O espelho - Capítulo 2: A escada

O manto da noite já vencia o Sol escondido entre as nuvens, que cansado ainda resistia bravamente, mas que mesmo assim adormecia, aos poucos. A chuva já havia parado quando Júlia e seu filho finalmente chegaram. Lá estava o novo lar. Como ele era belo e imenso! Vagarosamente, o jovenzinho saiu do veículo e pôs-se a observar detalhadamente o ambiente. A mãe, bastante cansada, orientava os homens que acabavam de sair do caminhão.

A lua cheia brilhava no céu coberto de estrelas. O menino, trajado com seu casaco azul marinho, observava na porta da casa, cautelosamente, cada ponto naquele manto negro, ligando-os em sua mente, formando desenhos variados. A mãe o chamava. Não conhecia direito aquele lugar, por isso era perigoso ficar do lado de fora, à noite. Todas as janelas foram fechadas. A porta de entrada também.

- Não quer ir dormir, meu anjinho? – disse carinhosamente a mãe, abraçando-o e o beijando no rosto.

O menino balançou a cabeça, negando. E se pôs a caminhar pelos cômodos, na companhia de seu ioiô laranja. A mãe, bastante cansada decidiu que arrumaria toda aquela casa, porque no dia seguinte desejava descansar. Os dois homens do caminhão de mudanças ajudaram-na com o trabalho.

Sentado no sofá recém colocado na sala de estar, David suspirava de tédio. Olhou para o teto. Levantou-se. Estava inquieto. Isso era raro. De certa forma a mudança de ambiente o afetou bastante. Onde estavam seus brinquedos? Seu quarto? As paredes azuis? O teto repleto de naves espaciais e estrelinhas brilhantes? Não havia mais nada daquilo, e isso o chateava. Chateava saber que não teria mais nada daquilo. Não como tinha antigamente. Tentou sentir o silêncio, porém não conseguiu. Não como o gostava de sentir. Aquele era apenas um silêncio abafado pelos passos, ruídos, cochichos. Nada que chamasse a atenção da consciência do pequeno rapaz. Uma escada! Sim! Uma escada! Enquanto seus pequenos passos perdidos passeavam pela sala de jantar, o garoto se deparou com uma bela e formosa escada. Tinha formato de espiral, degraus de mármore negro e belíssimas estruturas de madeira que sustentavam o corrimão, cilíndrico e detalhadamente dourado. Estava ali, no canto da sala de jantar, discretamente cativante. Apressou os passos e ao tê-la bem próxima a ele, pôs suas delicadas mãozinhas sobre o corrimão, e lentamente subiu degrau por degrau, analisando cautelosamente cada detalhe naquela estrutura que o cativara tanto. Em alguns segundos já estava no andar de cima. Após o último degrau caminhado, Abriu seus braços e respirou fundo. O menino se deu conta de que a presença do silêncio estava mais forte. Notou a grande diferença. Os ruídos ainda resistiam bravamente, porém estavam fracos. David deu um passo. O piso lá encima era de madeira. Um forte e breve barulho estilhaçou o precioso bruscamente. O garoto assustou-se, tremendo involuntariamente.

- David? O que faz aí em cima, meu filho? Desce já daí. – reclamou a mãe, ilustrando os móveis da sala.

Ela foi ouvida, porém não foi atendida. Foi-se dado o segundo passo. Lentamente. Sorrindo, o jovenzinho sentia que no final do corredor o silêncio absoluto o chamava, guiando-o passo a passo. Sentia-se quase que flutuando pelo corredor escuro. As trevas não o assombravam. Lá no fim existia uma janela, coberta por cortinas transparentes, o que não deixava o corredor tão tenebroso. Feixes de luz. Sim. Atravessavam a janela e tocavam delicadamente as paredes amarelas. Portas. Quatro portas. Duas do lado direito, duas do esquerdo. Portas de madeira, magnificamente molduradas. Provavelmente atrás de uma delas estaria seu futuro quarto. Tentou abrir a primeira à esquerda. Estava trancada. À direita? Idem. Assim como as outras duas. Olhou para trás. A cena era idêntica, numa simetria quase perfeita, se não fosse o fato de que a cortina do outro lado estivesse levemente rasgada. Corredor. Portas. Janela. Cortinas... Nada de mais. Mas esperem! Os feixes de luz lá no fim entregam ao rapazinho e conseqüentemente a ti, leitor, o fato de que existe uma última porta, no lado esquerdo. Ela foi vista. David ficou surpreso. Sorriu. Não havia se enganado: era para lá que o silêncio o guiava. Escorregou. O piso de madeira deslizava. Lá estava a última porta. Diferente das demais. Não era moldurada, nem envernizada. Era cinza, sua fechadura estava gravemente enferrujada. Era capaz de sentir o cheiro da ferrugem a certa distância. Certamente, naquele cômodo encontrava-se algo não muito utilizado pelo antigo dono da casa. O que seria? Um sótão? Provavelmente. Moveu a fechadura. Também estava trancada? Tentou de novo. A porta abriu, rangendo. Escuridão. Plena escuridão. Foi avistado um interruptor. David o apertou. Uma lâmpada acendeu. Escada. Uma nova escada. De cimento. Mau cheiro. Muito mau. Lugares que permanecem abafados por um longo tempo não tendem a cheirar bem, lembremos. Observando o lugar estreito, em que se tinha como fim uma parede, o menino notou a existência de mais uma passagem, agora no canto direito. Espirrou, assustando-se com o som do próprio espirro.

