Isquemia


Não precisas me dizer quem devo ser

 com quem devo andar

 Ou para onde eu devo ir

Tua falta de compaixão e de amor me fizeram cair

Ao longe ouço as sirenes ecoarem

Passos e vozes desconhecidos 

A me socorrerem

Meu corpo e espírito não conseguem me manter de pé


Sinto tua escuridão a distância 

Ela me faz desacreditar de mim 

Tuas falsas orações não me impediram  de sucumbir


Tudo o que sou jaz esquecido ao fim daquele dia

Meu amor e o calor da minha fé interrompidos em silêncio 

Pelo romper dessa isquemia 


Tudo aquilo que amei não pode esvanecer

Na crueldade de tua mão fria

Meu amor não irá silenciar ao romper dessa isquemia


Digo a mim mesmo pela última vez 

Que não necessito de tua misericórdia nem tuas verdades vis

Nem me dobrarei de joelhos a ti novamente

Fujo da tua a penumbra, mas ainda há luz no dia

Do teu olhar a cada abraço ou riso não consentido 

Teu julgamento não mais prevalecerá.

Tua escuridão tenta me ofuscar a distância

Eu não necessito do teu perdão

Nem do teu amor ou aprovação


Todo o verdadeiro amor que construí  à luz do dia

Não será ofuscado pela sombra de tua isquemia

Todo o teu ódio e desprezo pelos meus em plena luz do dia

Definharão ao esvanecer dessa isquemia


 Era um domingo de manhã cedo quando eu aguardava na sala mainha retornar do hospital. A noite anterior não fora uma noite de sábado de plantão como as que ela costumava ter no seu cotidiano de enfermeira. Ela passara a noite cuidando de vovô, seu pai, que já estava doente havia uns meses e nos últimos dias toda a família já estava temerosa de que sua partida era iminente. A campainha tocou.Mainha havia chegado. Não abriu a porta porque possivelmente não conseguiu encontrar a chave dentro do caos que era sua bolsa. Abri-lhe a porta e beijei-, lhe a testa entre os olhos marejados e vermelhos que me pediam um abraço. Talvez o abraço que ela não conseguira dar nas últimas horas. Ele se foi, não foi? Perguntei. Sim, seu avô morreu agora de madrugada Disse -me desabando em lágrimas em um novo abraço. Vá dizer aos seus irmãos. Atendi rapidamente o seu pedido e direcionei -me aos quartos deles , não em passos saltitantes como fazia quando vovô me chamava pra ir à feira com ele. Mas fui, de imediato. 

Era treze de fevereiro, mesma data em que começaram as aulas na nova escola em que eu estudaria quando passamos a morar com vovô e vovó após a separação de meus pais.


Levanta, vai tomar banho e comer, que hoje é o primeiro dia de escola e quem vai levar vocês é seu avô. Certamente fora assim que mainha teria me acordado nove anos antes, naquele treze de fevereiro de mil novecentos e noventa e seis, quando, ansioso para conhecer a nova escola, acordei para arrumar minha mochila do ursinho Joel para ser conduzido à escola no Marajó verdinho do vovô. 

Bati à porta do quarto de cada um para cumprir o pedido de mainha, mas,antes que eu dissesse palavra, a voz dela surgiu por trás de mim e anunciou o que ocorrera com a objetividade que pertencia a seu perfil. Meu irmão ficou parado à porta de seu quarto, incrédulo; minha irmã, em lágrimas. Eu ainda não havia apresentado uma reação que esboçasse o que de fato eu estava sentindo. 

Todos os dias ouvia seus passos arrastados pelo corredor em direção à cozinha para aguardar vovó preparar seu café da manhã.cuscuz com galinha e café quentinho preparados pela vovó, alimento o qual ele saboreava sentado na ponta da cadeira, hábito que herdei dele sem perceber. Só não herdei o costume de roer o ossinho da galinha após a refeição . Eu, pequenino, por vezes o encontrava já no corredor, mesmo, geralmente às cinco e meia da manhã, horário em que ele religiosamente levantava. Geralmente, na mesa do café da manhã, mesmo, eu lhe pedia a benção, que me era carinhosamente concedida com sua voz levemente rouca.

Os sábados eram um evento semanal para mim. Era dia de feira. Sempre ganhava um real para comprar o que quisesse. O que eu quisesse, reitero. Geralmente eu escolhia os pirulitos em formato de guarda-chuva, balinhas de iogurte ou caramelos em cubinhos.Como brinde ele sempre me dava purulitos em forma de caju, os quais eu amava receber. E se eu tivesse me comportado durante a semana, ainda ganhava um time de futebol de botão quando passássemos na barraquinha que vendia brinquedos na feira. E na saída não poderia faltar o pastel de queijo com caldo de cana.


Domingo de manhã eu o ouvia cantarolar logo cedo uma música que guardo muito afetuosamente na minha memória de criança católica que fui. Ela dizia “A Tua tenura, Senhor, vem me abraçar, e a Tua bondade infinita me perdoar.Vou ser o teu seguidor e Te dar o meu coração, eu quero sentir o calor de Tuas mãos. E sentindo o calor de suas mãos eu ia com ele à missa todos os domingos pela manhã. Como homem de muita fé e devoto a Deus e a Nossa Senhora que ele foi, não havia como sua partida ser em outro dia que não fosse o domingo. Era tão apegado a Jesus que nasceu à véspera do Natal.

