Bolo de cenoura

 

  

A sexta-feira que nascia era azul e ensolarada, como tinha que ser uma sexta-feira na minha cidade durante o mês de julho, uma vez que a temporada de chuvas constantes costuma-se encerrar ao final do mês anterior. Precisava me organizar para a viagem que realizaria no dia seguinte, para o casamento de um amigo de infância, cuja cerimônia ocorreria na cidade grande onde ele mora.

Entre malas, gravatas e sapatos, recebi a mensagem de um amigo não tão antigo para ser considerado “velho amigo”, mas não tão recente para não receber a devida importância que lhe darei aqui. Tudo certo para daqui a pouco? Perguntei-lhe, e ele avisou que em instantes ficaria pronto e eu poderia ir buscá-lo em casa.

Não posso negar que se trata de uma amizade que anos atrás eu jamais imaginaria trazer em minha casa para almoçar e passar o dia, tendo em vista a forma como ele me foi apresentado. Estranho, sombrio e um pouco psicopata foram apenas alguns dos adjetivos que puseram em meu colo quando eu o encontrei pela primeira vez. E, de fato, todas as pessoas ao nosso redor agiam de forma que confirmassem essa falsa verdade a que fui exposto logo em nosso primeiro contato. O tipo de pessoa que todo mundo que conhece alega já ter sentido medo em algum momento de suas vidas, seja por uma fala ou comportamento apresentado de maneira atípica.

Atípico. Esse é o adjetivo que, sem medo ou rótulos, posso atribuir-lhe sem receio de estar provocando um mau julgamento acerca de sua pessoa. Você é a única pessoa que ele respeita ou por quem ele demonstra qualquer sentimento. Ouvi isso, não poucas vezes, e tal colocação me deixava entre o lisonjeado conforto e o inevitável medo do indivíduo com quem paulatinamente eu estreitava os laços. Entretanto, foram esses laços que me fizeram confrontar toda e qualquer opinião ao seu respeito, posto que nossa relação de amizade me revelava exatamente o contrário.

Participamos, junto, de uma apresentação teatral, da qual ele julga se envergonhar até hoje, diga-se de passagem. O palco de um teatro é o último lugar onde se imaginaria encontrá-lo, pois é de sua natureza a aversão a qualquer tipo de exposição de sua imagem. Todavia ele esteve ali. Não digo que contra a sua vontade, há quem diga que foi por consideração a mim. Sendo esse o motivo, eu realmente devo ter o mínimo de importância que seja, aos seus olhos. A propósito, seus olhos castanhos parecem longans maduros que tudo observam minuciosamente, detalhe por detalhe; quando fitados por outrem, eles revelam ter contato direto com a alma de quem ousar encará-los.

Cheguei à portaria de seu condomínio, onde fui recebido com o tradicional beijo e abraço com o qual cumprimento todo e qualquer amigo. Seguimos para uma mercearia, cuja existência e localização me surpreenderam, uma vez que o espaço revelava que sua existência é de longa data, mas da qual jamais tive conhecimento, ainda que ela se localize a caminho de meu trabalho.

Quantas batatas? Trouxe-me de volta à realidade, enquanto eu me perdia decidindo qual massa de bolo eu compraria para a sobremesa. Diferente de mim, ele foi assertivo e não hesito em determinar sua preferência. De cenoura, com cobertura de chocolate, por favor. Sem retrucar, apanhei os materiais selecionados e o encontrei na fila do pagamento. Dividimos a conta e seguimos viagem para a minha casa.

Como de praxe, ele foi muito bem recebido pelos meus gatos, em especial pelo branquinho, o mais agitado, porém também o mais carinhoso. Não tardou para que ele revelasse que nunca havia visto gatos tão hospitaleiros, uma vez que eles costumam se esconder ao encontrar estranhos. Vamos jogar xadrez? Desafiei-o, todavia ele achou mais inteligente preparar o almoço para que pudéssemos jogar enquanto a lasanha estivesse no forno. Ajudamos um ao outro, salvo o fato de que o perfeccionismo que ele apresentou ao amassar as batatas tenha me irritado um pouco.

Sua linha de pensamento era unifocal, e a multifocalidade proveniente de minha hiperatividade se utilizou disso para que eu pudesse derrotá-lo no xadrez três vezes consecutivas sem muito esforço. Ao término da terceira partida, ele deu um sorriso sem graça, aceitando meu triunfo. Não fica com raiva de mim não, viu? Levantei-me da cadeira, beijei-lhe o rosto em tom de brincadeira e satisfação com minha vitória.

