O espelho - Capítulo 7: A torre e o relógio

E naquele céu recém amanhecido, as lindas borboletas o carregavam, bailando juntos por aquele azul tão límpido. Para onde ia, David não fazia idéia. Mas, naquele instante, pouco importava. Voar sempre foi seu maior sonho. E se realizava ali. Sob as nuvens.

A brisa suave daquela manhã o beijava e abraçava, carregando no colo o jovenzinho junto às amigas borboletas. Tal qual mãe e filho. Como é fascinante não sentir os pés tocarem o chão! Quem sabe David tivesse medo de altura, mas seu espírito estava em tal êxtase que quaisquer medos foram derrotados ali. No ar. Entre as borboletas.

Avistava-se dali uma torre. A poucos metros. Hectômetros, digamos. Bem poucos. Uma torre alta. Ao estilo medieval. De pedra, com detalhes preciosíssimos em ouro envelhecido, que, ao toque da luz solar, mostrava-lhe o brilho a distância. Ao seu redor havia diversas árvores cuja espécie não sei descrever. Só sei que eram árvores. Possuíam folhas bem verdes e compridas, e ao redor do tronco formavam um belíssimo cone. Ainda que maravilhado, David captava cada detalhe do ambiente sobrevoado. Por ali não havia casas, não havia ninguém. Só uma criança. As árvores. E as borboletas. E, claro, a torre do relógio. Como quem quisesse dizer algo sem utilizar palavra alguma, David estendeu o dedo indicador da mão direita, apontando para a torre. As borboletas atenderam, e num impulso mágico passaram a carregá-lo em espiral, cortando o ar daquela manhã tão verde e azul.

Chegaram à torre. Antes de pousarem, pararam diante dela por curtos instantes. Frente a frente. O relógio. O menino. As borboletas. David entrou em um breve estado de cogitação. Os ponteiros caminhavam em círculos, um mais rápido que o outro. O dos segundos era o mais apressado. O dos minutos aguardava a cada minuto um novo passo. Já o das horas? Nem se percebia movimento algum. Minuciosas frações de tempo passadas, o jovenzinho teve uma idéia. Desejava fortemente parar o tempo. O ponteiro dos segundos o inquietava. Por que tanta pressa, meu Deus? Perguntava a si mesmo. Subitamente se deu conta de que seu envelhecimento depende dele. Sim, dele. O tempo.

Entraram na torre. Sob o grandioso relógio, havia duas janelinhas de vidro adjacentes, com detalhes de ouro em suas bordas. As borboletas o deixaram ali. De pé sobre o parapeito. E se foram, como se seu objetivo fosse deixá-lo naquele lugar. Ainda que ali houvesse janelas, na parte interior da torre predominava a escuridão. Próximo às janelas estava uma vela. Fincada a um elegante candelabro, anexo à parede de pedra. David a retirou. Todavia, a vela estava apagada. Como conseguiria ele acendê-la? O pequeno, com o objeto entre as mãos, apreciou-o por uns instantes, intensamente concentrado. Encheu-lhe os pulmões de ar, e num sopro brando... A vela acendeu!

Entre um breve sorriso e um primeiro passo, o garoto observou superficialmente tudo o que estava à sua volta. Banhado pela luz da vela, e por alguns raios que ali invadiam, o pequenino passeava sem destino. Após não muito caminhar, encontrou uma escada. Sombria. Estreita. Mas era só uma escada. Foi descendo, sem pressa. Chegado à parte inferior, olhou para todas as direções e sentidos. Caminhados poucos passos, avistou uma porta de ferro, protegida por uma grade de aço. Na grade, não havia cadeados. A porta. Nem estava trancada.

Empurrou de leve, como estivesse com nojo de toda a poeira que à porta cobria. Ela era pesada. Aplicou-se mais força, desde então. E assim ela foi-se abrindo. Devagarinho.

- Tique-taque... Tique-taque... Tique-taque... Tique-taque... – dizia em voz alta aquela sala.

Erguendo as mãozinhas fechadas, com apenas o dedo indicador estendido, David sentia-se aos poucos um maestro em meio àquela orquestra de sons metálicos. Deparou-se com um corredor. Aos seus arredores uma grade, que lhe alcançava a testa. Fosse ele um adulto, mal passaria ela de sua cintura. Lá estavam todos os instrumentos. Incontáveis parafusos e engrenagens em movimento sincronicamente perfeito. Dizer que a música era linda era uma ofensa. Os metais em atrito criavam sons excepcionalmente singulares, jamais ouvidos até então. A escuridão foi deixada de lado, pouco a pouco. Os sons faziam David enxergar melhor que suas retinas, lentamente cobertas por um par de pálpebras cansadas. David apagou vela num suave assopro. A luz já não lhe servia mais. Cada nota musical o guiou por cada passo. E dançou. E pulou. E rodopiou. E cantou. Quando menos se esperava, o garotinho, caminhando sobre as engrenagens, maestrava a fabulosa orquestra das máquinas.

- Papai vai voltar?