Natal em família era o evento mais esperado do ano. Não apenas por ser Natal, mas por ser aniversário de vovô, e reunir toda a família, filhos e netos para confraternizar e celebrar mais um ano de sua vida. Depois que ele se foi, o natal nunca mais foi o mesmo. É como se o natal tivesse perdido a essência do que a data representava para nós.Ele era nosso pilar, nosso porto seguro, para filhos e netos. 



Chegando ao velório, ao vê-lo deitado em um caixão, desabei em lágrimas, só cessando o choro quando retornei para casa, muitas horas depois. O enterro foi em Riachão do Dantas, cidade onde ele nascera e se criara, bem como onde casou e criou seus filhos.

No trajeto de Aracaju até o cemitério só se ouviam meus soluços no carro, abraçado à minha mãe, como uma criança de colo, apesar de já estar no auge de meus quinze anos. Não sabia que você amava tanto seu avô, disse minha mãe dias depois. Nunca te vi chorar tanto. Naquele dia eu não perdia apenas meu avô. Naquele dia eu perdia meu pai, o homem que mais amei na minha vida inteira , acima de irmãos, tios, e obviamente de meu genitor, que jamais exerceu a função de pai. 

No dia dos pais na escola nova em minha primeira série, realizada em mil e novecentos e noventa e seis, confeccionamos em sala um presente para o papai. Fora uma flanelinha com as iniciais do nome dele. Entreguei -, lhe com bastante alegria, pois ele amava limpar o carro de manhãzinha passando-lhe uma flanelinha e a partir de então ele usaria a flanelinha que EU lhe dei de presente customizada com as iniciais do seu nome. E isso me deixou muito orgulhoso de mim mesmo. Certamente ele gostou, pois eu o vi várias vezes limpar o carro utilizando -a.

Dia de semana à noite ele gostava de sentar à varanda após o jornal para fazer sua leitura diária. Eu amava quando sua leitura era o seu almanaque Abril, pois ele me encantava com seu conhecimento em geografia. Às vezes ele brincava, como quando ele disse que Camarões tem esse nome porque a população de lá só se alimentava de camarão. Eca, pensei, posto que na infância esse não era um alimento que me agradava . Outra vez ele contou que a cidade sergipana de Salgado tem esse nome porque uma vez um caminhão de uma fábrica de sal caiu no meio da rua e resolveram dar o nome de Salgado para a cidade porque o chão dela ficou salgado. Era o tipo de brincadeira que eu levava a sério e contava para os coleguinhas da escola com a justificativa de que eu falava a verdade porque fora o vovô que me ensinou assim , afinal o vovô não mentiria nem jamais me ensinaria algo errado, não é mesmo? Tenho absoluta certeza ainda hoje que não. Ele segue sendo um dos homens mais inteligentes que conheci e meu maior referencial de paternidade, honra, dignidade e fé. Descanse em paz, vô. Descanse em paz, meu pai. Amo-te e amar-te-ei até o dia de nosso reencontro, na eternidade, onde sentirei novamente o calor de suas mãos 

ãos 





Lírico Laço

Dedicado a meu irmão Kevin 

O surgir de tal lírico laço

Forte, indescritível e eterno,

De Um sentimento paternal e fraterno

Lembra a cor natural de teu cabelo


E a nossa união que carrega a fé e o amor como selo


Sustentada na verdade de cada abraço


A Natureza com tamanha inteligência abençoou teu brilho 

Tu és udo aquilo que almejo um dia para um filho,


Tens qualidades quase sobrenaturais 

Mas há um detalhe surreal

Outro de ti não há de haver igual

Nem amarei outrem de mesmo modo jamais 



Salmos 30:5

 No silêncio surdo, sacro e sideral

Entregue a frios lençóis e travesseiros

No covarde aconchego dos cabelos

Ecoa minha voz imaterial.


As paredes emudecem o soluço

De minh'alma entrelaçada em lamento

A vãs lembranças, memórias de um tempo

Insuprível sobre as quais me debruço.


Entretanto, ao findar da madrugada

Que o mar salgado sob meus olhos rega

E o meu peito em desespero se entrega


Tua luz me encontra à aurora de joelhos

Leva-me a brandas águas meus artelhos

Sobre as quais eu caminho na alvorada.


Melhor Amigo

 

Desde que me conheço por gente, sempre desejei ter um melhor amigo. Não sei exatamente quando essa necessidade começou, ou se realmente posso denominar isso como uma necessidade. Mas é fato que por toda a minha vida sempre busquei designar o título de “melhor amigo” a algum vínculo afetivo. E me frustrei em todas as tentativas, as quais se prolongaram por três longas décadas.

Quando pequeno, lembro-me de ter tido um coleguinha que identifiquei como meu melhor amigo. Era com ele que eu preferia brincar, com quem gostava de partilhar meus brinquedos. Lembro-me de uma vez que trocamos nossos dois bonecos favoritos no período de um dia. Chegando em casa, a vovó não gostou nem um pouco e a bronca foi certeira. Quem empresta não presta.

No decorrer daquele ano, percebi que ele já não fazia mais tanta questão de brincar comigo, preferindo sempre estar com os demais. Na festa junina da escola, me vi isolado na mesa enquanto os outros coleguinhas confraternizavam como se eu simplesmente não existisse. A professora se aproximou e perguntou por que eu estava ali sozinho. Não soube responder. Na verdade, eu não queria responder. Era desconfortável ter que explicar, já aos cinco anos, que eu me sentia desconectado. 