- David! Desce daí, meu filho. Já falei com você! Venha! Vem dormir...

Novamente não deu atenção à mãe. Suspirou. Aos poucos se foi adaptando ao odor do ambiente. E mais uma vez. Ele e uma nova porta. Semelhante à última, porém, a fechadura desta estava em bom estado de conservação. Quem sabe fora recém colocada. Desta vez, ele entrou facilmente. A porta junto à escada bateu. A mãe gritou seu nome. Ele não respondeu. Ela resolveu subir para ir buscá-lo...

Resposta


Trêmulo e gélido
Na esperança de que a noite,
Este manto que me cobre de solidão,
E inevitavelmente me adormece,
Me aqueça... Ponho-me a admirar
Cada ponto cósmico.

Estrelas, meu caro! Apenas estrelas!
Soa-me a tua voz.
Fosse anteriormente uma tarde de sol,
Teu lamento contentar-me-ia! Talvez...
Mas a chuva, lágrimas da alvorada,
Derrama sobre mim seu doce abraço,
Que junto ao meu silêncio
Desenha o infinito entre as linhas
Desta humilde folha de papel perdida.

Calado, tu apenas me observas.

O que vês? Tu me interrogas!
Nada. Tens razão. Nada!
Quem dera poder acreditar em meus sonhos
Soltos... Ao avesso... Quem dera...
Mas eu sou o filho do ceticismo!
Aquele que foi amaldiçoado pelas trevas da dúvida!
Fosse eu um bastardo, talvez não possuísse tantos desejos.

Desejos? Quem me realizá-los-ia?
O tempo. Afirmas.

Oh, tempo! Leva-me em tuas asas, desgraçado!
Mostra-me o caminho de volta pra casa!
Mas eu não tenho casa.
Toca-me com tua frieza e clama meu nome!
Mas eu não tenho nome.
Sou foragido deste universo sem mundo. Sem dono.
Deste poço sem fundo! Afoga-me!
Sou um pobre caçador de sonhos extintos...
Apenas me leva! Sem ressentimento.
Envelheça-me. Ou me esqueça! Se puder...

O espelho - Capítulo 1: A casa

Para a maioria das pessoas, aquele sábado de julho era mais um dia comum. Mas para o pequeno David era um dia diferente. Era um dia de mudanças. Assim como grande parte das pessoas, David não gosta de mudanças. Naquela tarde o garoto mudava da zona sul da capital para uma bonita e espaçosa casa no campo. Não era bem o que ele desejava, mas tinha em mente que independentemente de sua vontade teria de ser assim. Portanto, aceitou calado as decisões dos pais, que estavam se separando.

- Vai ser melhor assim, meu bem. – disse sua mãe, carregando algumas sacolas, ao perceber que seu filho parecia chateado.

Não era apenas aparência. O menino estava sentado no canto da sala vazia com os braços cruzados e com o olhar centrado no vago. Não queria sair dali. Tinha o receio de não encontrar diversão alguma no campo. Apesar de não ter amigos na rua onde morava, era gostoso viver ali. Amava seu quarto! Seu pequeno cômodo, suas paredes azuis, o teto enfeitado com estrelinhas brilhantes e naves espaciais... Enfim, aquele seu mundinho. Porém, como eu já havia dito antes, tudo aquilo ficaria apenas em sua memória, a partir daquele dia.

No fim da tarde tudo já havia sido colocado no caminhão de mudanças. O garoto não estava mais ali, no canto da sala. Estava estático, na porta de seu quarto, despedindo-se de seu antigo passatempo. A mãe o chamou, observando-o no início do corredor. Ele permaneceu ali por alguns instantes, enxugou uma lágrima que escorria por sua delicada face e se retirou. Veio ao encontro de sua mãe, que o abraçou e juntos foram para o carro. Todas as janelas fechadas. Já estava escurecendo. Enquanto a mãe trancava a porta de entrada da casa, a criança, agora dentro do carro, continuava admirando o que era seu lar, com os olhos avermelhados, brilhantes. A mãe entrou no carro. O veículo acelerou.