A lasanha estava pronta, entretanto precisávamos decidir se compraríamos o leite que esquecemos ou usaríamos o creme de leite para a preparação do bolo vindouro. Como ambos não estavam dispostos a sair de cara para o que quer que fosse, arriscamos sem medo de errar o uso do creme de leite, que nos caiu como uma luva. Enquanto preparava a calda de chocolate, notei sua concentração incomum perante à tela de celular. É um jogo que jogo com um pessoal da Índia, riu consciente de que eu iria me surpreender com aquela informação. Então se dispôs a detalhar todas as funcionalidades de seu joguinho, e até me apresentou o grupo do qual ele faz parte, em que as pessoas conversam em sua língua nativa cujo significado ele precisa se desdobrar para compreender.

Após o almoço, rendi-me aos encantos  de meu tapete, e percebendo o quanto eu estava à vontade, ele fez o mesmo no sofá. Não é possível mensurar quando e por quanto tempo cochilei, mas asseguro que não foi por muito tempo. Sentei-me e nos pusemos a conversar sobre tudo o que nos viesse à mente, sem preocupação com filtros impostos socialmente para com a conversa entre dois amigos adultos, seja sobre a sessão na psicóloga ou sobre relacionamentos antigos que se enveredaram para o fim.

Falamos do passado, de amigos em comum, relacionamentos amorosos anteriores e um pouco sobre os atuais, e assim consumimos as horas a fio que se rendiam ao nosso bom papo. Quero bolo de cenoura, pediu-me quando sentiu que o papo já esfriara um pouco. Peguei-o com cuidado para não machucar as mãos, posto que ele esfriava o sobre o balcão da cozinha, e repousei-o sobre a mesa. Comemos bastante e bebemos, mas nem tanto, visto que o refrigerante já estava perto do fim após ser devolvido à geladeira ao fim do almoço.

Como precisava prestigiar a exposição artística de minha irmã mais velha, comuniquei-o que era chegado o momento em que me fazia necessário tomar banho e me organizar para ir ao encontro dela, no shopping center. Reapareci à sua presença instantes depois, devido à rapidez com que tomo banho e me arrumo para sair. Abri a porta, sem despedidas, pois precisava cumprir meu papel de deixá-lo em casa novamente.

No carro, procurei em suas mãos a agressividade que o acusavam ter e não a encontrei. Apenas a cumprimentei no dia em que ele estava prestes a entrar em confronto fisicamente com um amigo e eu corajosamente esbravejei que se aquilo acontecesse eu não pouparia esforços para estapear cada um dos dois. Não sei como nem por que tive essa coragem, mas é válido dizer que funcionou naquele dia, e eu fui o único capaz da apaziguar aquele conflito. E se eu não o conhecer de verdade? Cheguei a imaginar, mas preferi depositar minha fé na crença de que sou um dos poucos que o conhecem, que ele permitiu conhecê-lo de verdade.

Acabada a exposição, recordei-me de que eu necessitava me preparar para a viagem que realizaria amanhã. Liguei para o salão de beleza e agradeci a Deus por ele ainda estar em seu pleno funcionamento às vinte horas de uma sexta-feira pandêmica. Visual repaginado, voltei para casa e fiz as malas sem muita dificuldade, afinal eu permaneceria naquela cidade por apenas dois dias. Tive sorte de encontrar passagem para a manhã do sábado, e sosseguei diante de minha irresponsabilidade de resolver tudo de maneira demasiadamente apressada e urgente.

Abri a geladeira e vi que ainda havia parte majestosa da lasanha e o bolo praticamente inteiro, os quais seriam desperdiçados, pois era certo que ao retornar os encontraria embolorados e estragados na geladeira. Mirei o relógio, e eram quase vinte e duas horas. Por sinal, eu já deveria estar dormindo naquele horário, contudo naquele dia fiz diferente. Tudo ficou muito bom, aquela lasanha estava de outro mundo. Certifiquei-me de que era o certo a se fazer. Vou levar aí, então. Se ela permanecer na geladeira, estraga. A essa hora, nego? Perguntou-me utilizando o vocativo que sempre utiliza ao se dirigir a mim.

