Conjuração

Vem, brisa parda da aurora! Vem!
Para que eu não ouça mais da inocência a cólera.

Eu quero ouvir explosões estelares além da heliosfera
Carregar sobre os ventos solares o meu canto e náusea
Jazer-me as aflições destiladas na heliopausa
E esquecer a cor caótica da atmosfera!

Eu quero me esculpir envolto ao núcleo dos cometas
Desvanecer meu ego pelas órbitas curvilíneas
Sepultar nos astros, do coma às caudas finas
A impetuosidade astronômica dos planetas!

Eu quero conjurar meu verbo de Andrômeda a Hydra
Pelo vácuo micrométrico das poeiras interestelares
Pungir-me em brasa viva nas profundezas tépidas dos mares
Esmorecer as agitações atômicas da clepsidra!

Em reação cromodinâmica rasgo-lhe do infinito véu e manto
Do macrocosmo, pai das constelações, galáxias e sistemas,
Reduzo-me à natureza mínima dos morfemas
E fragmento-me nas areias desertas do Atlântico!

Luz de veludo

Queime em minha face nua teu escaldante hálito
Pra que em minha epiderme ferva a febre de teus lábios
Estatize-me a pele e ossos com o deslize de tuas plumas
E que tua voz macia me arrebate a alma de um modo tácito.

Não mais cantarei a canção fúnebre, o suicídio, o fim
A retirada em marcha dessa vida infindavelmente trágica
Teu olhar vorazmente atingiu-me a alma como em mágica
Meus suspiros clamam por teus seios, tua nudez em mim

Noite fria, manto de alvas nebulosas sob o cosmo, escurece
Cobriram-se teus dedos da poeira estelar que em teu suor se refletem,
Molhou-se o calcanhar do gotejar das nuvens, das águas que partem
Rumo ao abismo de teus ombros que oniricamente me aquece!

Mateus 27:5

Eis que no verão há uma rosa que se fecha
Eis que no grito há um som que não se propaga
Eis que nas trevas há uma vela que se apaga
Eis que na guerra há uma lança que não se flecha.

Pálida a rosa tímida que ao sol fraqueja
Pétalas de tão finas, frágeis, estremecem
Sépalas, de tão puras, débeis, enlouquecem
No meigo toque da moça que à rosa beija

Sou a vela consumida ao amanhecer,
A esperança que se compra sem mais valer,
O fogo que em trevas se ofusca ao pó da terra,

Sou a lança que na bonança se abandona,
A muralha que em tempestade desmorona,
Sou o soldado que se oculta ao caos da guerra.

Metalinguagem

E a poesia?
Perdida. Talvez presa em alguma artéria
Em algum refúgio de minha deteriorada memória
Ou num deleite de meu dia inacabado
Engasgado no calor de minha voz tão séria.

Perdeu-se o verso
Na luz que se ofusca adormecida em minha retina?
Ou na ansiedade que corrói dos meus dedos a queratina?
No ranger de meus vocábulos decadentes
Quiçá nos fios de água correntes
Em meus esbranquiçados cabelos vestidos de tédio.

Calou-se o berro,
Uma vez que no vácuo de minhas desinências eu o enterro
Definhá-lo-ei, fundi-lo-ei em tungstênio e ferro!
Minhas lamúrias substanciaram-se em estrôncio e césio
Cristalizadas em raios catódicos durante uma propulsão iônica
Filtro o tempo, dilato-o, sintetizo-o, isomerizo-o... Nego-o!

Empatia

Soa o sino sobre a sua face inacessível
Desce-me a sombra que se segue sob o som que silva
O silêncio que nasce dos soluços que sossegam
No sossego que assopra em seu seio a esperança

Estremece entre as negras nebulosas o brado bravo dos trovões
Que esbravejam como as trevas que me esfriam a nevralgia
Co’a tristeza que dispara no meu peito entrevado
O tremor fúnebre, tísico, de minhas mãos frigidas e frenéticas.

Dos verdes olhos meus escorre-me a lágrima raquítica
Dos rubros lábios, ígneos, seus, transbordam-me a eufonia
Em memória de sua voz, suave, soante, de tão simples, mítica
Desfolho a frágil rosa murcha que a meu suspiro silencia.

Prefácio de uma identidade análoga

Era um dia quente quando, debaixo de um bruto sol matinal ao fim do ano de 2003, encontrei um espelho. Velho, sujo, um pouco descascado. Mas era um espelho.

Concentrei-me naquele pequeno pedaço de vidro sem valor. Mal conseguia eu enxergar-me.

O curioso é que, por mais absurdo que pareça, eu jamais conseguiria me enxergar nele. Não pelo fato de que ele era pequeno ou velho. É porque aquele pedaço de vidro me mostrou um garoto branco feito um pedaço de papel, com olhos verdes e cabelo encaracolado.