A escolinha oferecia seu ensino até a Alfabetização, e após a formatura do ABC nunca mais tive contato com nenhum deles. Nova escola, novas amizades. Na fileira ao lado, na minha 1ª série do Ensino Fundamental I, sentava um garotinho amarelo do cabelo loiro. Eis ali o novo melhor amigo. Fazíamos trabalho juntos, tomávamos bronca na sala juntos. Disputávamos, inclusive, o pódio dos melhores alunos da classe. Fiquei em terceiro. Ele ficou de fora. Mas me deu um parabéns vigoroso, desses de quem torce por a gente. Encerrado o ano, tirei-o no Amigo Secreto e dei-lhe a cobiçada maleta preta de lápis de cores, canetinhas e aquarela que toda criança de seis anos nos anos 90 gostaria de receber. Recebi do Alfredo um CD do cantor de axé Netinho. Chorei um misto de decepção e ódio.

Após o encerramento do Ensino Fundamental I, anteriormente chamado de Ensino Primário, mudei de escola e perdi contato com o cidadão, reencontrando-o cerca de dez anos depois, no aniversário de um amigo que fiz no Ensino Médio. Contente em revê-lo, fui cumprimentá-lo.

Desculpa, cara. Você estudou comigo? Não lembro. Mas beleza, foi uma satisfação.

Entre meus oito e nove anos, passei alguns fins de semana na casa de meu primo. Futebol, videogame, bicicleta. Você é meu melhor amigo. Foi a primeira vez que verbalizei isso. No sítio do vovô, apesar de vestir camisas de times rivais, sentíamos em campo que éramos imbatíveis. Era maravilhoso desbravar o sítio, correr na mata desesperadamente após ouvirmos algum barulho supondo ser uma raposa, ou então ouvir histórias de lobisomens antes de dormir. No São João as bombinhas ficavam por sua conta, sempre fui hipersensível a sons intensos. Preferia as chuvinhas ou os estalinhos. Gostava de assistir também os vulcões. No quintal de sua casa, a hora preferida era a piscininha que assistíamos pacientemente encher com a mangueira. Jogos de ação? Amávamos. Jeancley e Peterson, esses eram nossos nomes de guerra quando vestíamos uma bandana e empunhávamos nosssas armas de brinquedo para combater nossos inimigos quintal adentro.

Certa vez, já adolescentes, encontrei-o no shopping, com seus pais. Quando corri com brilho nos olhos para abraçá-lo, fui recebido com um aceno seco: Oi.

E nada mais.

Ele está tendo um dia ruim, pensei. Meses depois, na festa de Natal, lá estávamos juntos de novo. Vamos jogar futebol? Não, obrigado. Vou ficar aqui tocando violão, disse sem sequer me direcionar o olhar. No decorrer da festa ele apareceu na quadra, mas não fez a mínima questão de trazer de volta a dupla imbatível dos garotos do sítio.

Na aurora dos anos dois mil mudei de escola, bem como para o apartamento onde morei por 16 anos, onde conheci um garoto pouco mais baixo que eu, dois anos mais novo, que jogava bola como ninguém. Chamavam-no até de Canniggia, em homenagem ao ídolo do futebol argentino, o qual tinha, assim como ele, cabelos lisos e loiros.

Estudávamos na mesma escola, apesar de alocados em blocos diferentes, tendo em vista que eu iniciava o Ensino Fundamental II e ele ainda estava na 2ª série do Ensino Fundamental I. Apesar disso, a gente sempre se encontrava. Em pouco tempo, ele mudou de casa, mas antes que meu coração ficasse de luto, fui informado que aos fins de semana ele estaria lá na casa dos avós, e que ele continuaria estudando na mesma escola. Não tardou para que eu passasse a frequentar a casa dele. A avó dele me adorava, o avô nem tanto. Os pais e tios também gostavam muito de mim, bem como seus irmãos mais novos. Lá eu me sentia em casa, como se estivesse entre avós, irmãos, tios e primos.

Na casa de praia de seus avós, soltávamos pipa o dia inteiro e criávamos histórias com monstros de areia e praia vulcânica cuja lava devoraria quem pisasse na água. Criamos personagens cujos nomes eram os nossos nomes reais ao contrário. Até mesmo a volta para casa se tornava um evento divertido, enquanto atravessávamos o Rio Sergipe navegando sobre a balsa que levava e trazia milhares de pessoas todos os dias.

Certa vez, houve a comemoração junina do condomínio. Fiquei superanimado por conta de que a presença dele estava confirmada, e assim todo o nosso grupo estaria reunido. Todos caprichados em sua roupinha xadrez, botas e jeans. As meninas, algumas de vestido. Já no desenrolar da festa, depois de comermos bastante milho e bebermos muito refrigerante, avistei-o ao longe adentrar o condomínio com os pais e irmãos. Vieram caminhando devagarinho até chegarem ao salão. Não o esperei sentar, levantei-me de onde estava e acenei, chamando-o pelo nome. Ele desviou a atenção, procurando onde sentar. A mãe cutucou-o, mostrando-lhe que eu falava com ele, que não deu a mínima. Ela acenou de volta, sem jeito, comprimindo os lábios e fixando-me o olhar. Reclamou da atitude dele, em seguida, e ele demonstrou impaciência.