Entrei no carro e fui guiando-o junto às vasilhas que carregava. Dessas de sorvete, claro, para não haver o risco de perder alguma de minhas tupperware. Em poucos minutos cheguei lá, apesar de ter contado com a sorte de haver uma blitz na avenida e ter sido liberado sem abordagem policial. Licenciamento do carro atrasado, e quem deve teme. Parei o carro próximo à portaria e logo ele chegou vestindo uma camiseta preta e um sorriso. Entrou no carro e me beijou o rosto e abraçou-me como se tivéssemos nos encontrando a primeira vez em anos. Foi sua forma de agradecimento, li de imediato.

Boa viagem, ele me disse antes de fechar a porta. Pelo outro lado do vidro, um novo sorriso, esse um pouco mais tímido. Você sabe ou eu preciso te dizer? Eu sei, respondi rindo com leveza. Através do vidro, mando-me um beijo pela última vez naquele dia e eu retornei para a casa que recebera mais cedo, alguém cujas circunstâncias confirmariam um desafeto sem dificuldade, e do contrário tornara-se uma daquelas poucas companhias que nos permitem sermos autênticos o tempo inteiro, como tem que ser. Com ele descobri que nem toda capa permite que seu livro seja julgado, e se ele for lido por alguém que não tenha a sensibilidade literária necessária para compreendê-lo como ele merece, certamente ele se torna ilegível e indigesto. Mas quando se é um leitor ativo e persistente, não há bolo de cenoura ou lasanha que se compare ao prazeroso saber de uma boa leitura.

Paternidade

 

O céu limpo e fresco, aliado à monotonia dominical, me impulsionaria a ir à praia naquele domingo de agosto, salvo se não fosse o que aquela data comemorava. Era dia dos pais. O gosto amargo e saudosista da infância ao lado do avô misturou-se com o sabor adocicado do leite gelado no café da manhã, o qual me ajudaria a digerir as memórias afetivas que vivenciava já tão cedo. Há quem dissesse que o mal-estar que essa data comemorativa me provoca tenha relação com a ausência da figura paterna durante toda a minha vida, mas reitero que ela sempre foi bem-vinda nos anos que compartilhei com meu avô, falecido à flor de minha adolescência.

O último pedaço do pão recheado com requeijão cremoso deu uma pausa em minhas lembranças e sem muito resistir dispus-me a lavar os pratos, para que eles não se acumulassem de maneira diretamente proporcional a minha preguiça matinal. Enxuguei minhas mãos e me entreguei à maciez negra do meu tapete e de minhas lembranças que ainda se mantinham vivas no calor de meus pensamentos.

Você vem me ver? O almoço seria, como de tradição, na casa da avó da namorada, mas permaneci ali deitado, e neguei minha presença na reunião, posto que possivelmente eu não me manteria comunicativo e bem-humorado por muitas horas e me tornaria, assim, um convidado inconveniente e mal-educado. Deixei o celular adormecido no tapete e me vi abraçado às almofadas que estavam ao meu alcance naquele instante. Costumeiramente as horas aos domingos tendem a passar mais lentamente, e não havia motivo para que aquele dia fosse diferente. O ponteiro dos segundos do relógio da sala marcava de maneira audível seu passo, ainda assim não impediu que a maciez das almofadas me fizesse adormecer.

Acordei pouco depois das onze horas, e ao abrir a geladeira em busca de água para me hidratar percebi que precisaria comprar ingredientes para a realização do meu almoço. A falta de disposição foi vencida pela necessidade e então fui à mercearia comprar o que era preciso para cozinhar o que sei fazer de melhor: lasanha com cobertura de purê de batata. Minha impetuosidade trouxe também a mistura para bolo e os ingredientes para a sua cobertura.

Hoje eu mereço, sorri. Durante meu crescimento, encontrei a figura paterna por duas vezes, sendo em meu avô, durante a minha infância e adolescência, e em mim mesmo, já na vida adulta. Estranha essa ideia de ter me tornado meu próprio pai, todavia não negarei que foi isso o que aconteceu. Admito que foi uma estratégia de meu inconsciente um pouco arriscada, bem como um pouco dolorosa, mas não devo negar jamais que ela existiu. Eu fui um ótimo pai para mim, e para quem me propus a ser, e por isso hoje eu mereço comemorar comigo meu dia, disse a mim mesmo ao receber o comprovante de pagamento no caixa da mercearia.

