O espelho - Capítulo 10: A rosa

O garoto não se rendeu ao cansaço. Ainda que sua respiração insistisse em ceder. Vidrado no seu novo guia, caminhava incessantemente rumo ao horizonte guardado sob as montanhas. O Sol, por sua vez, mantinha-se ali, num ponto eqüidistante entre todos os quatro cantos da Terra, coberto de nuvens.

O tempo fechava-se, e aquele céu transformava-se em uma imensurável massa cinzenta. Gotículas abandonavam as nuvens e, carregadas pelo vento, desciam em espiral. David não temia a chuva. Protegeu cuidadosamente o ovo que carregava, embora alterasse em momento algum a freqüência de seus passos.

A poucos pés dali, avistou-se um rio. Um tão cobiçado rio. Um rio que parecia atravessar a Terra de leste a oeste, partindo-a em duas metades. Impedindo David, desde então, de alcançar as montanhas. Desta vez, David apressou-se e correu.

Ao chegar à margem, David ajoelhou-se bruscamente, deixando escapar de sua mão esquerda o ovo, que sobre a relva se guardou. O garotinho nem havia notado, mas a beira do rio cobria-se de flores. Flores brancas, vermelhas, amarelas. Porém, havia uma delas que se destacava. Era uma rosa. Uma rosa azul. Impecável. Única. Curvada para o rio.

O menino fitou-a, esquecendo de tudo quanto houvesse à sua volta. As flores. A relva. O ovo. O rio. A chuva. As montanhas. As nuvens. O adormecido Rei Sol. Naquele momento, o mundo se limitava a ele e a rosa. Apenas.

Misteriosamente, a flor ergueu-se, como se percebesse que estava sendo admirada. Delicadamente, suas pétalas azuladas punham as gotas a deslizarem pelas sépalas, caule e folhas, as quais se desmanchavam pela terra numa minuciosa explosão, partindo-as em gotinhas ainda menores. Quase invisíveis. David continuara perplexo, atento a cada detalhe. O caule charmosamente delicado pôs-se a mover para a direita e para esquerda, em uma dança suave, junto aos olhos da criança, quando repentinamente paralisou-se. A formidável flor curvou-se vagarosamente para a água, novamente. Junto a ela, todas as demais flores. Rosas, margaridas, girassóis. Exceto David. Algo naquela flor o fascinara. Suas retinas hipnotizadas atinham-se a toda a flor. Não digo toda flor. Digo toda a flor. Aquela flor. Seu conjunto. Uma gota microscópica retirada da ponta de uma sépala significaria para David um livro sem um capítulo.

Finalmente, David desviou-lhe olhar da rosa. Transferiu-o ao reflexo da mesma. A água fluvial de tão límpida refletia impecavelmente todos os céus e Terra. As flores. A relva. O ovo. O rio. A chuva. As montanhas. As nuvens. O adormecido Rei Sol. Simetricamente ao rio, como se este fosse o eixo de simetria de dois universos paralelos. Seus olhos escorregaram da rosa, e passearam pelo céu abaixo de seu nariz. Ainda que milhares de gotas caíssem ali, o rio conservava-se estável. Como se não chovesse sobre ele.

E dois olhares se encontraram. David curvou-se rapidamente para trás. Lentamente, avistou na água uma luz. Na verdade, eram lindos cachinhos dourados, olhos verdes de esmeralda, que lhe estendiam a mão. Da outra face do rio. No universo simétrico abaixo d’água. Era uma menininha. E o garoto a reconheceu. Era ela. A menininha do espelho. Após um instante de silêncio, o gelo quebrou-se em gostosas gargalhadas. Gargalhadas que dissiparam a rosa em esquecimento. Como tentara outrora no espelho, ainda que não tenha conseguido, David tentou tocá-la. A pequenina. Ela estava perante seus olhos. Novamente. Desta vez, pouco abaixo da superfície do rio.

Com o dedo indicador, David pôs o dedo sobre a água propagando uma série de ondas, que invadiram o rio adentro, embora se tenham perdido em meio ao vão. A menina, encantada, entranhou-se na brincadeira e desenhou-lhe uma rosa. David lançou a mão sobre a água, num tapa feroz, desmanchando a rosa e a menina.

A água acalmou-se aos poucos, e a garotinha novamente surgia. Esticando o braço, David tocou mais uma vez o rio, a fim de sentir aquela face que lhe parecia tão suave. O prazer, desde sempre, extinto pela inocência.

E por inocência, David afogou-se em esperança. Na tentativa de um abraço, caiu de braços abertos nas águas profundas daquele rio sem correnteza. O rio que dividia a Terra ao meio. A Vida e a Morte.

Pelo rio, navegava uma rosa. Uma rosa navegava pelo rio.