- Não sei, David. Só o tempo vai dizer. Só o tempo...

- Vai demorar para o tempo dizer?

- Não, sei, David. Não sei.

- A gente pode voltar no tempo?

- Não, David. Só os relógios. E os ioiôs.

Enfiada a mão no bolso, primeiramente sentiu-se um cordãozinho de lã. Em algumas puxadinhas, já se foi permitido sentir entre os dedos o objeto roliço e plástico. Derramando uma lágrima, David suspirou. Agarrando seu brinquedinho, voltou sua atenção para seus pés incessantes, movimentando-se sobre as engrenagens. E entre um suspiro e uma gota de lágrima, abandonou-o entre seus pés. Entre as máquinas. Entre as linhas do tempo.

E engrenagens pararam. E as máquinas pararam. E o relógio parou. E a torre parou. E o tempo parou. E tudo parou. E David? David sorriu. David matou o tempo!

O espelho - Capítulo 6: A Borboleta

Doce silêncio. O garoto ali se recostava. Sentia frio. Sentia fome. Sentia medo. Mas estava ali. Bem ali. Adormecido.

Mas de repente, não mais que de repente, seus leves sonhos e suspiros se romperam, trazendo-o à realidade.

Estava ofegante. Bastante ofegante. Assustado, arrastava-lhe os dedos sobre a parede à procura da luz. Permaneceu ali, por alguns instantes. Tremia, ainda que aliviado. Pôs-se de pé, ajudado pela parede fria e empoeirada. Tropeçou. O chão acabara ali mesmo. Soluçou, com o susto. Mas calma. A alguns centímetros dali, havia mais um pedacinho de solo. Optou por ficar paralisado. Ainda que forçasse a vista, de nada adiantava. Enfiou a mão esquerda no bolso, enquanto a direita apalpava a parede. Retirou dali seu precioso ioiô. Apôs prendê-lo ao dedo pela ponta do cordão comprido, arriscou lançá-lo, concentrando-se no som propagado pelo brinquedinho.

- Zip! Tac! Tac! Zom, zom! Tec! Zum, zum! Toc! Zum... Tuc... Tuc... Tash...! ...! ...! – imitou baixinho o menino, o caminho percorrido pelo objeto.

Coçou a cabeça, pensativo. E disse, sussurrando.

- Cordão! Bate! Bate! Vai, vai! Bate mais fraco! Vai, vai! Bem mais fraco! Vai... Bate baixinho... Baixinho... Pára! ...! ...!

Como se fosse um maestro, David dançava-lhe os dedinhos pelo ar, concentrado.

- Uma escada! – ergueu sorridente o dedo indicador

Enrolando o cordão nos dedos, o garoto ia descendo os degraus pacientemente. Parou. Capturou o objeto, devolvendo-o ao bolso. Estendeu a palma da mão direita, tocando em algo áspero e plano. Foi descendo as mãos. Subindo. Descendo. Caminhando-as aos poucos para a esquerda. Subindo. Descendo. Subindo...

- Achei. – sorriu.

Perante seus olhinhos cegos, encontrava-se a saída. Em suas mãos, sentia a maçaneta. Seu olfato captava um odor forte provindo de ferrugem. Sem muito esforço, abriu a porta. Estava livre. Ou não.

Abrindo a porta, a luz atingiu-lhe como uma espada, os olhos indefesos. Cobriu-os com as mãos, erguendo lentamente suas pálpebras. Um pano suave tocava-lhe o rosto, acompanhado pela luz do sol. Já era dia.

Espreguiçou-se. Deu três passos e bocejou. O piso de madeira deslizante brilhava. O garoto não havia percebido anteriormente que aquele ambiente era tão belo. Tão pacífico. Direcionou-se ao outro lado do corredor. Deparou-se com algo que o fascinou. No topo do corrimão, sobre tão elegante detalhe esférico e dourado, habitava uma borboleta. Não era um coelho. Não era uma coruja. Era uma borboleta. Azul, com sutis detalhes negros, nas bordas das asas. Chamá-la de fascinante seria uma ofensa. Como pode um ser tão pequenino abrigar tamanha beleza?

David aproximou-se, maravilhado. O ser divino espantou-se, batendo suas asinhas e escorregando alguns centímetros sobre o corrimão. O pequenino preferiu deixá-la em paz. Tornou a seguir em frente pelo corredor. Foi surpreendido. Uma nova borboleta, idêntica à outra, pairava sobre ele. Dançou, dançou e pousou, ficando as duas lado a lado. O garoto achou divertido. Mas novamente preferiu retomar seu antigo rumo. Os dois animaizinhos bateram asas e tornaram a sobrevoar o garoto. Tomaram a frente e pousaram sobre a maçaneta da última porta. David deixou-se guiar por elas. Aproximando-se da porta, os insetos afastaram-se. Lembrou-se de que as portas, com exceção da última do lado oposto do corredor, estavam trancadas. Afastou a mão direita, que ali estava apoiada. As borboletas bateram as asas, inquietas e tornaram a voar, inquietas. David compreendeu o sinal e reaproximou sua mão, colocando-a no mesmo lugar em que estava apoiada. Os dois animaizinhos puseram-se a se debater contra a porta, como se tentassem abri-la. David sorria, à proporção que se espantava. Ao segurar firmemente a fechadura, a porta tremeu. O menino não conseguia soltá-la. A maçaneta brilhava intensamente, e as borboletas se debatiam em movimento frenético. O brilho apagou. A porta cedeu. Milhares de borboletas, idêntica às outras duas, saíram daquele cômodo. O garotinho abriu os braços, rindo. As borboletas cercaram-no, formando ao seu redor um fantástico tornado azul. As cortinas se abriram. A janela abriu. Parte das borboletas o agarrou, levando-o para o lado de fora da casa. E juntos voaram em perfeita sincronia. Com o vento. Com o canto. Dos pássaros. E do novo mundo!