A tarde já se fazia presente, a refeição estava pronta, quando recebi uma mensagem de áudio quentinha como o bolo de cenoura que eu retirava do forno. Estou indo para a casa de meu pai agora, e quando eu sair de lá passarei aí, pode ser? Confesso neste parágrafo que parte de minha tristeza matinal se deu por conta do medo de ser esquecido por meu filho naquele dia que figurativamente me representava. Como não somos ligados biologicamente, não havia por que cobrar a presença dele naquele dia comigo, mas minhas expectativas eram imensuráveis, seja por uma ligação ou mensagem, ainda que o desejo fosse que ele se fizesse presente fisicamente. Minha paternidade amadureceu bastante no decorrer dos últimos cinco anos de convívio, uma vez que em tempos anteriores cheguei até a me incomodar por vezes com o inevitável fato de que via de regra o pai dele não era eu. Difícil era me convencer disso. Confesso que nunca me convenci.

A responsável fora a tia dele, irmã de seu pai. Você é o pai dele. Disse-me uma vez aquela senhora sentada à minha mesa, vestida com a seriedade que seu cargo de diretora de escola exigia de si. Você diz ser o coordenador dele, mas é muito mais que isso. Você o adotou. Você cuida dele como filho, você é o pai. E foi ali que tudo começou. Poderia eu, no auge de meus vinte e seis anos, tomar posse involuntariamente da paternidade de um garoto de quatorze anos cuja história se assemelhava à minha no tocante à ausência paterna em nossas vidas? Com admiração, ela justificava sua fala comprovadamente através de meu comportamento e minha relação com o garoto. Aquele encontro foi o ponto de partida da construção de minha história com aquele que posteriormente eu chamaria de filho, e traria para mim toda a responsabilidade paterna perante ele por todos os dias que a partir dali se sucederiam.

O almoço estava à mesa, e pacientemente o esperei sentado ao sofá com o celular em mãos, na expectativa de sua chegada. A fome fez morada em meu interior, afinal, para quem habitualmente almoça ao meio dia, esperar até às quinze horas é inevitavelmente desconfortável. E se ele simplesmente não vier? Levantei-me, inquieto, e me pus a caminhar pela casa a fim de eliminar a angústia que residia na possibilidade de estar fadado a reviver a amarga experiência da vã espera que tive aos treze. E, de fato, revivi outrora, por diversas vezes. Além dele, tive outros filhos clandestinos, por quem me dediquei por anos, e todos eles me deram como destino a sarjeta de suas vidas à medida que cresciam, apesar de ele, genuinamente, ter sido o único que me fora filho, de fato, dentro de mim.

A linha indigesta de pensamentos negativos foi interrompida com o toque da campainha. Antes de abrir a porta, verifiquei no olho mágico se se tratava de quem eu esperava. Era ele. Afoitamente, abri a porta e não esperei que ele adentrasse a sala para que eu o recebesse com forte abraço. Feliz dia dos pais, disse a voz repousada sobre meu ombro. Fechei a porta enquanto ele retirava da mochila uma caixa de bombons que me fez beijá-lo o rosto e abraçá-lo novamente. Estou morrendo de fome, desabafou ele fitando os pratos vazios posicionados sobre a mesa.

Entre uma mastigada e um gole de refrigerante, experienciei a interessante sensação paterna de admirar o filho e sentir que não há tempo que faça a gente abandonar a ideia de que ainda que eles cresçam e se tornem homens e mulheres, sempre serão nossas crianças. Perante mim, não estava apenas um homem em formação de dezenove anos, que falava sobre seus planos para o futuro ou os amores que encontrava no caminho, estava o mesmo adolescente de dezesseis anos que três anos atrás me pediu para passar o dia dos pais comigo pela primeira vez. Sorri com a alma.

Felizmente o banquete fora registrado antes que ambas as feras o devorassem impiedosamente. Sentados ao sofá, uma fotografia. Na tela, pai e filho abraçados de lado, com olhar preenchido por serenidade. Essa foto ficou muito boa. É a nossa melhor foto, estamos ficando cada vez mais parecidos, disse-me com ar de orgulho e satisfação. Senti em suas palavras que ser parecido comigo era motivo de sua gratidão a Deus, e mal sabia ele que ali ele me dava o seu maior presente.

