A Oração

 


Amanheceu um dia ensolarado e bonito, desses que nos impelem a ir à praia. Acordei cedo, como de costume, e me organizei para ir ao culto matutino na pequena igreja do bairro vizinho. Eram nove horas da manhã, e o azul do céu transmitia aquela paz única e dominical do primeiro e mais preguiçoso dia da semana. Enquanto dirigia, ouvia louvores e cantava-os suavemente em agradecimento a Deus por mais uma semana que se iniciava.

Ao sair da igrejinha, recordei-me de que precisava comprar alguns ingredientes para o almoço, ainda que houvesse dúvida se eu o prepararia ou optaria por almoçar em algum restaurante perto de casa. Escolhi, por hábito ou coragem, ir ao supermercado. Enquanto escolhia entre macarrão ou arroz, suco de jenipapo ou Coca-Cola, o celular vibrou. Era dia de vestibular, e eu havia prometido a meu primo que o encontraria à porta da faculdade onde ele realizaria a prova para desejar-lhe boa prova, a qual ocorrera em janeiro daquele ano por conta da pandemia que se instalava mundo afora.

Já estou pronto, você já está indo para lá? Eram exatamente as combinadas onze horas. Ri comigo mesmo, não por ser uma situação engraçada, mas por estar acostumado a lidar com pessoas mal resolvidas com horários marcados. Apressei-me com as compras e parti rumo ao seu encontro. Ele morava atrás da faculdade onde realizaria a prova, portanto pediu-me que o comunicasse quando lá estivesse. E assim fiz.

Apesar de chegar cedo, mal dera 11h15, já havia bastante gente, tanto para realizar o exame quanto para apoiar os estudantes. Muito menos que o habitual, diga-se de passagem, uma vez que enfrentávamos ainda a Covid-19. Encontrei por milagre uma vaga para estacionar, pois enquanto acompanhava a fila de carros que entregava seus filhos ao teste, avistei um automóvel que sinalizava saída.

Na calçada, mulheres me ofereciam descontos em matrículas em universidades a bolsas de estudos para estudantes recém-saídos do Ensino Médio. Eu já tenho mais de trinta, mas agradeço. Ela me encarou, desacreditada, e eu lhe respondi que possivelmente a máscara de proteção escondia minha idade. Ofereceram-me água, eu aceitei. O sol à medida que abençoava também castigava os desavisados como eu que não costumam usar protetor solar.

Surge, então, na esquina, um jovem tímido e muito branco, o qual não tive dificuldade de reconhecer. Ergui o braço direito, em aceno, e ele de imediato  respondeu. Sua tranquilidade no caminhar escondia a tensão de quem tentava pela segunda vez o ingresso no curso de Direito da Universidade Federal. A camisa branca com detalhes em cinza nos ombros e a bermuda leve e cor-de-vinho, bem como a máscara branca com detalhes quadriculados transmitiam serenidade e segurança, mas os olhos miúdos e agitados e o balançar das pernas enquanto conversava não mentiam.

Não tivemos muito contato. Na vida pessoal, quase nenhum. O laço familiar que nos une é um pouco confuso e distante. Fomos descobertos como primos em uma reunião de pais na escola em que eu era seu professor, quando seu tio informou um parentesco de segundo ou terceiro grau com meu pai. Lembro também que ele não curtiu muito ao receber a informação, em seus 14 anos. Apesar de uma criança agitada na escola, dessas que vivem suando pelo pátio e não gostam muito de fazer a lista de atividades de análise sintática, sempre foi um menino educado e respeitador. Nunca respondia ou alterava a voz para quem quer que seja. Lembro-me de que ele mudou de escola ao concluir o Ensino Fundamental, o que foi o suficiente para que perdêssemos o contato que de alguma forma a vida cruzou nosso caminho outra vez um ou dois anos depois e fez questão de nos devolver.

Está quente, aqui. Vamos buscar uma sombra? Caminhamos em direção à lateral do prédio da faculdade, mas fomos impedidos por um rapaz que ali trabalhava. É proibido ficar aqui, o local é sujeito a provocar aglomerações, informou. Em tom áspero, inclusive, mas eu não estava a fim de bancar o educador perante um rapaz de vinte e poucos anos. Apenas obedeci.

Olha, uma árvore. E não tem ninguém ali. Interessante como elementos simples como a sombra de uma árvore nos são potencialmente mais valiosos quando necessitamos deles. Sua pele alva se confundiria com o branco de sua blusa se não fosse as listras cinzas que ornamentavam o tecido de sua veste ou ainda o avermelhar que surgia consequente dos poucos minutos que estávamos debaixo do sol.