Andarilho noturno


Enquanto o sol se reparte em trevas plúmbeas,
E a noite cai em meus braços pálidos...
Atravesso o fim de mais um dia ilógico
Deslizando estrelas em triste cadência
E raios lunares banhados de uma voz tão rubra!

Em perfeito movimento oscilante
Entre arcos helicoidais e traços vívidos
Esbarro-me em meus verbos paralíticos
Tão gélidos, tísicos e náufragos,
De um amor tão lúcido, porém raquítico.

Minhas mãos, tão trêmulas e límpidas!
De um mar tão mórbido e sólido
Que de inconseqüente me feriu o peito
Com suas ondas negras de um manto plácido
De uma noite tão cálida de tão fúlgida!

Do desespero surge-me a dúvida! Perdoe-me,
Sou filho de uma loucura hipocondríaca!
Do ódio público tão crescente e fértil!
Irmão de aberrações divinamente fétidas!
Pai de uma depressão tão fragilmente demoníaca!

Por que motivo racionalmente óbvio e mecânico
Vivo afogado em podridão entre feridos monstros
Tão irracionais! Que em prepotência irônica
Devoram-lhe impiedosamente os próprios filhos,
Criações tão cancerígenas e duais, pobres andarilhos,
Por uma fome de um amor tão hediondamente platônica?

Este horror tão imbatível incessantemente destrói-me o fígado!
Golpeia-me a alma, tão impura, tão triste, tão insípida!
Põe-me a fugir pelas sombras, à procura de meu túmulo,
Que ainda o cavo, o cultivo à luz morta do crepúsculo,
Sou ser vivo, mortal tóxico e minúsculo! Que pela noite
Vago doentio pela estrada, entre defuntos e trilhos!
Sou vagabundo, sou sonâmbulo... Sou andarilho!

O último botão de rosa para aquele hospital


Fite-me com teus olhinhos tão flamejantes
Tão vazios, tão cheios de melancolia
Confesse teu doce ódio por mim
Deixe-me ouvir teu silêncio mais uma vez
Escondido em tuas lágrimas cintilantes

Entre vocábulos perdidos e suspiros,
Perco-me entre o princípio, o meio e o fim,
Abrace-me os dedos, toque-me os lábios,
E caminhemos juntos, sem medo,
Sobre as entrelinhas.

Navegando em minhas horas
Distraído em meu sutil rastejo... E desejo
Caminho os dedos sobre a sombra
À procura de um feixe de luz,
Luz que me afastaria tamanha angústia
Que insiste em nascer a cada crepúsculo
Repartido em meias-palavras, botões de rosa
E um copo de cólera.

Minhas palavras desabam em escassez
Em emaranhados de consoantes e vogais
Esbarrando-se em pausas e elisões
Que se calam quando meus lábios
Em profunda morbidez se abraçam
E extasiados com o perfume da rosa tímida
Em profundo sossego me libertam!

Fitter, Happier




Faz hoje quinze anos que nasceu um nome para a prosa. Um apelido para a poesia. Há quem diga que quinze anos é uma coleção de ponteiros um tanto quanto prematura para o nascimento de um poeta, a ponto de provocar do silêncio um riso ou das mãos espalmadas um espanto. Mas é verdade. Uma das poucas positivas que já conheci. E foi no ano de dois mil e quatro que, acidentalmente em jogos de pedras e cartas, de duas até então crianças, nasceu uma grande amizade. Foi quando descobri o nome da prosa. O apelido para a poesia.

Gustavo Caio, se chamava (creio eu que ainda se chame). Seu nome foi um motivo pelo qual me despertou uma pontinha de inveja. É um nome duplo. Eu, desde pequeno, sempre quis ter um nome duplo. Pena que esse tipo de coisa nós nunca decidimos. Um moleque franzino, com um olhar atento, branco como um pino de boliche (eu não pude evitar), me parecia ser um garoto legal. E de fato era. De início, eu o via como um moleque qualquer, com um nome duplo qualquer, morador recente de uma cidadezinha qualquer, advindo de uma outra cidadezinha qualquer, no pulmão de Alagoas (as pessoas sempre falam ‘no coração’, tem que haver uma inovação, não é mesmo?). Arapiraca é o nome dela. Nome engraçadinho, por sinal.