Ambos estávamos entrando na adolescência. Ele queria crescer, tornar-se um homem. Eu queria ser criança para sempre. Na festa, eu queria brincar; ele não, pois brincar é coisa de criança. Fiquei desapontado, e não consegui disfarçar isso. As demais crianças do condomínio me convidavam para brincar, mas eu só queria ficar sentado, pensativo, digerindo minha frustração.

Os anos se passaram e eventos como esse se tornaram rotina. Festa de aniversário? Ele não comparecia. Jogar futebol? Os colegas do novo condomínio e os garotos da escola jogavam muito melhor que eu. Videogame? Eu tinha um Super Nintendo, ele jogava Play Station com os amigos. Comer hambúrguer na lanchonete da frente após o futebol da tarde e após o banho ficar conversando em roda na arquibancada do condomínio ao lado? Beber se tornou para ele muito mais interessante.

Ele nunca foi seu amigo.

Eu deveria ter escutado minha mãe.

À mesma época havia um garoto no condomínio que tinha exatamente a mesma idade que eu. Cinco meses mais jovem, sendo mais exato. A forma como o conheci foi a mais inusitada possível. Ele convidou meu irmão para sua festa de aniversário, mas eu fui no lugar. O nome dele era diferente, a ponto de eu achar que era um apelido. Foi no aniversário que descobri que era seu nome, realmente.

Nossa, como vocês se parecem. Branquinhos, cabelo preto, magrinhos, mesma estatura, mesma idade. E as semelhanças não paravam por aí. Pais separados, apegado a um irmão mais novo, enfim. E torcíamos para o mesmo time. Realmente éramos muito parecidos. Éramos um prato cheio para sermos uma dupla de melhores amigos imbatível.

Nós tínhamos o mesmo perfil de dominação de território. Gostávamos de liderar as brincadeiras no condomínio, de inventar novos jogos, criar novas histórias, e isso criava em nós um clima de disputa vezes saudável, vezes nem tanto.

Brigávamos, brigávamos bastante. Certa vez sua vó descobriu e nos obrigou a fazermos as pazes. Vocês são como irmãos, não podem brigar. Bonita frase, mas eu acho que é justamente porque éramos como irmãos que brigávamos tanto.

Eu era atacante, ele era goleiro. Se eu fazia o gol, a provocação era certa. Se ele defendia todos os meus chutes, eu não tinha paz o resto do dia. Em campeonatos de videogame, concorríamos a lanterna da tabela, que era decidida geralmente no critério de desempate: quem levava menos gols dos adversários. O mesmo ocorria em campeonatos de futebol de botão, apesar de eu geralmente levar vantagem nos confrontos diretos. Se alguma menina novata aparecia no condomínio, disputávamos a atenção  dela, ainda que nenhum dos dois nunca conseguisse sucesso. Não que esse fosse o nosso real objetivo, éramos apenas duas crianças. O nosso real objetivo era o prazer em competir.

Certa vez mãe, tia e vó tiveram de se mudar para um bairro distante. Foi a partir dali que passamos a unir mais forças do que medi-las. Passamos a sentir falta um do outro, até de brigar um com o outro. Os melhores passeios eram sempre quando íamos para sua casa no interior, embora se durássemos muito tempo juntos por lá, não perdíamos a ocasião para gerarmos contenda. Bolo quentinho às três da tarde, videogame e brincadeiras na varanda o dia inteiro. Às vezes futebol no paralelepípedo para sangrar o dedão.

E assim crescemos juntos, amadurecemos juntos, até que concluído o Ensino Médio a vida o convidou para alçar voo, e assim o nosso contato foi diminuindo, nosso convívio foi deixando de existir, mas um jamais deixou de querer saber do outro, seja através das redes sociais, seja através das sagradas ligações de Feliz Aniversário.

No Ensino Médio mudei de escola e de turno, passando a estudar pela tarde. Até que não foi difícil me acostumar, tendo em vista que sempre acordei cedo e isso facilitou minha organização nos estudos. Minha sala tinha poucos alunos, não mais que vinte ou vinte e cinco. Foi uma experiência nostálgica voltar a estudar na escola onde concluí o Ensino Fundamental I, a qual guardava preciosas memórias de minha infância.

Dentre meus colegas de infância só encontrei uma garota, que logo me reconheceu e de mim se aproximou. Passado um ou dois meses de aula, vi um jovem de cabelo liso, alto, olhos verdes e pele de boneca de porcelana, desses que as meninas tomam como referência de padrão de beleza tocando violão na sala. Ele se encaixaria nos tais padrões de beleza se não fosse um completo desastrado e ingênuo, cuja preocupação era ser o melhor aluno da sala, criar jogos de RPG e tocar violão.

Identifiquei-me.

Entre vozes e violão, fomos os únicos restantes na roda musical e passamos a conversar sobre jogos, música e desenhos animados. E, de forma discreta, sobre as meninas e como elas passam a ser muito mais bonitas e interessantes depois que passamos dos quatorze anos.

Pouco a pouco tornávamos amigos cada vez mais próximos. Frequentávamos a casa um do outro, sempre convidávamos um ao outro para sair com os amigos que foram se tornando amigos em comum, seja para jogar futebol ou ir ao cinema. A propósito, ele foi o primeiro vínculo afetivo construído na escola a me chamar para o cinema, e aquilo teve um grande significado para mim, o suficiente para que eu o alocasse na posição de melhor amigo.