A tarde findava e ele adormeceu na cama do quarto, enquanto eu fiquei assistindo a clipes de música no sofá da sala para aliviar o tédio. Já havia escurecido quando ele surgiu cambaleando no corredor em passos lentos e preguiçosos esfregando os olhos e perguntando que horas eram. Pediu bolo de cenoura, como era de se esperar de um filho meu. Servi-o e lhe preparei a surpresa de conversar com seu melhor amigo, para que pudéssemos confraternizar juntos àquela noite de dia dos pais.

Garoto divertido, alto-astral. Brincalhão, mas ajuizado, desses que a gente que é pai ama que seja amigo de nossos filhos. Entre orla e pizzaria, optamos por buscá-lo e trazê-lo para casa. É hoje que eu te derroto no futebol de botão, desafiou-me meu “filho por tabela”, como eu o chamo carinhosamente, uma vez que ele e meu filho se têm por irmãos. Sem muitas surpresas, ganhei a primeira partida modestamente e massacrei-o em seguida, e deixei-os jogando, divertindo-me com a falta de habilidade que eles demonstravam ter no jogo. Obviamente, tirei vantagem do fato de minha geração ter usufruído de jogos palpáveis como futebol de botão e pebolim, em contraposição à geração digital da qual eles fazem parte. A simplicidade habitava na realização de um momento em que três estranhos se constituíam de forma tão bonita e sincera como família.

Depois de comermos, e bebermos, e rirmos, e jogarmos, decidi contra a minha vontade que era hora de deixá-los em suas casas, pois trabalharia no dia seguinte. Pedi ao meu filho, que chegara à tarde de bicicleta, que me acompanhasse até à casa do amigo, e ao retornarmos, ele partiria para seu lar. Sem titubear, ele atendeu à solicitação. No carro, um sambinha de fim de noite para deixar o céu estrelado ainda mais bonito. Deixamos nosso amigo em casa, agradecemos sua presença e retornamos para o condomínio onde moro.

Ao chegar, subimos ao apartamento para buscar a mochila que ele deixara no sofá, junto ao seu carregador de celular. No coração, aquele leve aperto de despedida, ainda que pairasse sobre nós a certeza de incontáveis reencontros que estavam por vir. Obrigado, ouvi sua voz antes que eu movesse a fechadura. Por tudo. Seu olhar de gratidão desarmou quaisquer palavras que eu tivesse a lhe dizer naquele momento. Tudo. Pronome indefinido, que tem por significado “a totalidade das coisas; o que é importante, essencial; o que de fato importa”. Meu filho me agradeceu por tudo. Eu lhe agradeci em retorno com um abraço. Obrigado por aceitar ser meu filho, sussurrei. Ele riu. Obrigado por ter me escolhido, entre todas as pessoas que você já conheceu, para ser seu filho. Nossa história daria um belo livro, completou. Pediu-me a bênção, beijou minha mão, eu beijei-lhe a sua de volta, e se retirou no corredor escuro do edifício, em direção às escadas.

E foi quando finalmente percebi que ele me diz todos os dias aquilo que eu sempre esperava que ele dissesse por todos esses anos. Ansiava, dia após dia, como o pai que espera o filho recém-nascido dizer “papai” olhando-o nos olhos; ou como o cão que espera seu dono à porta após uma viagem ou um longo dia de trabalho. Eu esperei por todos esses anos por algo que ele me dizia em silêncio cotidianamente. Todavia eu jamais ouvia, talvez porque não houvesse som; eu jamais lia, porque não estivesse escrito. Estava no abraço. Estava no riso. Estava guardado na caixa de chocolate, ou atrás das cortinas, na fotografia. Estava entre uma partida e outra de futebol de botão, ou no intervalo de um nano segundo entre uma piada e o riso. Estava no obrigado. E eu não me atentara porque não havia vocativo. Talvez haja, um dia, mas a partir dali pouco me importa o dia em que isso venha a acontecer, porque enfim eu percebi que sempre fora dito.

Naquele dia ele me chamou de pai.

A Partida

 

Era mês de Copa do Mundo e antes do banho o pequeno acabava de assistir Áustria e Camarões empatarem por um a um naquela noite que começara. Terminada a partida, saltou do sofá e procurou sua tabelinha colorida para anotar o placar com sua letrinha recém-alfabetizada. Talvez não tão recente, uma vez que aos oito anos ele já lia e escrevia com elogiosa fluência. Precisava ainda melhorar a caligrafia, apontava a professora, mas isso não tirava dele o seu destaque como um dos alunos mais aplicados da turma.