Perdidos entre vogais e consoantes, após alguns meses nós descobrimos a filosofia. Uma filosofia barata, tão passatempo quanto um pacote de bolachas Maria. Mas era filosofia. Àquela altura, eu já possuía meus quinze anos e ele seus onze. Tornamo-nos primos. Ele ainda era uma criança. Eu não. Não cronologicamente...

Dividimos nós seres humanos em castas, de acordo com sua massa encefálica utilizada. Os normais e os anormais. Alegávamos sermos anormais. Não. Não nos considerávamos nenhum X-Men, apenas nos víamos com um raciocínio um pouco mais lúcido que o das pessoas comuns.

As tardes de RPG dominaram nossos fins de semana por dois meses. Eu era o mestre. Ele era um vampiro. É só parar um pouquinho para perceber que os personagens não se tratavam apenas de personagens. Eram as personalidades de cada um que estavam ali refletidas em um joguinho bobo. Gustavo sempre foi um garoto misterioso, com um olhar bem analítico sobre toda e qualquer situação. Um olhar frio e calculista. Como um vampiro.

Nossas linhas de pensamento sempre foram fantásticas. Aos poucos fui percebendo que ao meu lado já não estava mais aquele moleque pálido e franzino de até ali um ano atrás. Ali cresciam juntos dois pensamentos, duas personalidades distintas, numa única amizade. Foi quando disparamos anos no tempo, apenas sentados por algumas horas numa humilde escada. Literatura. Cinema. Filosofia. Mulheres. Religião. Amizade. Os assuntos encadeavam-se no tempo, e em nossas mentes. As idéias fluíam e fluíam sem parar. E bem ali crescíamos e crescíamos sem parar. De variadas formas.

Criamos cada um seu blog. Dei a iniciativa, e alguns meses depois ele aderiu à idéia. Eu ia me envolvendo em poesia pirata, e meu grande amigo optava por se esconder entre as coxias e o palco. E fomos trabalhando com nossas palavras, estas que foram nos construindo constantemente. E imperceptivelmente.

Inesperadamente a música nos abraçou. Esta já não nos serviu como uma escada. Mas como um elevador. O Radiohead surgiu como um colírio de lucidez para nossos olhos cansados, e nos fez crescer mais eficientemente que biotônico fontora. A música se tornou prioridade em nosso discurso, passando a ser sujeito, verbo e predicado.
Amávamos o ridículo. O bizarro. As situações mais inusitadas e grotescas eram as nossas favoritas. E elas teimavam em acontecer nos nossos dias. Não, nós não a procurávamos. Atraíamo-las, apenas isso. Optarei por não contar, porque aos olhos da platéia, parece até mentira. Parece até teatro.

O teatro. Ah, o teatro. Este foi como um sonho que não saiu do papel. Os ensaios com a galera eram divertidíssimos, mas não passaram de ensaios. Infelizmente.

Sem nenhum motivo muito explicável (se é que houve explicação), fomo-nos afastando. A amizade permanecia ali. Concentrada em infinitos dígitos atirados ao MSN e Orkut.
Após um ano meramente afastados, nasce a idéia de um livro. Não um livro qualquer. Um livro inovador. Estava ali a poesia pirata entre as coxias e o palco. De certa forma, havia entre aquela dupla três pensamentos. Gustavo. Rafael. E Gustavo-Rafael. É só parar para analisar. Fui me empolgando com essa idéia. Seria no mínimo uma honra dividir um espaço literário com um gênio. Nossas idéias foram-se assimilando, e uma intersecção de todas elas em um livro seria algo fabulosamente inexplicável. Eu, até hoje, não me recordo de nenhuma dupla de escritores, citados em união. Quem sabe um dia sejamos os primeiros...

Então aqui vou encerrando minha homenagem a este grande amigo. De longe, um dos melhores que tenho. Um cara por quem possuo imensurável admiração. Em diversos aspectos. Um primo. Um amigo. Um irmão, quem sabe. Às vezes somos como espelhos paralelos, em infindável reflexão.

Parabéns, meu velho. Parabéns por mais um ano de vida. Apenas mais uma porta para dezenas mais. Parabéns pelo seu aniversário. Parabéns por ser você. Não é um feito qualquer.

Aqui seguimos lado a lado. Mais em forma. Mais felizes. Mais sanos e produtivos. Enjaulados. Como porcos. Sob antibióticos.

Carta suicida



Terra de ninguém, 30 de maio de 2008

Por alguns desprezíveis instantes, a quietude me abraça, preenchendo o vazio avassalador que a meu interior domina. Um sorriso fraco, acanhado, quase morto, imperceptivelmente brota em minha face pálida. Um sorrisinho meia-boca, tão acolhedor e descartável quanto um cigarro. Mas era um sorriso. Confortável. Enganador. Assim... Como uma boa noite de sono. Nada pior que um dia após o outro.