Apesar dos recentes dezoito anos, admirei-me como ele já era convicto de tantas coisas, especialmente aquelas que diziam respeito à fé e a seus projetos de vida. A criança que quando conhecera tinha não mais que onze anos tornara-se um rapaz sério e convicto, e isso soava tão bonito quanto assustador, haja vista a percepção de tempo. Meu peito se regava de orgulho, ainda que também de dúvida acerca de minha influência em seu crescimento.

Em meio ao diálogo, um dèja-vu. Não que eu estivesse ali outrora, não era sobre isso. Revivi ali as minhas angústias, planos e desejos de meus saudosos dezoito anos, quando as oportunidades se escancaravam em minha vida. Apesar de nossa conversa se desenrolar de maneira leve, por um momento alcancei empatia tal que pude reviver o que era novo para ele naquele instante. Naquele contexto,  não assumi o papel da voz da experiência, até porque meu nível de maturidade encurtava um pouco nossa distância temporal de treze anos, mas senti espaço para compartilhar experiências positivas e negativas de minha jornada pós-vestibular. Acredite, jovem, há vida após ele. Ele sorriu com os olhos.

O movimento de estudantes em direção à entrada do prédio chamou a atenção. Era chegada a hora de sua prova e precisávamos nos despedir. Posso pedir uma coisa? Claro, respondi-lhe. Faz uma oração por mim. O barulho ao nosso redor imediatamente se ensurdeceu quando o ouvi dizer-me. Não sei qual o nível de referência espiritual que eu era para ele, acontece que era um pedido que transcendia o campo semântico das palavras, ou ainda da linguagem corporal dos olhos que me fitavam: ele me pediu com a alma. Fechei os olhos e impus minhas mãos sobre seus ombros, ele respondeu fazendo o mesmo. Oramos de tal modo que nada que nos fosse externo seria ouvido ou sentido até que novamente abríssemos os olhos.

Obrigado, primo. Essa era a oração que eu precisava ouvir para fazer uma prova tranquilo. Ela tirou dos meus ombros a ansiedade que eu vinha sentindo, e não tinha ninguém melhor que você para me transmitir essa paz. As palavras se perderam em algum ponto do meu aparelho fonador, contudo dei dois toques em seu peito com a mão esquerda, de modo que ele compreendeu a mensagem de agradecimento.

Nossos passos em direção contrária nos afastava paulatinamente, e eu o observava a distância até que ele se misturasse à multidão de estudantes que adentrava o prédio da faculdade. Ainda que o tivesse perdido de vista por trás dos portões que se fechavam e das pessoas que se movimentavam, eu o acompanhava de perto. Em espírito. Em oração.

A SOPA

 

Já escurecera, ainda assim eu permanecia frente a meu computador, sentado em minha cadeira que se tornava gradativamente menos confortável com o avanço das horas. Olhos cansados, a coluna pedia cama. Mas o evento seria no dia seguinte, e eu precisava concluir a digitação dos poemas que seriam entregues aos jurados do concurso artístico do dia seguinte. A ansiedade pela realização do evento crescia junto ao palco que se erguia perante mim, e eu podia trabalhar e acompanhar toda a sua organização graças à ampla janela que havia ali na coordenação. Luzes, plano de fundo, cadeiras para a plateia, ornamentação de palco, tudo se inclinava para que o amanhã fosse um dia grandioso.

Meu corpo já não conseguia produzir mais. Além disso, meu filho me esperava no pátio, cansado e faminto, e dependia de mim para voltar para casa. Aliei todas  as minhas emoções e sentimentos contrários à minha permanência ali e decidi que terminaria meus afazeres em casa.

Vamos, filho. Ele pegou de imediato sua mochila, levantou e acompanhou meus passos largos e sempre agitados. No carro, o alívio de uma sexta-feira à noite misturado ao pesar de uma tarefa interminável. A procrastinação tem seu preço e eu precisaria pagá-lo naquela noite. Meu filho, calado e voltado para a tela de seu celular, como todo adolescente de dezessete anos. Preparado para amanhã? Ele respondeu positivamente, não com a voz, mas com o balançar da cabeça sem desviar o olhar para quem com ele puxava assunto. Precisarei ensaiar em casa, eu trouxe o saxofone, daí o senhor ouve e diz se está bom, disse ele após alguns segundos de silêncio acompanhado do incessante labor do limpador de para-brisas que deslizava sobre a chuva fina que caía.

Estávamos ao semáforo, e dessa vez fui eu quem respondi positivamente com o balançar de minha cabeça, não por revanchismo, mas porque havia recebido uma mensagem e aproveitei para lê-la ao sinal vermelho. Amanhã não poderei ir, estou com febre. Fosse um ano atrás eu agradeceria a ausência, na verdade sequer haveria o convite, uma vez que o remetente me era um desafeto. No entanto, naquela circunstância eu me importei; nossas amizades em comum, em especial meu irmão que partira uma semana antes para São Paulo, fizeram com que eu deixasse de detestá-lo para considerá-lo uma companhia ao menos aceitável, ocasionalmente.

