andar muito para chegar até o edifício. Era o mais belo da zona mais rica da cidade. Luíza espantou-se com tamanha beleza do lugar. Lucas pediu para ela entrar e ao chegar frente ao elevador ela parou e disse que o esperaria ali mesmo. Ele insistiu e implorou que ela esperasse na escada. Ela aceitou.
Quando o elevador parou, ela abriu a porta, mas ele disse que ainda era o sétimo andar e o apartamento localizava-se no nono.
- Então porque parou aqui?
- Preciso te contar uma coisa e espero que entenda: quando eu te vi, queria ser apenas seu amigo, mas as coisas começaram a mudar, eu comecei a... a... a sentir prazer por você, porque você é tão doce, tão pura – disse aproximando-se dela – quero algo mais de você, pequenina...
Luíza ficou pasma e se afastava a cada passo que ele dava, mas houve um momento em que ela estava em tal posição que não tinha para onde ir. Ele falava com os olhos brilhantes, o que rendeu a menina... o que fez o beijo entre os dois acontecer. Ele a segurou com firmeza e ela o abraçou durante o ato. Menina de 13 e homem de 40; padre e pequena freira: um ato proibido. Continuaram por dois exatos minutos, até que Luíza recuou.
- Não, eu não posso!
- Claro que pode. – aproximou-se novamente
- Não, está errado... desculpe, eu não posso.
- Eu não de dou prazer, é isso?
- Não é isso, é que...
- Calada! – gritou ele – eu te dou tudo e você me agradece assim, não é?
- Não, você não enten...
- Cale-se! – gritou estapeando a face dela. A culpa é sua de eu ter sentido prazer por você, então, terá o que merece!
- Lucas... – lacrimejou Luíza – É um mentiroso! – Você mentiu!
- Não, eu não menti! Talvez sim... mas verás a verdade agora.
- Que verdade?
- Essa. – sussurrou ele puxando-a a força.
Bruscamente, Lucas a beijou e, ao notar a presença de um crucifixo envolto ao pescoço dela, o usou como arma, enforcando-a. Luíza reagia em vão.
Logo ela morreu, enforcada e pura, deixada dentro daquele elevador, presa ao teto. Foi encontrada dois dias depois, com seu sangue totalmente coagulado e seu corpo fétido. No espelho do elevador estava escrito: “Reze por ela... e por você também”.
O convento ficou em profundo luto, e em seu enterro, num dia bastante chuvoso, a tristeza era predominante no cemitério. Heloísa, uma carmelita que de Luíza bastante gostava, observava tudo em profundo silêncio: a chuva caía, o caixão molhava, o povo chorava. A chuva caía, o caixão molhava, o povo chorava. A chuva caía, o povo chorava, o caixão molhava... molhava... vazio...

Luíza: Parte 2

Heloísa fora a única testemunha de tal fato de que ocorrera durante o funeral, mas permaneceu calada para não provocar transtornos.
Quanto à falecida menina, as orações em sua memória perduraram por seis meses, como de costume.
Certa vez, quando Heloísa acabara de acordar, notou que sua parede estava riscada, e que aos poucos os riscos se tornavam mais visíveis. Meio assustada, levantou-se e tentou enxerga-los com mais clareza. Rapidamente viu-se claramente a seguinte frase: “Reze por ela... e por você também”. Com o susto ela caiu para trás, mas logo tentou correr em direção à porta do quarto. Em vão. A porta não abria. Tentou mais uma vez, agora com todas suas forças, mas não conseguia. As palavras estavam escritas em todo o cômodo, e Heloísa se desesperava em vão. Subitamente as escrituras desapareceram e a porta abriu violentamente lançando a mulher sobre a cama. Ela permaneceu trêmula por alguns minutos, mas logo se levantou e caminhou apressadamente para o oratório.
Tal acontecimento continuou na mente da boa senhora por algumas semanas, até que ela resolveu, por interpretação dos fatos, pedir que retornassem as orações por Luíza, mas a diretoria do convento afirmou que seis meses eram o bastante, recusando assim o pedido de Heloísa.
Havia vizinho ao convento um pequeno orfanato, este pertencente àquele. Lá se encontrava crianças de todas as idades, porém, todas brancas. Num dia comum, na enfermaria do orfanato, ouviu-se gritos que pareciam ser de desespero. Duas carmelitas correram imediatamente até lá e encontraram um garotinho caído no chão e com um terço envolto ao seu pescoço. Estava ele desmaiado. Seu coração não batia, sua respiração estava cessada e ele não reagia aos socorros. Doze horas depois o menino foi declarado morto e novamente o constrangimento pesava sobre a consciência das freiras. Maior ainda foi a culpa carregada nos ombros de Lúcia, a enfermeira responsável pela custódia do garoto, esta que não parava de chorar por um segundo.