O relógio. Ah, o relógio. Meus olhos céticos, cobertos por minhas pálpebras cansadas o observam. Retiro do bolso uma caneta, e me disponho a escrever esta carta. Sem destino. Apenas um desabafo. Um escarro. Quem sabe uma lágrima. Lágrimas? Eu, mortal frio e calculista, as desconheço. Ao senti-las, todos os sentimentos putrefatos, decompostos em meu subconsciente vêm à tona. Você não sabe o que isso significa, mas isso arde como o inferno. É um cálice que me persegue desde a infância. Sendo mais exato, apenas uma dose dele. De toda essa dor que me molesta.

Minha infância. Ai, minha sofrida infância. Serena, tanto quanto entediante. Quantas vezes eu me pus de joelhos perante a cruz? Perante a dúvida... Todavia, eu devia acreditar. Perdoa-me, pobre mãezinha! Perdoa-me tê-la enganado. Eu tentei. Juro que eu tentei. Era preciso confiar em alguém que me protegesse. Alguém a quem eu me refugiasse. Era uma pobre criança. Inocentemente apavorada. Acredite em mim, imploro beijando seus pezinhos suaves: Eu não consegui!

Por ato de misericórdia, aos dezessete anos a vida me concedeu um pneumotórax. Foi minha última chance de liberdade. Nunca respirei tão bem em toda a minha vida. Naquele mês de agosto do ano de dois mil e sete. Eu podia tocar a Morte. Podia sentir seus olhinhos brilhantes. Todavia minha hora não chegara. Foi só uma doce ilusão. Prefiro confiar no fato de que minha sobrevivência, idem à minha existência, foi um acidente. Mas havia algo a ser dito. O destino se escreve corretamente em linhas tortas. Definitivamente não era minha hora, para o meu infindável desespero.

Agora meu coração palpita doentio. Impassível. Continuo rabiscando com meus dedos epiléticos, num olhar vago e lacrimejante. Lembro-me dos meus amigos. Da minha família. Da minha mãe. Sentirão eles minha falta, ou todos se abraçarão em profundo alívio? Ou, quem sabe, em imenso prazer por minha partida tão repentina? E inválida. Perdoem-me aqueles que a esta carta lerem (ou ouvirem). Não digo por mal, muito menos por rancor. Absolutamente. A angústia grita perante minha tranqüilidade paralítica (tantos pronomes possessivos em um texto de alguém que possui tão pouco). E é ela quem me salvará. Quem me dará a coragem de ser tão covarde e correr ao abraço da mais bela das imortais.

A culpa é sua, mãezinha. Foi a senhora quem me ensinou a entregar-me pelo mundo. Pelo estúpido bem-estar de todos esses vermes famintos. E foi pensando neles que eu me esqueci... De mim mesmo! Inocentemente, aprendi a distribuir um amor vão. A minha mãe. A meus familiares. A meus amigos. A todas as minhas amantes. Um amor tão agradável, do qual nunca recebi átomos de sua reciprocidade. Não que eu vivesse esperando seu retorno. Acho que eu o entreguei demais. Acho que eu me entreguei demais.

Amor é suicídio.

O espelho - Capítulo 5: A simetria

David caiu para trás, com o susto.

A outra criança sorriu. Poderia ter gargalhado, ou até permanecer impassível. Mas ela sorriu.

O pequenino estranhou o ato e encarou seu reflexo. Havia ali algo estranho. Não diria estranho. Algo diferente. Deparou-se com uma linda garotinha de cabelos dourados. Seus cachinhos deleitavam-se sobre os ombros. Seus olhos brilhavam de tão verdes. Trajava um vestidinho branco, com bordadinhos cor-de-rosa. Admirado, David estendeu a mão e tocou o espelho.

O sorriso da garotinha era puramente encantador.

Com os dedinhos entreabertos, David tentava acariciar-lhe os cachinhos, tocar-lhe a pele rosadinha. Mas era impossível. Talvez não.

A pequenina, sorridente, enfiou a mãozinha delicada em seu bolso. E dali retirou um pequeno ioiô. Douradinho, douradinho. Uma combinação perfeita com seus meigos cachinhos. Há quem dissesse que era feito de ouro maciço, ou de qualquer matéria-prima que riqueza alguma pudesse comprar.

A menina estendeu-lhe a mão, agarrando levemente o brinquedinho. Contudo, David não conseguia alcançá-lo. Estava ali. Encarcerado.

Aos pés da pequenina, havia uma serpente. Amarelada como o sol ao meio-dia. Dançava por entre aqueles pezinhos delicados. David estremeceu. A menina sorriu. Aproximou a mãozinha direita daquele animal tão astuto, que lhe abraçou a mão, e logo se amansou entre seus ombros e pescoço. David foi aos poucos dominando seu asco. O olhar da serpente o deixava... Entorpecido!

Algo curioso acontecia no interior de David. Suava frio. Algo dentro dele o consumia. Profundamente. Sentia como se tudo o que lhe faltava estivesse ali. Do outro lado. Sua face queimava, avermelhando sua pele. Era o desejo. Nada em particular. Apenas o desejo.

