Era um domingo de manhã cedo quando eu aguardava na sala mainha retornar do hospital. A noite anterior não fora uma noite de sábado de plantão como as que ela costumava ter no seu cotidiano de enfermeira. Ela passara a noite cuidando de vovô, seu pai, que já estava doente havia uns meses e nos últimos dias toda a família já estava temerosa de que sua partida era iminente. A campainha tocou.Mainha havia chegado. Não abriu a porta porque possivelmente não conseguiu encontrar a chave dentro do caos que era sua bolsa. Abri-lhe a porta e beijei-, lhe a testa entre os olhos marejados e vermelhos que me pediam um abraço. Talvez o abraço que ela não conseguira dar nas últimas horas. Ele se foi, não foi? Perguntei. Sim, seu avô morreu agora de madrugada Disse -me desabando em lágrimas em um novo abraço. Vá dizer aos seus irmãos. Atendi rapidamente o seu pedido e direcionei -me aos quartos deles , não em passos saltitantes como fazia quando vovô me chamava pra ir à feira com ele. Mas fui, de imediato. 

Era treze de fevereiro, mesma data em que começaram as aulas na nova escola em que eu estudaria quando passamos a morar com vovô e vovó após a separação de meus pais.


Levanta, vai tomar banho e comer, que hoje é o primeiro dia de escola e quem vai levar vocês é seu avô. Certamente fora assim que mainha teria me acordado nove anos antes, naquele treze de fevereiro de mil novecentos e noventa e seis, quando, ansioso para conhecer a nova escola, acordei para arrumar minha mochila do ursinho Joel para ser conduzido à escola no Marajó verdinho do vovô. 

Bati à porta do quarto de cada um para cumprir o pedido de mainha, mas,antes que eu dissesse palavra, a voz dela surgiu por trás de mim e anunciou o que ocorrera com a objetividade que pertencia a seu perfil. Meu irmão ficou parado à porta de seu quarto, incrédulo; minha irmã, em lágrimas. Eu ainda não havia apresentado uma reação que esboçasse o que de fato eu estava sentindo. 

Todos os dias ouvia seus passos arrastados pelo corredor em direção à cozinha para aguardar vovó preparar seu café da manhã.cuscuz com galinha e café quentinho preparados pela vovó, alimento o qual ele saboreava sentado na ponta da cadeira, hábito que herdei dele sem perceber. Só não herdei o costume de roer o ossinho da galinha após a refeição . Eu, pequenino, por vezes o encontrava já no corredor, mesmo, geralmente às cinco e meia da manhã, horário em que ele religiosamente levantava. Geralmente, na mesa do café da manhã, mesmo, eu lhe pedia a benção, que me era carinhosamente concedida com sua voz levemente rouca.

Os sábados eram um evento semanal para mim. Era dia de feira. Sempre ganhava um real para comprar o que quisesse. O que eu quisesse, reitero. Geralmente eu escolhia os pirulitos em formato de guarda-chuva, balinhas de iogurte ou caramelos em cubinhos.Como brinde ele sempre me dava purulitos em forma de caju, os quais eu amava receber. E se eu tivesse me comportado durante a semana, ainda ganhava um time de futebol de botão quando passássemos na barraquinha que vendia brinquedos na feira. E na saída não poderia faltar o pastel de queijo com caldo de cana.


Domingo de manhã eu o ouvia cantarolar logo cedo uma música que guardo muito afetuosamente na minha memória de criança católica que fui. Ela dizia “A Tua tenura, Senhor, vem me abraçar, e a Tua bondade infinita me perdoar.Vou ser o teu seguidor e Te dar o meu coração, eu quero sentir o calor de Tuas mãos. E sentindo o calor de suas mãos eu ia com ele à missa todos os domingos pela manhã. Como homem de muita fé e devoto a Deus e a Nossa Senhora que ele foi, não havia como sua partida ser em outro dia que não fosse o domingo. Era tão apegado a Jesus que nasceu à véspera do Natal.

Natal em família era o evento mais esperado do ano. Não apenas por ser Natal, mas por ser aniversário de vovô, e reunir toda a família, filhos e netos para confraternizar e celebrar mais um ano de sua vida. Depois que ele se foi, o natal nunca mais foi o mesmo. É como se o natal tivesse perdido a essência do que a data representava para nós.Ele era nosso pilar, nosso porto seguro, para filhos e netos. 



Chegando ao velório, ao vê-lo deitado em um caixão, desabei em lágrimas, só cessando o choro quando retornei para casa, muitas horas depois. O enterro foi em Riachão do Dantas, cidade onde ele nascera e se criara, bem como onde casou e criou seus filhos.

No trajeto de Aracaju até o cemitério só se ouviam meus soluços no carro, abraçado à minha mãe, como uma criança de colo, apesar de já estar no auge de meus quinze anos. Não sabia que você amava tanto seu avô, disse minha mãe dias depois. Nunca te vi chorar tanto. Naquele dia eu não perdia apenas meu avô. Naquele dia eu perdia meu pai, o homem que mais amei na minha vida inteira , acima de irmãos, tios, e obviamente de meu genitor, que jamais exerceu a função de pai. 

No dia dos pais na escola nova em minha primeira série, realizada em mil e novecentos e noventa e seis, confeccionamos em sala um presente para o papai. Fora uma flanelinha com as iniciais do nome dele. Entreguei -, lhe com bastante alegria, pois ele amava limpar o carro de manhãzinha passando-lhe uma flanelinha e a partir de então ele usaria a flanelinha que EU lhe dei de presente customizada com as iniciais do seu nome. E isso me deixou muito orgulhoso de mim mesmo. Certamente ele gostou, pois eu o vi várias vezes limpar o carro utilizando -a.

Dia de semana à noite ele gostava de sentar à varanda após o jornal para fazer sua leitura diária. Eu amava quando sua leitura era o seu almanaque Abril, pois ele me encantava com seu conhecimento em geografia. Às vezes ele brincava, como quando ele disse que Camarões tem esse nome porque a população de lá só se alimentava de camarão. Eca, pensei, posto que na infância esse não era um alimento que me agradava . Outra vez ele contou que a cidade sergipana de Salgado tem esse nome porque uma vez um caminhão de uma fábrica de sal caiu no meio da rua e resolveram dar o nome de Salgado para a cidade porque o chão dela ficou salgado. Era o tipo de brincadeira que eu levava a sério e contava para os coleguinhas da escola com a justificativa de que eu falava a verdade porque fora o vovô que me ensinou assim , afinal o vovô não mentiria nem jamais me ensinaria algo errado, não é mesmo? Tenho absoluta certeza ainda hoje que não. Ele segue sendo um dos homens mais inteligentes que conheci e meu maior referencial de paternidade, honra, dignidade e fé. Descanse em paz, vô. Descanse em paz, meu pai. Amo-te e amar-te-ei até o dia de nosso reencontro, na eternidade, onde sentirei novamente o calor de suas mãos 

ãos