Durante o velório as lágrimas do silêncio predominavam por toda a parte, até que um grito desperta a atenção de todos os presentes. Era Heloísa, que corria em direção ao caixão.
- A criança está viva! Tirem-na daí! – abraçou ela o menino
Realmente era verdade. Durante o velório Allan, esse era o nome dele, abrira os olhos, causando tremenda alegria à Heloísa, que oscilava entre o riso e o choro. Lúcia quase desmaiou de tremenda alegria. Tudo voltou ao normal.
A senhora implorou para que o menino ficasse sobre sua custódia. A diretoria não viu problema algum nisso e aceitou pacificamente.
No dia seguinte ela foi à enfermaria com o intuito de conversar com a criança, mas de maneira lenta, para não assustá-la. Ela queria respostas. Respostas para questões levantadas por ela após a quase morte de Allan.
- Allan, o que você fazia ontem enquanto estava deitado aqui na enfermaria? Estava dormindo?
- Não, senhora, eu apenas questionava sobre a vida.
- Nossa! Você nessa idade já questiona a vida? – disse Heloísa sorrindo
- Sim, queria saber por que tanta criança no mundo tem seus pais e eu não. Não me acho um menino ruim.
- Eu também não tenho nem pai nem mãe.
O garoto a olhou com um ar de reprovação:
- Eu só tenho nove anos, garanto que você tem mais que isso.
- Nunca conheci nenhum dos dois, Allan.
- Eu preferiria não tê-los conhecido a perdê-los aos nove anos. – Disse o garoto engolindo seco.
- Perdão, não sabia que a perda foi tão recente.
- Por que você acha que eu estou aqui nessa enfermaria? Por quê? – berrou o menino
- Calma, respire... Vamos mudar de assunto, certo?
- Certo. – suspirou Allan enxugando as lágrimas
- E em algum momento, enquanto estava aqui, você adormeceu?
- Eu estava deitado quando de repente apareceu um garoto da mesma idade que eu. Ele era negro e estava deitado naquela cama ali. – apontou para a cama vizinha, que estava vazia. – Ele se levantou e me chamou para brincar. Tentei me levantar, mas eu não sei mais andar. Só que eu fiquei tão feliz que havia esquecido disso. Na tentativa de eu me levantar eu caí e... e... e pronto. Não lembro de mais nada.
Heloísa ao ouvir o que o garoto disse levantou-se e caminhou em direção aos quartos do orfanato, mas subitamente ela parou. Suou ela frio. Havia lembrado que aquele lugar só possuía crianças brancas. Naquele instante a carmelita simplesmente não sabia o que fazer, apenas imaginava como um garoto negro estaria no quarto, ao lado de Allan. A freira não desistiu e pôs-se a andar novamente direcionando-se aos dormitórios. Eram muitos, mas para ela isso não importava. Visitou-os um por um, mas não achava a criança desejada. No último daqueles encontrou a Irmã Marília, a qual a informou que haviam crianças brincando no jardim. Ela não desistiu, foi até lá. Em vão. Não tinha criança negra alguma por lá.
Heloísa voltou à enfermaria para tornar a conversar com Allan, mas ele não estava mais lá. A Irmã Denise disse que ele voltaria em poucos instantes, pois estava tomando banho.
A senhora resolveu esperar. Ao sentar observou um papel dobrado e meio amassado sobre o travesseiro. Vagarosamente o papel foi lido, onde estava escrito: “Tinho, onde está você? Espero que venha me visitar novamente. Preciso de amigos.”. A carmelita ficou trêmula e ao mesmo tempo aliviada. Agora sabia o nome do garoto.
- Xeretando minhas coisas, senhora? – era Allan, trazido nos braços de Lúcia e posto na cama.
- Desculpe, Allan é que...
- Eu entendo a vontade que você tem de saber quem é o Tinho, mas desse jeito acho que você vai gastar muito tempo.
- Não é bem isso...
- Não precisa se desculpar, senhora, eu entendo a situação pela qual você está passando.
- Nossa! Como você tem o português bem falado, Allan, onde aprendeste a falar assim?
- Foi o tipo de educação que eu recebi.
- Hum... Você é muito inteligente e educado, garoto. – sorriu Heloísa
- Sua tentativa de mudar de assunto falhou, senhora.
- Menino! Estás me deixando sem graça desse jeito. Por que és tão frio comigo?
- Meus pais eram frios, por isso sou assim. Porém eles me amavam. – derramou uma lágrima a criança
Heloísa se comoveu com a tristeza do menino e fez um sinal para a enfermeira pedindo que ela se retirasse. Lúcia obedeceu ao pedido.
