Prefácio de uma identidade análoga

Era um dia quente quando, debaixo de um bruto sol matinal ao fim do ano de 2003, encontrei um espelho. Velho, sujo, um pouco descascado. Mas era um espelho.

Concentrei-me naquele pequeno pedaço de vidro sem valor. Mal conseguia eu enxergar-me.

O curioso é que, por mais absurdo que pareça, eu jamais conseguiria me enxergar nele. Não pelo fato de que ele era pequeno ou velho. É porque aquele pedaço de vidro me mostrou um garoto branco feito um pedaço de papel, com olhos verdes e cabelo encaracolado.

Não é um espelho, concluí. É um porta-retrato. Como posso ser tão distraído? Ri comigo mesmo. Mas não era um porta-retrato. Nem um espelho (deixo bem claro que tudo o que eu penso sobre espelhos já foi revelado outrora). Era apenas um pedaço de vidro transparente e maltratado. Um caco que me transferiu ao passado. Como um porta-retrato. Como um retrovisor. Contudo, era um passado que se fazia presente aos meus olhos! Detrás de um pedaço de vidro! Lá havia um garoto. Um nome. Uma identidade. Esta que logo descobri ser análoga à minha. Alguns anos mais jovem. Porém, com alma tão sábia e ousada quanto a minha. Seu nome era Caio. Primeiro estranha-se. Depois entranha-se.

Nome legal, pensei.

- Caio de quê?

- Caio Monteiro. – sorriu.

- Monteiro Lobato? – brinquei.

- Não, não. – riu aquela risada para não desfazer a amizade que nem se formara. – Mas eu bem que gostaria.

Bobagem! É só um sobrenome. Garanto que a ausência do Lobato em seu nome até que lhe fez muito bem. Quem sabe se tal sobrenome ali estivesse, mais tarde, ao descobrir-se na Literatura, por puro capricho ele tentasse pelo resto de sua vida tornar-se uma réplica do nosso gênio pré-moderno? Monteiro Lobato é Monteiro Lobato, e nada nem ninguém pode repetir seu feito. É como correr atrás do vento. Não precisamos de mais um Monteiro Lobato. Este já é completo por natureza.

Após a conversa, por falta de cuidado deixei derrubar o pedaço de matéria inorgânica. A força da gravidade foi tão inevitável quanto a força dos anos. Seis anos e alguns meses se passaram.

Não tardou até que eu chegasse à gloriosa conclusão de que por mais que o passar dos anos fosse nos tornando cada vez mais semelhantes, nossa identidade revelava-nos cada vez mais distintos.

Algumas vezes trocamos de identidade. Foi nessa viagem que eu conheci a humilde parteira e ele a Esmeralda. Foi injusto, eu sei. A parteira teve uma segunda chance. Esmeralda não. Não sei explicar se foi devido à diferença de época entre as duas, só sei dizer que foi assim. E sempre será. Por mais que a gente volte atrás. As páginas não podem ser modificadas a não ser por si mesmas. E se não podem; o mundo, regido por elas, continua sempre o mesmo.

Tornamo-nos bons e verdadeiros amigos. O primeiro passo para que as coisas aconteçam é acreditar nelas, e permitir que elas existam. E nossa amizade cresceu de forma que se tornou algo inexplicável. Uma poesia pirata escondida entre as coxias e o palco. Por isso não teimo em explicar, prefiro me lembrar dos fins e dos meios que de tanto um dia me serviram. Inexplicável o suficiente para se tornar um espetáculo. Sem platéia. Sem elenco. Um monólogo, talvez. Mas um espetáculo. Como o paradoxo dos nossos dias. Amizade fluida como a água. Misteriosa e essencial.

Quem sabe um sujeito oculto. Implícito, como queiram chamar. Aquele que pouco encontro. Raras, preciosas vezes. Mas que facilmente identifico pelo rastro inconfundível de suas nostálgicas palavras.

We will never walk alone.

Num dia frio, eu descobri que Caio possuía um segredo. Ele o guardava na ponta dos dedos, e, quando estava comigo, debaixo da língua para não escapulir em uma conversa. Porém, certa vez eu o encontrei escondido entre as páginas de um livro que ele escrevia. O segredo estava numa ponta de pena. Ou numa pena sem ponta? Tanto faz. O que importa mesmo é que Caio é um alquimista! Sim, um alquimista. Capaz de transformar palavras soltas e ao avesso em tão precioso ouro para minhas retinas tão fatigadas. Em um prazeroso amargo para a língua. Em um gostoso abraço na solidão. Capaz de transformar a si mesmo, na sua condição de ser humano, pertencente à raça tão pavorosamente desprezível, em alguém tão sobre-humano de fantástico! Definitivamente um alquimista.

Perguntei-lhe a fórmula de arte tamanha. Ele respondeu que apenas queria escrever diferente. Que os pontos e as linhas se comunicassem internamente, assim como se comunicam o vento e as palavras. Como um tecido. Contudo, a alquimia só durava por um dia! E assim então Caio se reinventaria só para morrer de novo como o mais digno dos versos mortos antes de ele nascer.

Ainda hoje brincamos de mediocridade!

Por fim, hoje encontrei em minhas lembranças um pedaço de vidro velho e inválido que me pareceu bastante familiar. Olhei novamente através dele. E vi que o garoto não estava mais lá. Repentinamente bateu-me uma tristeza, pois aquele objeto subitamente perdeu todo o seu valor. Mas imediatamente sorri ao ver que ele se tornara gigante de mais para ser visto por completo através de um artefato fosco e sem valor.

Caio encontrou seu amor em pó, solúvel. E foi morar entre as páginas de um livro. Um livro sem nome. Um livro sem capa. Um livro sem cor. Não hesitarei em descrevê-lo. Não hesitarei em rotulá-lo. Ainda tenho muito tempo para agradecer por tudo o que acontece ao meu redor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caramba!
Foi uma puta homenagem...
E eu acho que te descreveria da mesma forma.
(Ouvi dizer que Tolkien e C.S.Lewis eram bem amigos...)


Esses dias eu vi um espelho passeando pela rua - sim ele estava a passear - não me contive, e me olhei! Me senti estranho, depois pequeno... O espelho refletia a rua, o sol, os carros, todas as vidas e fragmentos de realidade que por ali se encontravam!
Eu era um oitavo do que nele se espelhava e quando percebi a sua real grandiosidade virei o rosto e voltei a caminhar, apenas.
Sim, vc é esse espelho!
Infinitamente maior...
Obrigado por essa oportunidade de me fazer ler a mim mesmo, e te ler... porque nao?

P.S.: Eu ainda nao li "O Espelho"

Gustavo Monteiro disse...

P.P.S.: We never walk alone! Never.