Mas ele não é seu amigo, avisou mais uma vez minha mãe.

Já ao Ensino Médio ele entrou em um processo depressivo, que na ocasião eu julgava ser por conta das pressões que estudantes de terceiro ano colocam sobre si para que sejam aprovados. Foi quando descobri que eu era um dos responsáveis, por conta dos meus diálogos por vezes mórbidos, tendo em vista a influência ultrarromântica e simbolista nas minhas leituras, bem como minha fascinação por Radiohead.

Você é um maníaco depressivo.

Ouvi-lo desabafar essa frase foi um soco na boca do meu estômago. Seguido de todas as piadas fora de hora ou comentários julgados como desnecessários que, confesso, sempre tive o hábito de fazer. Eis o motivo, verbalizado por ele mesmo, de nosso real distanciamento, já às vésperas do vestibular. Aprovados na Universidade Federal, reatamos os laços, que novamente se fortificaram aos poucos, até que eu fosse rejeitado na surdina de viajar com nosso grupo de amigos para o sítio dos seus avós no interior de Alagoas. O motivo era bem simples e nem um pouco surpreendente: não havia vaga para mim, posto que haveria um passeio para uma casa de praia alugada por sua então namorada e eu não era bem-vindo na ocasião.

O episódio fragilizou novamente nossa amizade, e só se abandonaram as mágoas depois de informado que ele se mudaria temporariamente para a França. Na despedida, beijos e abraços fraternos e pedidos de desculpa mútuos, por tudo. Dali em diante, permanecemos amigos, mas não mais melhores.

No mesmo ano em que mudei para a escola onde estudei quando criança, conheci um garoto cabeçudo que jogava basquete na quadra do condomínio ao lado, onde se localizava boa parte dos meus amigos. Seu apelido combinava o suficiente com ele para que ninguém o chamasse pelo nome. Três anos mais novo, estudávamos na mesma escola.

Ao passo que eu concluía o Ensino Médio, tornamo-nos grandes amigos, o bastante para dizer que seria uma das histórias de amizade mais legais que já me aconteceram se não fosse o seu trágico e traumático desfecho.

Fui tomado por ele como referencial de irmão mais velho. Fazíamos parte do cotidiano um do outro diretamente, a ponto de eu ensinar-lhe o dever de casa por um bom tempo. Lembro-me bem do primeiro beijo que ele deu em uma garota, na arquibancada do condomínio, que provocou grande festa entre nosso grupo de amigos.

Uma vez arranjamos namoradinhas no mesmo dia, durante o aniversário de um amigo do grupo, o baiano. Minha relação durou algumas semanas, a dele se estendeu por alguns meses, e foi justamente a partir daí que as coisas começaram a desandar.

Havia, digamos, um sentimento de paz armada entre mim e sua namorada. Ela o queria o tempo inteiro, toda vez que julgasse necessário. Eu não admitia que ela manipulasse e brincasse com os sentimentos dele, enquanto mostrava explicitamente interesse em outros garotos durante o namoro. A bem da verdade era um namoro sério demais para dois adolescentes de 14 e 13 anos. Eu, aos 17, bancava o irmão superprotetor que não queria vê-lo sofrer. E era justamente essa superproteção que levava, mais uma vez, algum vínculo afetivo para o limbo.

Fui operado ao completar dezoito anos. Pneumotórax. Todos os meus amigos se fizeram presentes para me visitar no hospital, exceto ele; havia combinado de ir ao shopping com a namorada e ela não aceitou que o encontro fosse desmarcado. Ironicamente, ela foi me visitar, sozinha. O pai a levou. Perguntei por ele, ela justificou que ele andava ocupado e não poderia vir.

Meses depois o chamei para conversar e contei coisas que vinham acontecendo nos bastidores do seu relacionamento sem que ele notasse, por estar envolvido demais. Apesar de considerar que tomei a decisão correta, visto que o convidei para lhe mostrar a verdade, foi a pior decisão a ser tomada. Eles terminaram, semanas depois. Mas nossa amizade terminou também.

Liguei num dia comum para a casa dele, como de costume. Ele está no banho, hoje ele vai sair com o pai, disse a mãe dele com voz séria e com ar de desconfiança. Senti de imediato que havia algo de errado. Mandei mensagem através do MSN, extinto aplicativo de mensagens. Ele não respondeu. O que está acontecendo? À noite conversamos. À noite ele foi ao meu condomínio para conversarmos, e era nítido o desconforto em ele estar ali, logo que chegou. Durante o desenrolar da conversa, rimos bastante e tudo parecia estar bem. Da janela, a mãe dele nos viu conversar. Suba agora.

Ao retornarmos para casa, procurei-o por mensagem. Aconteceu alguma coisa? Eu não posso te dizer, mas é melhor a gente se afastar. Foram horas de conversa por MSN e tudo o que obtive como resposta foi um seco e inegociável adeus. A mãe dele fantasiou que vivíamos às escondidas um relacionamento amoroso. Essa explicação não foi uma teoria da conspiração formulada por minha mente criativa, mas foi dada por ele meses depois, quando por acaso nos encontramos no condomínio e ele achou justo me contar a verdade.

Depois de digerir toda essa situação, compreendi o quanto esse desfecho foi patético, ainda que trágico. Foi quando eu entendi que é preciso apenas um pretexto para que sejamos removidos da vida de alguém, por mais esdrúxulo que ele seja. Lamento ter entendido, mas nunca aprendido.