- Me fale sobre seu amigo, o Tinho.
- Não falarei sobre ele pra você, senhora.
- Por que você só me chama por senhora?
- Porque é o que você significa pra mim. Apenas uma senhora.
- Ó céus, o que foi que eu fiz para merecer esse tipo de tratamento? Meu nome é Heloísa. Se quiser você pode me chamar por vó, certo?
- Certo, senhora.
Neste exato momento o sino tocou e todos se direcionaram ao refeitório, pois era hora do almoço. Heloísa se levantou e avisou a Allan que iria buscar o almoço dele. Ele fez sinal de positivo e debruçou-se sobre a cama.
O comportamento da criança era o que mais intrigava a carmelita. Ficava esta muito curiosa para saber como foi o passado do menino, mas pelo tipo de tratamento que ela recebia dele se tornava quase impossível o garoto contar algo à freira.
Chegando ao refeitório Heloísa procurou Allan com o olhar, achando-o facilmente. Pôs-se ela a sentar e a esperar servirem-na. Vagarosamente baixou a cabeça e iniciou uma oração. Enquanto orava notou que tudo estava em profundo silêncio. Assustada, ergueu rapidamente a cabeça e observou tudo ao seu redor. Via apenas meninos conversando e algumas carmelitas servindo o almoço. Pensou estar surda, o que a fez suar aos poucos. Trêmula, sentiu que seu coração acelerava e sua respiração cessava, como se estivesse ela engasgada. Rapidamente passou sobre sua mente a imagem de uma menina engasgando-se com um brinquedo em sua boca no quarto 039. Instintivamente Heloísa correu em direção ao quarto 039, assustando a todos em sua volta.
A carmelita subiu as escadas o mais rápido possível. Durante a subida ouvia gritos de desespero, deixando-a mais nervosa.
- Estou chegando! Agüente aí, pelo amor do Santo Cristo!
Ao chegar ao destino desejado encontrou mais um obstáculo: estava o cômodo trancado. A senhora tentou várias vezes abrir a porta, mas foi em vão. Continuou persistindo até que por um instante a porta abriu, permitindo-se apenas ver o quarto por uma pequena brecha. Porém, quando Heloísa tocou sua mão na porta, esta fechou violentamente, jogando-a a três metros de distância do quarto. Lentamente a freira ergueu-se e, ao entrar no aposento, surpreendeu-se...

Luíza: Parte 3

...uma menina engasgava-se com um brinquedo. Ela gemia deitada com a respiração acelerada e as mãos na boca.
Heloísa retirou o soro que estava preso no braço da menina, a pôs sentada na cama do quarto e deu alguns tapas nas costas da menina, mas ela não desengasgava. Optou por retirar com suas próprias mãos, e ao fazê-lo sentiu alívio e a criança começou a tossir, golfando um pouco sobre seu colo.
- Calma, filhinha, está tudo bem agora. Respire fundo e me conte o que aconteceu.
- Obrigado, senhora. Deixe eu te tocar. – esticou a garotinha a mão tentando alcançar o rosto da freira.
- Menina, não pode colocar brinquedos na boca, é perigoso.
- Mas ele que caiu. – apontou a jovenzinha para cima, onde havia vários brinquedos pendurados por fios de nylon.
- Mandarei retira-los, certo? Agora está tudo bem.
A inocente ajoelhou-se no leito e pôs-se a tocar a face da carmelita. Sorrindo, esta disse:
- Qual é o seu nome, querida?
- Marta, e o seu?
- Heloísa. Que bonito nome o seu!
- Obrigado. – sorriu a senhora novamente
- Eles ainda estão aí?
- Quem são eles?
- Os meninos que conversavam comigo no quarto.
- Mas não há menino algum por aqui. – olhou Heloísa em sua volta
- Então eles já foram.
- Como eles eram?
- Não posso contar.
- Por quê? Eles eram maus? – fez a freira uma careta engraçada fazendo Marta sorrir.
- Hahaha! Não. Eles não pareciam maus. Eu não posso contar porque eu sou cega. Como saberei como eles são?
Heloísa pegou na mão da criança e pediu para ela segui-la.
- Para onde vamos?
- Vamos à diretoria. Vai ser rápido.
- Mas vó, eu ainda tenho que tomar soro.
- Não se preocupe, não vamos demorar.
A garotinha foi levada nos braços até o quarto da freira, onde adormeceu. A senhora foi à diretoria e pediu que Marta ficasse sobre seus cuidados. Para os diretores não havia razões suficientes para a menina mudar de quarto e ficar sob cuidados especiais. Mas Heloísa insistiu e exigiu que a garota trocasse de cômodo. E assim foi feito; na mesma noite algumas enfermeiras aplicaram novamente o soro em Marta. A menina, entretanto, permaneceu em profundo sono, sem fazer o mínimo sinal de incômodo.