Com um sorrisinho brotado no rosto, a pequena pôs as mãos naquela parede gélida e macia. David fez o mesmo. Assim, ficaram-se entreolhando. David. A garotinha. E a serpente.

Uma forte fragrância rompeu o instante. Não se sabia ao certo de onde vinha. Porém, era inegável o quanto ela era extasiante. Brotaram-se afetuosos sorrisos em ambas as faces. De olhos fechados, os dois pequenos selaram um beijo carinhoso. Os lábios tocaram a parede macia, num beijo frio, mas afetuoso. A pureza de ambos se unia de forma intocável. Paixão jamais houvera. Apenas o amor.

Envergonhados, puseram-se a gargalhar juntos, com as mãos nos lábios. David já agarrava novamente seu brinquedinho com a mão esquerda.
A serpente já não estava mais sobre os ombros da menininha. Nem em lugar algum do recinto.

Ouviram-se ruídos do lado de fora. As folhas das árvores balançavam freneticamente. Não parecia ser efeito do vento. E, de fato, não era.

Surpreendentemente, incontáveis corvos se puseram a debater contra as janelas. Berravam e se debatiam com seus olhos amarelados e famintos. As janelas pareciam resistir firmemente. Mas as criaturas não desistiram. Suas garras e bicos afiadíssimos eram armas infalíveis.

A madeira era quebrada aos poucos, lá fora. A luz já invadia novamente o sótão. Os bicos surgiam através da madeira incessantemente dilacerada.

As duas crianças permaneciam ali. Estáticas. Sem retirar em instante algum o sorriso de suas faces.

A nuvem negra de olhar dourado destruiu a janela inteiramente devastando tudo o que lhe vinha ao encontro. O chão, as paredes, as cortinas. Tudo aquilo parecia ausente a eles dois. Coberto o menino por aquela nuvem, o ioiô foi abandonado. Em suas bordas estava escrito seu nome, em letras azul-royal.

De mãos dadas, apoiadas sobre o espelho, os dois não cansavam de se olhar. Nem de sorrir.

David pereceu ali. Frente ao espelho. Devorado impiedosamente por aquelas feras...

O espelho - Capítulo 4: O espelho

Silêncio. Novamente silêncio. No recinto, nada ali existia. Não havia móveis. Não havia brinquedos. Não havia insetos. Apenas o garoto.

Apesar de vazio, algo o fascinou como nada o fizera outrora. A parede. Não, não era qualquer parede. Era aquela. Lisa. Fria. Macia. Gostosa de tocar. Mas o que era tão especial nela? Acontece, leitor, que essa parede era a mais bela já vista e sentida por David. Ela era um espelho!

Os olhinhos inocentes cintilavam com o que via. Como aquele lugar ficou maior! Correu. Precisava tocá-lo mais uma vez. E assim o fez. Freou. Espantou-se. David notou que ele não era o único presente naquele lugar. Quem era aquele garoto do outro lado que o observava? Paralisados, os dois se encararam. Desconfiados, se aproximaram cautelosamente. Com as cabeças inclinadas, se fitavam. Talvez o pequenino não entendesse que aquele outro garoto não passava de seu reflexo. Quem sabe, lhe significasse mais que isso. Mas sem dúvida ele o perturbava. E muito. Ele roubou-lhe a identidade. Cada traço de seu corpo. Seus olhinhos, sua boca, seus membros, sua roupa, sua expressão... É, sua expressão. David resolveu desafiá-lo.

Pôs a mão direita em seu rosto. O garoto também. Agilmente, lançou-a para o lado. O garoto também. Assim, pôs-se a movimentar desordenadamente seus braços, mãos e dedos, esperando que o estranho não conseguisse acompanhar sua incrível agilidade. Todavia, ele o acompanhou. Imitou os movimentos de David como se fossem seus. Como se os tivesse criado. Isso era intrigante.

Respiraram fundo. Juntos, deram um passo a frente. Pararam. Foi dado o segundo passo. E a segunda parada. David teve uma idéia. Uma idéia brilhante. Ele possuía algo que seu companheiro não poderia possuir. Seu ioiô! Ele era o único. Quem mais possuiria um ioiô laranja, com os mesmos arranhões e com as mesmas histórias para contar. Surge um sorriso. Um sorriso de grande... Satisfação! Sentiu-se vitorioso e, olhando nos olhos idênticos aos seus, foi enfiando sua mãozinha no bolso. O idêntico também o fazia, mas David sabia que do bolso dele nada sairia. Enganado, garotinho, muito enganado. Seu sorriso foi desaparecendo, à medida que avistava um cordão saindo do bolso de seu companheiro, entre os dedos. E lá estava o ioiô. Laranja. O pequeno não acreditou. Aproximou-se até ficar cara a cara com seu reflexo. No entanto, agora este não o interessava, como antes. Encostou seu brinquedo ao espelho, e os analisou, girando-o aos poucos em sua mão. Cada traço, cada defeito, cada arranhão. Era tamanha a fidelidade das características de um para com o outro.