Recebi todo o apoio e suporte para superar o trauma por parte do meu irmão, ou aquele que eu por anos julguei como tal. Baiano, carismático, líder nato. Magrinho, cabelo preto, branquinho, tínhamos a mesma altura, pelo menos até que ele desse o famoso estirão da adolescência e ficasse quase dez centímetros maior que eu.

No início de tudo tinha eu quatorze anos; ele, onze.

Vocês são irmãos? Essa foi uma pergunta que ouvimos por anos, e que sempre houve confirmação, ao menos por minha parte. Não é muito difícil achar semelhanças em dois garotos brancos, magros e de cabelos pretos, exceto pelos olhos verdes e a pele sem espinhas, que o colocava facilmente à frente como mais bonito aos olhos das garotas.

Foi a primeira amizade que me fez alimentar genuinamente o sentimento de fraternidade. A propósito, por anos fui odiado por seu irmão caçula em virtude de crises de ciúmes constantes que ele tinha contra mim.

Ele é meu irmão, não seu. Repetia incessantemente.

Passar finais de semana na casa dele era rotina, ainda que morássemos a cinquenta metros de distância. Salvo a rotina escolar, estávamos sempre unidos. Unidos a ponto de ser regras, por vezes, que não podíamos ficar no mesmo time em determinadas competições, por conta de que isso tornava nosso time forte e imbatível demais. Férias significavam colônia de férias em sua casa e não demorou que eu conhecesse toda a sua família, desde tios e avós até os primos mais distantes.

Através dele passei a frequentar a igreja, onde ouvi falar de um Deus que faz de seus filhos irmãos em nome de Jesus Cristo. De um Deus que é amor, de uma igreja que é família. Senti minha vida ser transformada, no meu pensar, sentir, no meu enxergar o mundo, abrindo mão daquela morbidez que dominava meus pensamentos. Sua mãe, a quem eu carinhosamente chamava de tia, tornou-se líder do nosso grupo de teatro evangelístico na igreja e aos meus dezenove anos me converti ao cristianismo protestante e logo me batizei.

Comemoramos juntos aprovações no vestibular, aniversários, títulos de campeonatos de futebol de condomínio, criamos até um time de futebol society. Compartilhamos dores, amores e dissabores. Beijamos até, por vezes, as mesmas garotas. Até que, por fim, ele encontrou uma namorada que duraria bons longos anos.

Num certo momento, os pais deixaram de aprovar o relacionamento deles. Forçaram o término.

Pouco depois o pai foi transferido para a Bahia, levando a mãe e o irmão. Não tardaria que ele também fosse. E não tardou. Os dias dele na cidade estavam contados, e eu me esforçava para poder aproveitá-lo, apesar de não sentir que havia reciprocidade. Nunca havia tempo. Nunca havia disponibilidade. Até que o dia de ele partir para Salvador chegou.

Posso ir te dar um abraço? Quando eu voltar do shopping com a minha mãe, eu te aviso e você vem.

Fiquei ansioso, aguardando esse retorno. Ia e vinha o tempo inteiro à janela do quarto verificar se eles já estavam em casa, para poder me despedir do meu irmão, do meu melhor amigo. As luzes acenderam. Esperei o telefone tocar. Minutos, dezenas de minutos, uma hora.

Oi, tia. Posso ir aí ver vocês? Pode, meu filho. Ele já está lá embaixo.

Ele está me esperando, certamente. Desci correndo as escadas, como alguém que está prestes a perder um avião. Informei ao porteiro que ele me aguardava e entrei no condomínio. Ele não estava na arquibancada, ou nos bancos da área de convivência. Não estava no hall do edifício, tampouco na quadra.

Acionei o elevador. Ele também não estava em casa. Tia suspirou e desceu comigo as escadas falando várias coisas que eu não conseguia compreender. Caminhamos diretamente para o carro deles, que se encontrava na garagem.

Saiam daí agora, disse ela irritada, abrindo a porta do carro.

Ele estava tendo a última oportunidade de diálogo com a ex-namorada, de quem sou amigo até os dias atuais. Foram impelidos a sair do veículo após Tia ordenar que o fizessem. Se eu não estava entendendo algo, naquele momento eu entendia cada vez menos.

Tia, o que está acontecendo?

Como ele sabia que eu viria, ele se escondeu no carro, para que eu não os encontrasse e pudessem dialogar em paz. Eu só queria um abraço, mas tudo o que recebi foi a comprovação de que eu jamais estive onde eu gostaria de ter estado: na condição de irmão, de melhor amigo.

Fui embora, sem dizer ao menos até logo. Sem despedida, sem beijo ou abraço fraterno.

Nunca conversamos a respeito nos últimos dez anos que se seguiram após o acontecimento, desde sua partida para Salvador. Permanecemos bons amigos, tivemos uma história suficientemente bonita para superar os acontecimentos.

Mas não suficientemente sólida para permanecermos na condição de melhores amigos.

No início da vida adulta, dando aula em um reforço, conheci um jovem adolescente alvo, tímido e magro.

Vocês parecem irmãos, ouvi já ao primeiro contato.

O ambiente profissional seria em tese suficiente para que não surgisse ali um vínculo de amizade. Não se o profissional em questão tivesse apenas dezenove anos, com a maturidade de um garoto de quinze. A simpatia pelo jovem foi crescendo de tal maneira que no ano seguinte fui chamado para ir à praia com os amigos dele, que mais tarde seriam denominados como meus novos amigos.

