O espelho - Capítulo 8: O corvo

Ali mesmo, seu melhor amigo o abraçou. Tão fiel quanto invisível. O silêncio. Em passos melancólicos, o pequeno desceu ao chão. Cantarolando baixinho, foi-se retirando a contar seus passos. De braços abertos, para não perder o equilíbrio. Em seguida, pôs as mãos no bolso e foi retornando ao seu ponto de chegada.

Avistadas as janelinhas, os passos foram-se tornando mais lentos. O corpinho tão jovem já cambaleava. E a parede de pedra lhe parecia tão confortável! O garoto estava cansado. Estava faminto. Estava com sono. Pausou perante a janelinha bordada de ouro e ali mesmo se recostou. Era manhã, mas a parede ainda estava fria. E como estava confortante! Ah, estava! Deitado sobre o chão frio, abraçado ao próprio corpo, David ali ficou. Confortavelmente entorpecido.

Não lhe interessava quanto tempo passaria ali. Suas pálpebras exaustas cerravam-lhe os olhos, e em poucos instantes o garoto adormecia. Profundamente.

Repousado sobre o parapeito da janela sob a qual David se encostara, pairava uma penugem belíssima de tão negra e brilhante, possuidora de um olhar dourado e misterioso. Seus pés ciscaram, acompanhados de uma voz rouca. Fitou o pequeno sonolento, como se o protegesse ou ameaçasse. Num pequeno pulo, caiu sobre a cabeça do menino. Com o bico longo, mexeu por entre a cabeleira negra, e arrancou-lhe um fio de cabelo. Olhou para os lados, desconfiado, e tornou para onde repousava. Abriu suas asas sedutoras e partiu.

Passadas as horas, David acordou. Sentou-se desajeitado. Balançou-se para os lados, com os olhos entreabertos. Espreguiçou-se num bocejo, esticando os braços. Passou a mão nos olhos e pausou um instante. Surpreendeu-se. Ao seu lado havia um pacote. Algo embrulhado, um pouco amassado, como se alguém o tivesse arremessado ali. Optou por desdobrá-lo. Estava tomado de curiosidade. Ao tocar o pacote, ouviu-se um sussurro rouco. Lá estava a ave negra. Com seu bico de navalha e seus olhos vivamente dourados. Ambos se encararam. David, sentado, a admirava estático. Quão majestosa era aquela ave! Era compridinha, compridinha. Pouco mais de meio metro. Embora não fosse muito alta, sua parte traseira era coberta de um longo manto negro, capaz de paralisar qualquer um com quem se deparasse, ainda que fosse uma humilde presa, pronta para ser trucidada por suas navalhas entreabertas. Num lapso, bradou um grito rouco, apavorante, que a qualquer outra ave espantaria. David, ainda sentado, se arrastou para trás, trêmulo. O animal ergueu bravamente suas asas, bico aberto, pronto para voar. Ou atacar. Saltou, berrando. Bateu as asas, pairando sobre o garoto. Pousou sobre o pacote. Calou-se. Ciscou sobre o embrulho. David permaneceu pálido, encarando-o. Com o bico, a ave soberana pôs-se a desatar os nós de cada cordão que envolvia o embrulho. Terminado o trabalho, encarou novamente a criança. Percebendo que nada o garoto faria, o pássaro inclinou-se para frente e, numa última vez, berrou! Como o último desespero de uma vítima perante um assassino. Como uma mãe desamparada presenciando a perda de seu único filho. Freneticamente, bateu suas asas e debateu-se, rasgando em picados o papel envelhecido que cobria o pacote. Por fim, a ameaçadora rainha partiu, aos berros. David, cabisbaixo, abraçado aos joelhos, ergueu a cabeça lentamente e confirmou que a ave partira. Mas não completamente. Algo dela ainda estava ali. David recolheu em suas mãos o embrulho de papel velho e dilacerado, e finalmente retirou o que ali dentro havia. Uma caixinha. Quase um cubículo, se não fosse o fato de que seus sete centímetros de altura fossem um pouco maiores que seus seis centímetros e meio de largura. No caixote havia alguns pontos rasgados por aquelas garras ferocíssimas. O garoto levantou-se e caminhou até a janela, onde havia luz. Concentrou-se nas fendas. Só se viam leves tonalidades de azul. E mais nada. Enfiou-lhe os dedos na caixinha de papelão, rasgando-a. E deixando cair o objeto que ela guardara por, aparentemente, tanto tempo. O artefato quicou duas vezes e rolou pelo recinto. David largou o embrulho deu três passos e saltou, atirando-se ao chão e alcançando o objeto. Era fortemente azulado, com detalhes negros nas extremidades. Oval. E resistente. Era um ovo!