O menino ficou impressionado a ponto de ficar irritado. Largou seu ioiô no chão e esmurrou o espelho. O seu companheiro também. Tentou mais uma vez. E outras inúmeras. Em vão. Para David, isto soou como uma provocação.

Encostou sua cabeça, ofegante.

Uma mão tocou-lhe suavemente o rosto...

O espelho - Capítulo 3: O vento

Por alguns segundos, David permaneceu estático. Observava a maçaneta prateada, imaginando o que haveria do outro lado. Sorriu. Finalmente decidiu abrir a porta e acabar de vez com a curiosidade que o dominava. Antes que tocasse o objeto prateado, a porta abriu sozinha. O menino arregalou os olhos e levemente abaixou suas delicadas mãos. Adiantou o pé direito e lentamente tocou-lhe os dedos da mão esquerda sobre o caixão da porta, esticando vagarosamente a cabeça a fim de enxergar o que havia naquele cômodo. Em vão. A escuridão era plena.

- David! David, meu anjo, por que você nunca me atende, meu filho? Eu já falei para você ficar lá embaixo comigo. – ouvia-se a voz da mãe e seus passos sobre as escadas

O garoto nem hesitou. Deu o segundo passo adentro do recinto e ali ficou por uns instantes, respirando o silêncio.

- Ai, meu Deus! – elevou Júlia o tom de voz – O que fazes aí nesse escuro, mãezinha?

Júlia, ao chegar ao segundo andar, observou o largo espaço que lá havia, e se apressou na expectativa de achá-lo em um dos dois corredores. Direcionou-se ao canto esquerdo. Bateu à primeira porta. Estava trancada. Avistou bem próximo às cortinas, um feixe de luz que ali brincava.

- Então queres brincar de esconde-esconde, não é, meu anjinho? – aliviou-se a mãe imaginando que o menino estivesse querendo ganhar sua atenção – Então lá vou eu.

No escuro, David retirou seu ioiô do bolso e se abaixou. Com a linha entre os dedos, deslizou cuidadosamente o brinquedo pelo chão. Não ouviu barulho algum. Engatinhando, foi seguindo o barbante, até encontrar o objeto, enroscá-lo com o fio e mais uma vez arremessá-lo.

A mãe, chegando à última porta, brincou, aumentando o tom de sua voz:

- Hum... Será que esse danadinho está aqui? Eu vou abrir a porta para descobrir...

A fechadura travou. Tentou girá-la e balançou a porta. Feriu levemente o polegar. Gemeu, sacudindo os dedos rapidamente.

- David, pára de brincadeira! Sai logo daí, que este lugar é perigoso, menino!

Após mais um arremesso, o ioiô atingiu algo próximo. Engatinhou novamente, seguindo o fio, e achou o que tanto desejava. Levantou-se, e como se fosse cego estendeu os braços aos poucos até tocá-lo. Apalpou. Era algo plano. Continuou o que fazia, caminhando para a esquerda. Tocou os ombros em algo macio. Resolveu tateá-lo, também. Parecia uma cortina. E atrás da cortina, uma janela. Uma janela de madeira, sem vidro algum. Retornou à parede, era gostoso tocá-la. Ao tocar em seus bolsos, lembrou-se de que havia esquecido o seu companheiro. Foi à sua busca. Caminhando, sentiu tê-lo chutado. Abaixou-se e não tardou para que ele o achasse. Ergueu a cabeça. Sentiu algo brilhante perante seus olhos. Era a parede macia. Ela brilhava. Não era um brilho qualquer. Era um brilho fascinante! Entorpecente. David permaneceu ali, entorpecido. Não sabia por que aquela parede brilhava, muito menos por que ela o fascinava tanto. Para ele, o porquê em si pouco importava. Não lhe interessava o saber, ao menos naquele instante. Interessava o sentir.

Levemente, as cortinas alisaram seu rosto. A luz que vinha da noite escondeu-se ali no sótão, e ao tocar a bela parede, refletiu-se ali e iluminou suavemente o pequenino. David se virou e abriu a cortina mais próxima, permitindo que a luz entrasse pelas frestas. Em seguida, fez o mesmo com as outras.

Suada, a mãe gritava. Preocupada, muito preocupada. Clamava o nome do filho, mas ele não atendia ao chamado. A porta insistia em não abrir.

Ali, no cantinho daquele cômodo, algo chamava a atenção. O pequeno se aproximou. Comprimiu os olhos, mas nada conseguiu enxergar. A luz ainda era insuficiente. O menino ficou intrigado. Resolveu abrir as janelas. Elas eram pesadas, mas com muito esforço ele conseguiu. O céu estava lindo. As estrelas fizeram-no lembrar do seu antigo quarto. Sentiu saudades. Só não sabia se isso era bom ou ruim. Uma brisa, dessas bem suaves, beijou seu rosto, fazendo-o sorrir.

Após muito insistir, a porta cedeu. Júlia aliviou-se um pouco. Ao olhar para a escada apressou-se. Subiu os degraus com passos apressados e no meio do caminho avistou mais uma porta, que estava semi-aberta.