David não era uma criança comum. Ele se sentia bem sozinho. Era de sua preferência. Gostava de sentir o silêncio ao lado de seus brinquedos. Passou grande parte de sua contínua infância dessa forma. Às vezes ia à rua girando seu ioiô à companhia de seu tio predileto. As crianças o chamavam para brincar. Ele sempre recusava. Queria estar ali com seu tio, apenas. Sentia-se diferente das crianças de sua idade. Ele não sabia dizer o porquê. Na verdade ele não dizia. Não gostava do ato de dizer. Não me refiro apenas a seu comportamento em relação às crianças. Falo dizer de qualquer modo. O ato de dizer em si. Para ele falar causava a quebra do silêncio. Mas ele amava o silêncio. Sorria ao sentir o silêncio! Creio que não há mais dúvidas de que David não era, digamos, uma criança de oito anos qualquer.

O caminhão de mudanças ia seguindo o carro de Júlia. A chuva fina, destas que molham aos poucos, caía sobre aquela cidade. David observava o movimento incessável do limpador do pára-brisa e a janela lateral embaçando aos poucos. Passeando seus dedinhos na vidraça, o menino escrevia seu nome. Procurava-se entreter de alguma forma. Ainda pensativo, despedia-se da antiga casa em seus pensamentos. Tinha a forte impressão de que detestaria o novo lar. Em alguns instantes, David cansou de escrever seu nome e resolveu admirar a paisagem. Via as montanhas bem distantes. Sorriu. Era amante da natureza...

Ei, tu!


Ei, tu!
Aí fora, no frio
Sozinho, envelhecendo...
Podes me sentir?

Ei, tu!
De pé, no corredor
Pés sarnentos, sorriso fraco...
Podes me sentir?

Ei, tu!
Não os ajude a enterrar a luz!
Não te entregue...
Sem ao menos lutar!

Ei, tu!
Aí fora, tão na tua
Sentado, nu, ao telefone...
Tu me tocarias?

Ei, tu!
Com o ouvido contra o muro
Esperando alguém te chamar,
Tu me tocarias?

Ei, tu!
Tu me ajudarias a carregar a pedra?
Abra seu coração!
Estou indo pra casa!

Mas era apenas uma fantasia!
O muro era alto demais
Como podes ver...
Não importa o quanto ele tentasse
Ele não se libertaria!
E os vermes comeram seu cérebro...

Ei, tu!
Aí fora, na estrada,
Fazendo sempre o que te mandam!
Tu me poderias ajudar?

Ei, tu!
Aí fora, além do muro
Quebrando garrafas no corredor,
Tu me poderias ajudar?

Ei, tu!
Não me diga que não há mais esperança!
Juntos nos erguemos!
Divididos, caímos...
Caímos!
Caímos!
Caímos...

(Hey, you! - Pink Floyd)

Tempo


Vão passando
Os momentos que compõem
Um dia sem graça
Você fragmenta e desperdiça
As horas deliberadamente
Vendo o tempo passar
Num pedaço de terra
Em sua cidade natal
Esperando alguém ou algo
Que lhe mostre o caminho

Cansado de ficar deitado
Exposto à luz do sol
E de ficar em casa
Observando a chuva
Você é jovem
E a vida é longa
Há tempo para matar hoje
Até que um dia
Você percebe
Que dez anos se passaram
Mas ninguém lhe avisou
Quando correr
E você perdeu a largada

E você corre e corre!
Para alcançar o Sol!
Mas ele está afundando...
Ele também tem pressa
Para nascer atrás
De você de novo

O Sol é o mesmo,
De uma forma relativa,
Mas você está mais velho!
Tem menos fôlego
E está mais perto da morte!

Cada ano que passa
É mais curto
E você nunca encontra tempo!
Planos que sempre dão errado
Ou meia página
De linhas rabiscadas...
Viver em secreto desespero
É o jeito inglês...
Agora o tempo se foi,
A música acabou
Mas ainda há uma coisa
A ser dita...

Casa!
Novamente em casa!
Eu gosto de estar aqui
Quando posso
E quando volto para casa
Com frio e cansado
Gosto de aquecer meus ossos
Perto da lareira...

Lá longe, do outro lado
Do descampado
A badalada do sino de ferro
Faz os fiéis se ajoelharem
Para ouvir os feitiços ditos
Em palavras suaves...

(Time - Pink Floyd)

Presente do Destino


Enquanto eu afogo minhas mágoas
Em sonhos, beijos e livros...
Passando as mãos sobre o relógio
O tempo te faz-me esquecer

Silenciosamente aflito
Ajoelhado, beijo tuas mãos
Mas o despertar de tuas pálpebras,
No resistir das trevas contra feixes de luz,
Como um imenso abismo entre nós,
Em nos afastar insiste

A angústia, flor de ingratidão,
Com minhas lágrimas correndo em seus pulsos
Cortados por afiados punhais
A tristeza impiedosamente rega.

Como um tenebroso castelo
O desespero sobre meu peito constrói-se
A cada anoitecer, quando lembro
Do dia em que pela última vez
Encontraram-se nossos braços
E no ardor do último abraço
Um anjo maldito nos separou!

E sobre meu túmulo,
Sentado à tua espera,
Lavando-me a alma
A chuva sobre minha face escorre
Sobre minha face desenhada
Pela inútil esperança...