Eram sete horas da manhã quando o
telefone tocou. Mamãe atendeu. Era Papai. Arrume-se, seu pai está chegando.
Aquele seria um dia especial. Não por ser dia doze de outubro daquele ano de
2002, mas porque o garotinho passaria o dia com o pai. O destino era a espaçosa
casa de seu primo, no coração de um povoado situado na cidade vizinha onde
moravam. E era Dia das Crianças, e ele passaria com o Papai.
Papai e ele ficaram muitos anos
afastados, após o fim do casamento com a Mamãe. O garoto de treze anos, apesar
de não mais ser criança (embora sua mentalidade infantil acusasse o contrário),
ainda não compreendia porque pai e filho ficaram separados no período
compreendido entre seus cinco e onze anos. Durante a infância, indagou algumas
vezes a Mamãe e a Vovó, mas elas nunca lhe responderam.
Certa vez, aos oito anos, o telefone
tocou. Era cedo da noite. O menino atendeu. Ouviu uma voz de homem no outro
lado da linha, que não quis se identificar; do contrário, brincou de jogo da
adivinhação. Ele sabia que era Papai, mas ele não quis revelar porque talvez se
o fizesse, a ligação se encerraria, pois a brincadeira teria acabado. Por isso
ele entrara no jogo durante toda a ligação, com o único intuito de manter Papai
ali por perto, ainda que fosse apenas através da sua misteriosa voz.
Ao se lembrar disso, teve uma brilhante
ideia após o rápido café da manhã: vou gravar uma fita para o Papai. Assim, ele
poderá me escutar assim que quiser, como gostaria de tê-lo escutado naquela
ligação surpresa por diversas vezes em sua infância.
A mochila já estava pronta, o banho já
estava tomado. É hora de gravar a fita para o Papai. Sentado no chão da sala, o
garoto começou a planejar o que falaria para ele. Já sei, pensou. Piadas. O
menino era ótimo em contar piadas. Assim, toda vez que Papai estivesse triste,
ele ouviria as piadas e riria, e ficaria feliz ouvindo as divertidas anedotas,
e a sua voz. E assim o fez. Piada de papagaio? Não, muito manjada. A piada do
chinesinho? Não, muito sem vergonha. Já sei, piadas de escola.
- A professora estava na sala e pediu
para Joãozinho conjugar o verbo andar. E Joãozinho começou: Eu ando... Tu
andas... Ele anda... A professora, vendo que o aluno estava
demorando a responder, apressou: Mais rápido, Joãozinho! Mais
rápido! E Joãozinho prontamente continuou: Está bem, professora: Eu corro... Tu
corres... Ele corre...
Ao concluir a piada, ele caiu na
gargalhada, rolando sozinho no chão da sala. Viu só essa, Papai? Muito boa, não
é? E continuou contando todas as piadas que sabia. Exceto a do chinesinho,
claro. Ao concluir sua fita surpresa, deitou no piso branco da sala de estar, e
pôs-se a lembrar do cheiro gostoso do campo, das brincadeiras com o primo, do
jogo de futebol com as crianças do povoado. Que dia maravilhoso! Será o melhor
Dia das Crianças de sua vida.
É hora de almoçar, seus irmãos já estão
comendo, ouviu Mamãe chamar. Não vai dar, Papai já está chegando.
O relógio apontava na parede do centro
da sala meio-dia e vinte e três. Ainda deitado, pôs-se a imaginar o trajeto que
Papai faria de sua casa no centro da cidade até a avenida onde ele morava com
seus irmãos e a Mamãe. Apostou consigo mesmo que meio-dia e meia o interfone
tocaria, e o porteiro avisaria a chegada do Papai, que certamente teria
atrasado porque fora comprar seu presente do Dia das Crianças. Foi um gatilho
para sua imaginação: o que seria? Um jogo de futebol de botão? Não, já sei. Uma
fita de Super Nintendo. Ou seria a bicicleta com que ele tanto sonhava? Ou
talvez um skate, ou quem sabe o Jogo da Vida, Banco Imobiliário ou qualquer
jogo de tabuleiro para jogar com os amigos do condomínio.
Meio dia e meia, o interfone tocou. O
menino saltou e correu para atendê-lo. Meu irmão? Está sim. Vou descer mais
tarde, respondeu o irmão. Estou almoçando. Era algum dos amigos do seu irmão mais
velho, chamando-o para jogar videogame, provavelmente. O menino voltou para o
centro da sala, e sentou em frente ao aparelho de som, segurando a fita que
gravou para Papai. Será que dá tempo de gravar mais piadas? Melhor não. A fita
ficou tão divertida, é bom evitar fazer qualquer alteração que pudesse
estragá-la.
O silêncio do descanso após o almoço
passou a incomodar. O sol passeava pelo chão, teto e paredes da sala, mas ele
permanecia ali, imóvel. Papai está chegando.
Ali na sala, o telefone tocou. Antes
que ele sorrisse, uma voz surgiu logo atrás de si. É para mim, disse sua irmã
mais velha. Ainda assim, ele atendeu, eufórico. Sua irmã está? Desapontado, ele
repassou o telefone para ela e voltou para perto da fita de Papai. Todos os
sábados, às quinze horas, o namorado da irmã ligava para ela. Ligações eram
mais baratas aos fins de semana, e eles aproveitavam o horário para conversar
aquelas coisas de casais apaixonados que ele ainda era pré-adolescente demais
para compreender.
O sol já se despedira da sala quando a
irmã desligou o telefone. O garoto permanecera ali, sentado, segurando com
carinho a fita cassete preta que gravara contando as piadas engraçadas para o
Papai. Mas o riso ali já não existia mais. Ele estava sério, silencioso e
pálido como o Sol que já se punha.
Dezessete horas. Mamãe se aproxima.
Venha comer, filho, você não almoçou nada. Ele não virá mais. Ao tocar o filho,
sentiu-o quieto, tímido. E quente. Ele não virá mais. Estava silencioso, triste
e febril. Ele não virá mais. Em seu rosto, não havia mais riso. As piadas já
não pareciam ter mais graça. Ele não virá mais. Nas mãos, a fitinha preta,
cheia de amor, e riso, e carinho, e esperança, e inocência, e alegria. Ele não
virá mais.
O menino guardou a fita no armário da
sala, em silêncio. E levantou-se, enfim, atendendo ao pedido de Mamãe.
Atravessou o corredor em direção ao quarto, deixando no chão da sala sua
mochila cheia de expectativas.
No corredor, mãe e filho se
encontraram. Não fique assim não, viu? Em meio ao silêncio, um abraço. Um
silêncio fúnebre ao som e à luz do fim daquela tarde de sábado do Dia das
Crianças. Um silêncio, desses que sucedem uma partida. Mas naquele dia, ninguém
havia partido. Apenas Papai. Papai partiu um coração.