Final de semana seguinte nos reunimos em sua casa para realizarmos a madrugada dos games. Campeonatos de futebol se tornaram rotina e assim surgia uma amizade. Quanto a garotas não há muito sobre o que falar. Ele iniciou um namoro com uma garota aos quatorze anos, a qual se tornaria a sua futura esposa e a responsável por nossa história estar descrita neste texto de amizades promissoras que esvaneceram com o tempo.

Muito em breve o intitulei por irmão. Muito em breve chamei os pais por meus tios. Muito em breve tomei sua namorada como minha cunhada. Nossa amizade desenrolou de uma forma incrivelmente natural e avassaladora. É como se tivéssemos crescido juntos, vivido momentos da infância e adolescência juntos. O nível de cumplicidade, de lealdade, consideração e afeto eram realmente invejáveis para todo aquele que desejasse ter uma verdadeira amizade.

Vi-o formar no Ensino Médio, bem como ser aprovado no vestibular. Sua casa fazia parte da minha rotina de forma que no ano em que ele foi aprovado na Universidade Federal passamos o Réveillon juntos, e fiquei em sua casa por dez dias seguidos, voltando a minha casa apenas para buscar roupa limpa e levar a roupa suja.

Vai morar lá, é? Questionou minha mãe em tom de brincadeira.

Choramos juntos cada conquista. Amadurecemos juntos, vimos um ao outro crescer e toda a nossa história transparecia um vínculo indestrutível aos olhos de quem quer que fosse. Em seu casamento, fui padrinho. Lembro-me com detalhes do dia em que o casal me entregou o convite para exercer papel tão importante na vida deles.

No dia da cerimônia, chorei como uma criança. Era meu irmão ali. Era meu melhor amigo. Toda e qualquer pessoa que me conhecesse já ouviu falar nele, ou a ele foi apresentado. Era aquele em quem eu mais confiava, o amigo que eu mais amava; verdadeiramente o meu irmão. Era ele a quem eu entregava as chaves de minha casa e carro quando porventura eu precisasse viajar. Meu coração era aberto a contar-lhe tudo a meu respeito, como se em sua presença eu fosse um livro aberto.

O que está acontecendo, irmão?

Sua esposa ficou fria e distante comigo. Não direi que foi de repente, mas aconteceu com o tempo, e eu não sabia explicar o motivo. Quinze anos de amizade, de vínculo fraternal, não deveria haver barreiras entre nós, deveria? E foi no dia em que eu realizei meu sonho, a publicação de meu primeiro livro, que vivemos o nosso último abraço.

Ele estava tenso. Ela não quis subir ao palco para me parabenizar ou tirar fotos.

Mensagens não respondidas se tornaram a rotina de um amargo mês de dezembro. Convites para ir à casa deles já não havia mais. Natal juntos que sempre passávamos, já não passamos mais. E a cada dia uma mensagem sem resposta.

Não estou pronta para falar sobre isso no momento.

Até que o dia chegou. Venha aqui em casa, vamos viajar amanhã, então venha cedo antes de irmos, avisou ela.

Inconveniente. Grosseiro. Desnecessário. Falso. Difícil de confiar. Sonso. Cínico.

A narrativa firme e bem construída socava meu rosto enquanto meu semblante caía e eu chorava por dentro. Após sua fala, apresentei minha defesa, em vão. Eu já estava disposta a sair da sua vida, já estava seguindo a minha. Determinei a ele que você estava proibido de vir aqui, mas agora que você se explicou, pode aparecer, se quiser. Só não pense que nossa relação será como antes, porque não vai ser. Pode até um dia voltar a ser, mas acho difícil. Não por agora. Se quiser ir agora conversar com ele, pode ir.

Não, não vai ser. Nunca mais. Meu coração estava dilacerado. E não havia mais o que conversar. Tudo já havia sido dito. Ela explicou tudo em palavras. Ele, em um mês de silêncio.

Está consumado.

Não há um intuito de delimitar anos de longas histórias em oito páginas mal rabiscadas, seria um pouco injusto. Entretanto, esse texto não é sobre histórias, é sobre sentimentos. É sobre como por toda a minha vida eu busquei em amigos a amizade genuína, que deveria ter nascido no berço da paternidade, que não tive. Assim, o melhor amigo que não tive, o meu pai, foi fragmentado em relações de amizade que se frustraram como uma casa que se firma sobre a areia, a qual não suporta a tempestade.

Acontece que não sei responder se sou casa, tempestade ou areia.

 

 

 


Amor é tempo

 

- Amigos, vamos à praia?

Ainda que o clima fosse inapropriado para esse tipo de programação, tendo em vista que era uma quarta-feira cinzenta em pleno mês de julho, nós quatro não abandonamos nossa desejada programação.

Organizei-me e desci as escadas para buscá-los em meu saudoso vermelhinho. Chegando à portaria, aguardei uns minutos até que os três descessem e enfim fôssemos a nossa praia. No carro, risadas e música alta, apesar de o vento frio lá fora pedir um Djavan em casa, afinal, um dia frio pede um bom lugar para ler um livro.