Durante a madrugada Heloísa despertou de seu sono e teve a seguinte surpresa: Marta não estava mais na cama. Imediatamente a carmelita calçou suas sandálias e pôs seu casaco, pois fazia frio, e foi à procura da menina. As luzes das escadas estavam acesas e Heloísa viu uma sombra em sua frente. Ao começar a subir as escadas ouviu passos e a sombra não estava mais em sua frente.
- Tem alguém aí?
Ouviu-se, afastando-se, uma risada semelhante à de uma criança.
- Marta? Sou eu! Vim te buscar! O que fazes acordada, menina?
O silêncio predominou, o que assustou um pouco a freira.
- Quem está aí? Vamos, responda!
Não se escutou resposta. Ao chegar ao andar acima encontrou apenas um corredor e várias portas. No final daquele se encontrava Marta e Allan correndo às risadas. Heloísa suspirou aliviada.
- Meninos... Vão dormir! Vocês sabem que é proibido meninos e meninas se misturarem. Se a Irmã Laura vir vocês dois juntos teremos problemas. Allan, como conseguiu passar para o lado que as meninas ficam? Ah, aquela Zélia deve estar dormindo em serviço. Coitada dela se a Irmã Laura descobrir que vocês estão juntos... Venham! Vocês têm que descansar. – eles não lhe davam a mínima atenção – Marta? Allan? Estão me ouvindo?
Heloísa apressou os passos, mas tropeçou e caiu no chão; havia um crucifixo preso dentre dois pisos. Ela pacificamente tirou o pequeno cordão que prendera em sua perna direita. Ao levantar-se viu as paredes do corredor rabiscadas, onde havia a frase “Reze por ela e por você também” em vários idiomas. A senhora caminhava e as frases formavam-se ao lado dela a cada passo que ela desse. Lentamente as paredes se afastaram e inúmeras imagens formavam-se perante a carmelita: uma garota ouvia música dentro de um carro, duas freiras se beijavam, várias crianças, sejam brancas ou negras, meninos ou meninas, corriam e brincavam de roda, um jovem e uma jovem namoravam debaixo de uma árvore, um rapaz e uma moça transavam, uma senhorita grávida sorria... Todas essas imagens formavam-se concomitantemente, causando dor de cabeça em Heloísa, fazendo-a fechar os olhos e gritar. Ao abrir os olhos viu que tudo voltara ao normal e as crianças estavam caídas no chão. A freira foi apanhá-las. Os dois tremiam com o frio e estavam de olhos fechados. Heloísa, ao tocá-los, os acordou.
- Vó! Que bom que estás aqui! O que fazemos aqui? Me leve para o quarto, por favor. Estou com frio, com medo! – gemeu Allan
- Vou levá-los daqui. Não tenha medo, vovó está com vocês.
- Quem é esta, vó? Nunca tinha visto uma menina de perto por aqui. – sorriu o menino, este tentando tocar o rosto de Marta com as mãos. – Me deixe tocá-la
Heloísa o colocou ao lado da garotinha. Allan alisava o rosto de Marta com os olhos brilhantes. A carmelita não conteve a emoção e derramou aos poucos algumas lágrimas. O garoto cantava baixinho:
- Menininha, menininha, você é tão bonitinha. Venha ser minha amiguinha! Vai ser legal. Brincaremos o dia inteiro. Brincaremos, brincaremos sem parar. Brincaremos, brincaremos até cansar e cantaremos até o sol raiar...
- Vamos. Vou deixar vocês nesse quarto. – apontou Heloísa para o quarto 056
Ela pôs os dois cuidadosamente numa cama de casal que havia no quarto. Pensou: “Cama de casal? Num convento?”. Pôs-se a observar o cômodo. Havia um extenso guarda-roupa que possuía vestes femininas e masculinas. Tinha também uma cômoda, e sobre esta haviam vários porta-retratos. Eram sete: no primeiro havia uma foto e um bebê, no segundo de uma menina de aproximadamente seis anos, no terceiro uma jovem de treze, no quarto uma moça de dezessete com o namorado, no quinto uma senhorita e seu marido no seu casamento, no sexto uma mulher grávida e por último uma senhora sentada numa cadeira de balanço sorrindo com seus netos. Todas as fotos mostravam momentos da vida de uma pessoa em ordem crescente. O que mais despertou a atenção de Heloísa foi que o indivíduo dos retratos era Luíza. Mas ela lembrou que a jovem morreu aos treze anos, como poderia ter casado, tido filhos e netos?
- Não encontrou o que queria, Heloísa? - soou uma voz feminina em seus ouvidos...