Anotado o placar, correu para o banho antes de tomar café à mesa com Vovô. Cuscuz com ovos. Com um pouco de leite por cima e a gema mole, é claro. Acompanhada a refeição com seu copo de leite e achocolatado, o menino se deliciava à presença do avô, que sempre após o cuscuz roía o ossinho da galinha cozida, preparada carinhosamente pela Vovó.

Vá para a sala, que eu vou limpar a mesa e lavar os pratos, ordenou a avó. Ele foi de imediato, pois Vovó não gostava de ter de pedir duas vezes. Os jogos daquele dia de Copa já haviam sido encerrados e o garotinho não sabia o que o divertiria antes que ele fosse para a cama. Lembrou então do joguinho de xadrez que havia ganhado da prima que voltara da Disney e foi buscá-lo, de imediato. Seus irmãos mais velhos não estavam a fim de brincar e seu irmão mais novo era novo demais para compreender a natureza do jogo. Resolveu brincar sozinho, no sofá da sala.

Como as peças possuíam uma base de ímã que as firmavam no tabuleiro de metal, ele não temeu que sua inquietude enquanto se movimentava no estofado do sofá pudesse derrubá-las. Caminhando pelo corredor vinha uma figura alta e magra, a qual andava com dificuldade, sob o auxílio de sua esposa. Sua barba bem feita e seu cabelo liso não disfarçavam o quanto ele estava abatido pela doença que o acometera e surpreendera a todos naquele ano.

Você sabe jogar xadrez? Veio do alto a voz rouca do homem que o interpelava. Ao levantar os olhos, sorriu para aqueles olhos castanhos que vestiam sua tradicional combinação de camisa branca e jaqueta jeans para se proteger do sereno da noite, os quais aguardavam sua resposta. Sei, sim, quer que eu te ensine? Ainda que abatido, o tio sorriu. Então me explique como é, desafiou ao jovenzinho.

Essas peças aqui, apontou o dedinho indicador para os peões, são os soldados do Rei. Eles são lentinhos, andam apenas uma casinha para a frente, mas servem para proteger as peças mais fortes que ficam atrás. Aqui na ponta são as torres, que podem ir para a frente e para os lados. Lá os soldados ficam escondidos esperando os inimigos chegarem. Os cavalos andam em ‘L’  e do lado deles ficam os bispos, que andam na diagonal. Tem um que fica na casa preta e outro na casa branca. Esta aqui é a Rainha, a peça mais forte do jogo, pois ela pode ir para todas as direções. E este é o Rei, que todo mundo tem que defender, pois se sofrer xeque-mate o jogo acaba.

Xeque-mate? Fez-se de desentendido, só para observar por mais um instante o sobrinho explicando as regras. É quando o Rei fica cercado e não consegue mais se defender nem fugir para lugar nenhum. Com um sorriso camuflado pela barba, Titio confirmou sua satisfeita compreensão. Então, vamos jogar? Animou-se o pequenino. Hoje eu estou cansado, vá treinando, que um dia a gente joga. E saiu caminhando com lentidão em direção ao quarto, auxiliado pela esposa, cujo olhar fundo revelava insuportável cansaço. Ele era pequeno demais para compreender o quanto o tio estava impossibilitado de jogar aquela partida, ainda que fosse pouco mais de sete horas da noite, mas respeitou sua decisão.

Teve uma ideia que lhe pareceu brilhante. Percebeu que as luzes do quarto ainda estavam acesas, e aproximou-se da cama de Titio para contar-lhe uma história incompleta que escreveu em seu caderninho de capa verde. Inspirada no seu xadrez, chamava-se “Quatrocentos Anos”, e era sobre reis e rainhas que conquistaram e perderam riquezas e territórios durante séculos de guerras e batalhas, com o auxílio de soldados montados em sua cavalaria. Titio apenas o observava. Silencioso, seus olhos mal respondiam. Ele precisa descansar, pediu sua esposa que o pequeno se retirasse, para que enfim se apagassem as luzes.