Atravessando a orla, a chuva desabou torrencialmente sobre a cidade, e hesitamos em retornar para casa. Não acordamos cedo para nada, decidimos. E ainda assim, seguimos. Por sorte, ao descer do carro, a chuva acabara de dar uma trégua e pudemos adentrar o quiosque do França sem nos molharmos.

Uma decisão era certa: naquele dia não haveria banho de mar.

O cenário era pós-apocalíptico. A cidade estava cinzenta e silenciosa naquela região e quatro amigos conversavam sob um guarda-sol, cuja função era outra naquela circunstância: proteger-nos da chuva. Pastel e água de coco, como de hábito. Pouco tempo depois, decidimos voltar para casa, posto que o tédio se instalou entre nós diante das limitações que a natureza nos impusera logo que amanhecera.

Deixei-os em casa e retornei disposto a sacrificar alguns reais em troca da comodidade de não cozinhar ou lavar pratos. Banhei-me e almocei num restaurante perto de casa, para logo retornar e descansar o restante do dia.

Fim de tarde. Vamos jogar futebol de botão? Eu sabia que ele não resistiria ao convite. Jogamos, e reconheci, ausente em modéstia, que ainda manjo muito bem do jogo. Goleei meu amigo e adversário por vezes seguidas, até sentir calafrios.

- Você está bem? Você está pálido.

Pedi licença e corri para o banheiro. Mal estar, palidez, sudorese e tremedeira. Vômito, muito vômito. Senti a alma tentando sair do corpo boca a fora à medida que eu me ajoelhava perante o vaso sanitário.

Diante do incidente, desculpei-me e despedi meu amigo que há pouco chegara. Mas ele compreendeu, desejou-me melhoras e partiu.

Tomei um banho gelado e deitei, na esperança de ficar bem no dia seguinte. No entanto, tive uma madrugada bastante difícil. Acordei com calafrios e dores muito fortes no corpo. Ao passo que suava, tremia de frio, a ponto de gemer. Corri para o banheiro mais de uma vez para vomitar novamente, e sentia meus órgãos internos doerem muito toda vez que isso acontecia.

- Meu bem, você não vem hoje? Melhore, para que você possa estar aqui no domingo.

Confesso que logo pela manhã essa mensagem me chateou bastante. Sozinho e acamado, criei a expectativa de que eu receberia os devidos cuidados esperados em um relacionamento amoroso. Todavia, não foi o que aconteceu. Mais uma vez, diga-se de passagem. 

Por outro lado, atendendo às minhas expectativas, o celular tornou a vibrar. Não era ela. Eram elas.

Conheci-as dez anos atrás, numa escola onde trabalhei. Por vezes até esqueço que foi lá que iniciamos nossa amizade, posto que a vida durante os anos já nos proporcionou inúmeros momentos alheios àquele ambiente ou a qualquer pessoa relacionada a ele, de forma que é raro associar nossa amizade ao trabalho.

- Amigo, você está bem? Está se hidratando? Como você está fazendo para comer? Tem alguém aí com você? Estamos indo aí.

Assim que souberam que estava doente, ambas lançaram uma bateria de perguntas a fim de ter uma noção do meu estado e se mobilizaram para virem aqui. A casa estava uma verdadeira zona de guerra, mas não havia condições de eu organizar o que quer que fosse.

Não tardou para que chegassem.

Arroz, purê de batata, franguinho com pouco sal, soro e água de coco. Tudo o que eu precisava. Elas adentraram derramando sobre mim um olhar fraternal de preocupação e um sorriso de satisfação simplesmente por estarem ali comigo. A comida, diferente de minha sala, estava toda arrumada em compartimentos de uma vasilha mimosamente colorida. O suco fora servido em um copo da Liga da Justiça que fiquei tentado a não devolver dias depois, e a água de coco e o soro em jarras cuidadosamente fechadas.

De repente, uma delas já estava lavando os pratos da pia, o que me deixou ao mesmo tempo feliz e envergonhado pela bagunça. A outra ficou do meu lado, pediu que eu permanecesse deitado e enquanto me perguntava como adoeci, me explicava carinhosamente como deveria proceder nas minhas refeições.

Foi uma visita rápida, cujos detalhes foram suficientemente marcantes para aquecer meu coração e contribuir para a cura de minha enfermidade. 

Não podemos demorar, eu vou trabalhar e ela vai estudar. Fica bem, viu?

Eu respondi com um sorriso e balancei a cabeça, positivamente. Recebi abraços amorosos e desejo de força, acompanhado da garantia de que tudo ficaria bem.

E ficou. Não havia como não ficar, afinal. Amor, muito além de palavras, é companhia.

Amor é tempo.

Primogênito

Foi na flor dos meus vinte e sete anos

No coração de uma sala de infantes

Que enxerguei num fragmento de instantes

Quem desviou de órbita os meus planos.

Bendito és, fruto do materno ventre

De meu sangue não lhe cedeu genética

Ainda assim nos comungou em estética

Como fosse minha a paternal semente.


O pequeno olhar daquela criança

E o cabelo recaído em sua fronte

Enlaçou-me alma e espírito e fez ponte

Com as matrizes da minha velha infância.


Tal aliança de inconfundível brilho

Na fé tem sua força; no amor, conselho

Pulsa em paralelo, tal qual espelho 

Na história o tempo tornou-nos pai e filho.


Na aurora dos dias, em mãos e braços

Não o carreguei, tampouco vi andares

Mesmo crescido, enquanto caminhares

Até que eu expire terás meu abraço.