O espelho - Capítulo 9: O rio

Guardou-o nos braços, abraçando-o cuidadosamente. Em seguida, saiu caminhando com o objeto protegido sob seus bracinhos, como um pai carregando uma criança no colo. Desceu as escadas, apoiando-se nas paredes tomadas pela escuridão. Mal olhava para frente. Apenas para o pequeno ovo. Após incontáveis degraus, sentiu um leve brilho, provindo de alguma fenda que acidentalmente deixara escapar a luz. Era uma saída. Havia, no fim do corredor, uma porta. Uma porta fechada. Não diria trancada, mas fechada.

Chegando à porta, David a tocou com a mãozinha esquerda. A porta rangeu. Um feixe de luz doce como a bruma tocou-lhe os olhinhos miúdos, que bruscamente se fecharam. Aos poucos, suas pálpebras brotaram junto a um sorriso. Seus pés tocaram a grama. Seus olhos tocaram o céu. Lá havia um incêndio. Não havia fogo. Não se ouvia gritos. Não havia desespero. Mas era um incêndio. Uma grande mancha vermelha sangrava o azul celeste, que se cobria de nuvens brancas, róseas e alaranjadas. Não digo que o vermelho contrafazia a pureza daquele céu tão divino, nem que ele perdia aos poucos sua inocência, como as mocinhas ao atingirem a puberdade. Digo muito menos que o vermelho sangrento o enfraquecia, ou que o fervor daquele fogo ardente o consumia até se desmanchar em profundo cosmo negro adormecido... Contudo, eu não diria também que ali os anjos festejavam a vida, derramando sobre o céu o mais saciável dos vinhos. O céu, pequeno David é um universo de significações indecifráveis. Significações que se reduzem ao conteúdo de nossos conceitos. De nossa consciência.

David apenas sorria. Com motivo, ou não. Não importa, era um sorriso!

E lá estava o sol. Oh, Rei Sol! Que fazes aí coberto de nuvens? O que temes? Tu, que ocupas o centro do universo, que vence a noite a cada aurora, e a liberta a cada crepúsculo... Por que te escondes? Tu que dominas o fogo, que te livras do pecado. O fogo que te guarda a imortalidade... Por que sangras? E o Rei Sol nada respondia...

Cada passo dado do pequenino em grama verde era um novo sentimento despertado pelos mistérios do céu que se transformava! Do Sol que entre nuvens se aconchegava. Que se preparava para anoitecer. Todavia, algo curioso estava acontecendo. O sol. Sim, o Rei Sol. A majestade do universo, desde então, se detinha há algumas horas ali, no meio do céu. Como se não se apressasse, pois, a pôr-se quase um dia inteiro.

David sorriu para o sol, agradecido.

David peregrinou a esmo entre os arbustos. Até encontrar uma bússola. Estava ali no chão. Esquecida. Era velhinha, velhinha. Suas bordinhas douradas eram cobertas pelo tempo e pela terra. E parecia quebrada. Ela só apontava para uma única direção. O Norte. Por mais que David a girasse, ela sempre apontava firmemente para o Norte... E não havia quem a fizesse mudar de direção. David foi vencido pela insistência. Porém, agora ele possui uma direção. Um objetivo. O Norte. E é para lá que ele vai. Para as formosas montanhas que cobriam o horizonte. Desejava encontra um rio. Seja ele qual fosse. Só gostaria de encontrar um rio. Ainda que ele não existisse entre as montanhas...

Assim, David foi à busca de águas límpidas. Antes que fosse tarde de mais. Antes que o Sol acordasse. Antes que se passassem dezoito dias e dezoito noites.

3 comentários:

Gustavo Monteiro disse...

Sen dúvidas o melhor capítulo! enigmático, bucólico, simples...
"O céu, pequeno David é um universo de significações indecifráveis. Significações que se reduzem ao conteúdo de nossos conceitos. De nossa consciência. "
Quem dirá o céu da boca...
ficou mt mt foda!
o conto está melhorando, é fato .
A cada post, a cada título, a cada frase, porque mão?!
Mas ficaria mais interessante se, ao menos enquanto ainda é virtual, serem adicionadas fotos.
farse manjada, mas que é digna de se terminar um comment: Espero escrever um dia ao menos semelhante a vc!
meu "espelho" hauhauhauah
abraçooo o/

Anônimo disse...

Bom saber que enquanto muitos procuram o mistério onde não há, ou mesmo o concretizam por pura vaidade, há alguém que amiúde desvenda o mistério mais intrigante, dentro de si.

Não te dou parabéns, pois soam superficiais demais para a admiração que tenho por obras-primas. Quem sabe em latim soe mais sincero...

Gratulationes, magister.

É fácil pensar, refletir, idealizar. É uma virtude do ser humano.

Mas é virtude de poucos a ousadia de traduzir isso através das melhores palavras.

Yo!

Anônimo disse...

Caramba! Já tem 5 dias da minha última resenha crítica?! O.o Fui desleixado... Mas vamo lá então...

Capítulo 9, o Rio: Este é mais um capítulo alucinado com metáforas... Eu pensava que David tinha voltado pra casa, mas pelo visto ele foi para o "fantástico mundo de bob", com seu ovo da smoochum (pré-evolução da jynx - vide google images) e um sorriso no rosto (porque a única coisa que ele faz nesse capítulo é sorrir!)

Mas então eis que ele encontra uma bussóla! Momento contraditório aí... Ele sabe o que é uma bússola, mas acha que ela tá quebrada?! Pelamordedeus! O que ensinaram a ele que era uma bússola?! Um reloginho diferente?! Se é uma bússola, por definição ela aponta pro norte! Guri asno... E pensar que eu já chamei ele de gênio por causa do lance com o ioiô num dos primeiros capítulos... =P

Tá, e aí no final ele "desejava encontrar um rio. seja ele qual fosse. só gostaria de encontrar um rio. ainda que ele não existisse entre as montanhas"... Eu obviamente já sabia que ele encontraria, afinal, o nome do capítulo é o Rio! Glu glu yeah yeah!

Mas aí vem o momento: "Antes que se passassem dezoito dias e dezoito noites". Por que, meu deus, eu me pergunto?! Por quê?! O que acontecerá daqui a dezoito dias e dezoito noites?! Fica para o próximo capítulo...