Dias depois, num fim de tarde demasiadamente chuvoso, o país estava em festa. A seleção brasileira de futebol participaria mais uma vez da final de uma Copa do Mundo e as expectativas para o pentacampeonato eram elevadíssimas. Diferente da estreia, que reuniu a família na sala de estar para contemplar o primeiro triunfo dos canarinhos sobre a amadora Escócia, neste dia o jogo foi assistido no quarto dos fundos, no quintal. Deitado no colo de Mamãe, ele se indagava por que todos não estavam novamente reunidos, em festa, como fora nos demais jogos da Copa. Tios, primos, irmãos, Vovô e Vovó. Seu tio não está bem hoje, sussurrou mamãe com voz pesarosa antes de o narrador anunciar o início da trágica partida que terminara com a amarga derrota de nossa seleção por três a zero, para os franceses, donos da casa, os quais conquistavam seu primeiro título.

Foi quando o tempo passou e foi determinado: você vai passar um tempo na casa de sua madrinha. O tempo que for necessário. Primos, cachorrinha, casa grande, a ideia não parecia ser nada ruim. E pelo tempo que for necessário. E de fato não era, salvo pelo motivo da estadia. A doença do tio avançava, e era na casa da Vovó, onde o pequeno morava com a mãe e os irmãos, que o tio recebia os cuidados médicos necessários. E enquanto os dias se passavam, pensava-se quando ocorreria a tão esperada partida de xadrez. Será que Titio ainda lembra as regras? Tudo bem, era só ensiná-las novamente.

Já era novembro, quando, ao acordar, o menino decidiu sair do quarto, em silêncio, para não acordar as primas, que ainda dormiam. Eram cinco horas da manhã. Viu pela fresta da porta entreaberta seus padrinhos elegantemente vestidos de roupas pretas, tais quais o Rei e a Rainha de seu joguinho de xadrez. Eles caminhavam pela casa, apressados, e falavam baixinho, então o garoto optou por permanecer na cama.

No café da manhã, pão, queijo, presunto e silêncio. As crianças à mesa comeram depressa para não se atrasarem para a aula. A prima mais velha anunciou que os pais dela estavam ocupados e que seu irmão os buscaria naquele dia na escolinha.

Acabado o turno matutino, ele esperou a chegada de seu primo, sentado no pátio da escola, assistindo aos colegas voltarem para casa e à chegada dos alunos do turno vespertino. Sentiu fome e receio de ter sido esquecido, mas não tardou que o primo chegasse. Na volta para casa, um silêncio incômodo. O garotinho e a prima mais nova apenas se entreolhavam desentendidos do que se passava. Ao volante, o primo chorava. O garotinho apenas observava em sua quietude.

Naquela tarde de quinta-feira, a madrinha os convocou à sala, interrompendo a brincadeira no quintal. Arrume suas coisas, hoje você voltará para casa. O jovenzinho sorriu, Titio certamente estava melhor. Finalmente aconteceria a tão aguardada partida de xadrez, e mal podia ele esperar para aplicar seu infalível xeque-mate. Além disso, poderia contar como seu povo enfim conquistou a paz e a prosperidade almejada por quatrocentos anos de batalhas sangrentas. Com seus jogos de botão, juntos poderiam jogar uma Copa do Mundo inteirinha, e...

Não será possível, interrompeu a madrinha seu devaneio. Seu tio está morto. O vão que separava as cadeiras de ambos no centro da sala parecia se transformar em um abismo. Mas, e a partida de xadrez? Dentro de si, sua respiração acelerava disfarçadamente, entrelaçada às memórias daquilo que jamais aconteceria um dia. Após o lanche, despediu-se do padrinho e primos e a Madrinha o levou para casa. No trajeto, via os edifícios da cidade, altos como as torres do seu tabuleiro. Frente à igrejinha, estava lá o bispo para celebrar mais um dia de missa. A vida por si só era um jogo de xadrez. Sua cidade era apelidada de tabuleiro de xadrez. Mas dentro do coração do menino, faltava uma peça.

Tendo chegado a casa, o menino atravessou a sala, pediu a bênção da Vovó e seguiu para o quarto vazio. Cama, cortinas e silêncio. Titio realmente não estava mais ali. E no crepúsculo daquela quinta-feira, aos recém completos nove anos de idade, ele aprendeu a regra mais difícil do xadrez da vida. Não importa o quão boa é a estratégia do jogador, ou a quantidade de peças que se tenha sob o próprio domínio, ou ainda se se é preto ou branco: sorrateiramente, a morte sempre nos aplicará o xeque-mate.