Aos poucos, a força do vento crescia. As cortinas se agitavam cada vez mais. De braços abertos a criança fechou os olhos.

A mãe chegara ao topo da escada.

- David?

Impiedosamente, o vento adentrou o sótão. Violentamente, a porta foi fechada. Júlia foi arremessada para trás. Contra a parede. Caiu no chão em seguida...

O dia que (ainda) não terminou


Bem cedo percebi que já era tarde demais. Durante o pôr-do-sol, aconchegado em minha rede, sentindo à face a brisa das seis da tarde (era verão), cigarro entre os dedos, eu me dou conta de que cinqüenta e três anos se passaram. Sim. Cinqüenta e três anos. E lá se está indo mais um dia precioso. Precioso? Não me lembro de, durante minha infância ou adolescência, chamar meus dias de preciosos. Talvez fosse pelo fato de que provavelmente eu ainda teria muitos deles pela frente. Não havia por que se preocupar.

Minha infância foi a minha madrugada. Na escuridão, pouco se conhecia. Minha mãe acompanhava-me os passos, e cada passo era dado com enorme prazer, e cada pedacinho de chão pisado com meus delicados e inocentes pezinhos era uma grande descoberta. Meus avôs me observavam de perto, sorrindo.

Passei aos poucos a desejar imensamente o nascer do dia. Tinha grandes sonhos. Queria poder caminhar sozinho, correr sem ter medo de tropeçar. Possuía a confiança de que após cada tropeço eu me levantaria mais forte.

O dia insistiu e nasceu.

Com o chegar da aurora, minha mãe finalmente soltou as minhas mãos. Estava crescido. A luz acabara de chegar! Faltava descobrir se isso era bom ou ruim. Eu sabia que havia algum problema com aquela luz, só não conseguia explicar. Era novo demais para isso. Demorou um pouco até eu perceber que olhar demais para o sol machuca a vista. E nos desgasta profundamente. Ai, como desgasta! Toda a minha euforia foi-se transformando em decepção. Nada era como parecia ser. O jardim do vizinho sempre é mais florido, disse-me minha avó uma vez. Memorizei essa frase, só não sabia seu significado. Agora eu sei. E como sei!

Admito que aos trinta anos eu chorei sozinho. Desejei voltar à infância, à proteção da mãe, à casa dos meus avôs. A casa ainda estava lá. Mas eles não. O tempo, esse câncer maldito, os carregou. Por que chorar? A morte é inevitável. Após enxugar minhas lágrimas, abri os olhos. Fui surpreendido. Foi quando aprendi que o mundo não pára para que a gente se sinta melhor. Minha nossa! Como meus dois filhos cresceram! O mais novo acabara de passar no vestibular. O mais velho já estava se formando e pretendia se casar. Lembrei de todas as vezes que não dei atenção ao engatinhado dos meus garotos, e que recusei levá-los ao parque. E, mais uma vez, era tarde demais para se arrepender.

Ao entardecer, cada hora parecia mais curta. O câncer do tempo impiedosamente me envelhecia, meus cabelos embranqueciam e caíam. E lá estava o sol, que há pouco nascia em minhas costas, bem na minha frente. Mas sua luz aos meus olhos cansados não maltrata mais. E tudo começou a escurecer, novamente. Tudo isso me lembrou o começo. Porém, como uma criança eu me enganei. Era o fim. Você pode nunca ter percebido, mas o fim e o começo estão mais próximos do que você imagina.

Enfim, chega o crepúsculo. Estou trêmulo de frio. Trêmulo de medo. Medo do escuro. Feito um garotinho. O sol está afundando! Não posso ser engolido pelas trevas! Então eu corro, e corro, para alcançar o sol. Em vão. E consciente de que não vou alcançá-lo, eu desisto. Resolvo deitar em minha deliciosa rede, fumar o meu cigarro. Fumar a minha morte.

Pela manhã, aprendi que não existe bicho-papão. Logo vi que era engano. Ele apenas não é como eu imaginava que fosse. Confie em minha palavra, ele existe e o persegue por toda a sua vida. Cabe a você encontrá-lo e enfrentá-lo. Atente-se para o que eu disse. Enfrentá-lo. Não significa que você chegue a vencê-lo, pois é bem improvável que isso aconteça.

Aqui estou. Teoricamente confortado. Rede. Campo. Palmeiras. Cigarro. Mal sabe você o quanto é imenso o pavor que corre em minhas veias. Contudo, afogando minha depressão em música, aprendi algo que jamais esquecerei. É preciso encarar o diabo cara a cara, mesmo sabendo que ele sempre dará a última risada. O diabo. O bicho papão. O medo.

Sentindo o calor de dois lábios em minha testa, fico de pé e beijo carinhosamente minha linda esposa. Quem sabe este seja o último. Ou o penúltimo, talvez.

Num abraço, olhando para o horizonte no silêncio do crepúsculo, sinto o cheiro do delicioso jantar que está por vir, e os dedos quentinhos de minha mulher tocando minhas mãos entorpecidas. Pelo frio. Pelo medo.