Abriu. Tendo ouvido isso, enviei OK para o indivíduo e segui viagem. Por um instante levantei a possibilidade de ele ter mentido, e em vez de admitir que um evento artístico não lhe era atrativo, optou por escolher um motivo que anulasse quaisquer possibilidades de sua presença. Seu irmão, que fora meu amigo, costumava alertar que não acreditasse nele, e talvez ele tivesse razão. Pouco me importava se ele mentia, eu tinha coisas mais urgentes para me preocupar, por isso ao estacionar o carro já avisei a meu filho que tomasse banho enquanto eu organizava o café a fim de não perdermos tempo na nossa subida para casa.

Banho e café finalizados, fomos para o quarto concluir os preparativos para o evento. Ainda que chovesse, a noite era quente demais para permanecer na sala. Meu filho pegou a caixa de som e seu saxofone, enquanto eu ligava meu notebook e tirava da pasta todos os poemas a serem digitados. Ele era muito bom na música, precisava apenas se sentir mais seguro. Eu o ouvia enquanto dava continuidade a minha infindável digitação de textos. Não está ficando muito bom, acho que não vou me apresentar amanhã, anunciou. Nem pensar, ri com ar de reprovação.

A minha febre ainda não passou. Você se alimentou? Você precisa se alimentar, senão ela não vai passar, mesmo. Meu pai não está em casa, não deixou nada pronto e eu não sei cozinhar, então acho que vou dormir sem comer, mesmo.

Não, não vai. Olhei para todos aqueles papéis embaralhados sobre a cama, pensei na possibilidade de não conseguir concluir o trabalho naquela noite caso eu pausasse o processo de digitação. Pensei no risco que correria em dormir tarde e acordar cedo e ter de comandar um grande evento que exigiria de mim muita energia e disposição. O relógio já apontava 21h, e não havia sequer previsão de quando eu terminaria aquilo que mal começara a fazer. Mas eu sabia o que fazer. Saltei da cama e vesti uma camisa. Sugeri que meu filho ficasse em casa ensaiando, mas ele optou por me acompanhar. Desci as escadas com pressa e pedi que ele acionasse o GPS, graças a minha dificuldade em me localizar geograficamente.

No trajeto, ri-me de mim mesmo, tentando compreender por que naquele momento eu me preocupava tanto com ele. Por muitos anos ele me fora um desafeto, e eu nunca fiz questão de esconder; sua presença me desagradava, mas suportava apenas por ser irmão de um amigo, ou ainda por termos amizades em comum. Mas era justamente de mim que ele precisava naquela noite, e isso fez minha alma aquecer por dentro, ainda que o orgulho permanecesse como adversário.

Não era dele que o senhor não gostava? Perguntou meu filho ao revelar-lhe para quem eu entregaria a sopa quentinha guardada no potinho que eu conduzia para o carro. Pelo visto, minha ojeriza pelo jovem era até mais pública do que eu tinha conhecimento. Respondi-lhe com um sorriso e desconversei ligando o som do automóvel para distrai-lo com minha cantoria desafinada.

Saindo do carro, olhei para o seu condomínio portão adentro e logo o vi a distância, ainda que ele fosse baixo e magro. Ele aproximava-se lentamente, os braços cruzados nos quais roçava as próprias mãos indicando estar com frio. Tome, é para você. Sopa de macaxeira, espero que goste, até veio com um pãozinho francês de acompanhamento. Seus passos, que eram lentos, cessaram. De imediato interpretei que ele esperava que eu também me aproximasse, por isso direcionei-me até ele. Toma, e vê se come todo, entreguei-lhe o potinho com a sopa. Olhei-o nos olhos, e percebi que eles estavam vermelhos e marejados.

Abruptamente, ele me abraçou. Abraços não são acontecimentos extraordinários na minha vida, uma vez que o distribuo diuturnamente a meus amigos, mas aquele foi um abraço diferente. Não porque senti em meus braços seu corpo febril; aquele abraço me transmitiu tamanha gratidão que seu “obrigado” em seguida se perdeu no vento que ali atravessava. Comprimi com as mãos sua cabeça a meu peito, que ao fim do gesto continha duas gotinhas proveniente de suas lágrimas. E ali permanecemos em silêncio por alguns instantes. Um silêncio de um abraço, um abraço de gratidão. Em silêncio, uma barreira se quebrava dentro de mim.

E foi assim que saí de casa achando que curaria a doença de um corpo; e retornei com a certeza de que Deus me levou para que eu curasse minha alma.


“Dá de comer a seu inimigo no de dia de sua fome. E no dia de sua sede, dá-lhe de beber. Porque assim amontoarás brasas vivas sobre sua cabeça”. (Romanos 12:20)