Não é um espelho, concluí. É um porta-retrato. Como posso ser tão distraído? Ri comigo mesmo. Mas não era um porta-retrato. Nem um espelho (deixo bem claro que tudo o que eu penso sobre espelhos já foi revelado outrora). Era apenas um pedaço de vidro transparente e maltratado. Um caco que me transferiu ao passado. Como um porta-retrato. Como um retrovisor. Contudo, era um passado que se fazia presente aos meus olhos! Detrás de um pedaço de vidro! Lá havia um garoto. Um nome. Uma identidade. Esta que logo descobri ser análoga à minha. Alguns anos mais jovem. Porém, com alma tão sábia e ousada quanto a minha. Seu nome era Caio. Primeiro estranha-se. Depois entranha-se.

Nome legal, pensei.

- Caio de quê?

- Caio Monteiro. – sorriu.

- Monteiro Lobato? – brinquei.

- Não, não. – riu aquela risada para não desfazer a amizade que nem se formara. – Mas eu bem que gostaria.

Bobagem! É só um sobrenome. Garanto que a ausência do Lobato em seu nome até que lhe fez muito bem. Quem sabe se tal sobrenome ali estivesse, mais tarde, ao descobrir-se na Literatura, por puro capricho ele tentasse pelo resto de sua vida tornar-se uma réplica do nosso gênio pré-moderno? Monteiro Lobato é Monteiro Lobato, e nada nem ninguém pode repetir seu feito. É como correr atrás do vento. Não precisamos de mais um Monteiro Lobato. Este já é completo por natureza.

Após a conversa, por falta de cuidado deixei derrubar o pedaço de matéria inorgânica. A força da gravidade foi tão inevitável quanto a força dos anos. Seis anos e alguns meses se passaram.

Não tardou até que eu chegasse à gloriosa conclusão de que por mais que o passar dos anos fosse nos tornando cada vez mais semelhantes, nossa identidade revelava-nos cada vez mais distintos.

Algumas vezes trocamos de identidade. Foi nessa viagem que eu conheci a humilde parteira e ele a Esmeralda. Foi injusto, eu sei. A parteira teve uma segunda chance. Esmeralda não. Não sei explicar se foi devido à diferença de época entre as duas, só sei dizer que foi assim. E sempre será. Por mais que a gente volte atrás. As páginas não podem ser modificadas a não ser por si mesmas. E se não podem; o mundo, regido por elas, continua sempre o mesmo.

Tornamo-nos bons e verdadeiros amigos. O primeiro passo para que as coisas aconteçam é acreditar nelas, e permitir que elas existam. E nossa amizade cresceu de forma que se tornou algo inexplicável. Uma poesia pirata escondida entre as coxias e o palco. Por isso não teimo em explicar, prefiro me lembrar dos fins e dos meios que de tanto um dia me serviram. Inexplicável o suficiente para se tornar um espetáculo. Sem platéia. Sem elenco. Um monólogo, talvez. Mas um espetáculo. Como o paradoxo dos nossos dias. Amizade fluida como a água. Misteriosa e essencial.

Quem sabe um sujeito oculto. Implícito, como queiram chamar. Aquele que pouco encontro. Raras, preciosas vezes. Mas que facilmente identifico pelo rastro inconfundível de suas nostálgicas palavras.

We will never walk alone.

Num dia frio, eu descobri que Caio possuía um segredo. Ele o guardava na ponta dos dedos, e, quando estava comigo, debaixo da língua para não escapulir em uma conversa. Porém, certa vez eu o encontrei escondido entre as páginas de um livro que ele escrevia. O segredo estava numa ponta de pena. Ou numa pena sem ponta? Tanto faz. O que importa mesmo é que Caio é um alquimista! Sim, um alquimista. Capaz de transformar palavras soltas e ao avesso em tão precioso ouro para minhas retinas tão fatigadas. Em um prazeroso amargo para a língua. Em um gostoso abraço na solidão. Capaz de transformar a si mesmo, na sua condição de ser humano, pertencente à raça tão pavorosamente desprezível, em alguém tão sobre-humano de fantástico! Definitivamente um alquimista.

Perguntei-lhe a fórmula de arte tamanha. Ele respondeu que apenas queria escrever diferente. Que os pontos e as linhas se comunicassem internamente, assim como se comunicam o vento e as palavras. Como um tecido. Contudo, a alquimia só durava por um dia! E assim então Caio se reinventaria só para morrer de novo como o mais digno dos versos mortos antes de ele nascer.

Ainda hoje brincamos de mediocridade!

Por fim, hoje encontrei em minhas lembranças um pedaço de vidro velho e inválido que me pareceu bastante familiar. Olhei novamente através dele. E vi que o garoto não estava mais lá. Repentinamente bateu-me uma tristeza, pois aquele objeto subitamente perdeu todo o seu valor. Mas imediatamente sorri ao ver que ele se tornara gigante de mais para ser visto por completo através de um artefato fosco e sem valor.

Caio encontrou seu amor em pó, solúvel. E foi morar entre as páginas de um livro. Um livro sem nome. Um livro sem capa. Um livro sem cor. Não hesitarei em descrevê-lo. Não hesitarei em rotulá-lo. Ainda tenho muito tempo para agradecer por tudo o que acontece ao meu redor.