O espelho - Capítulo 6: A Borboleta

Doce silêncio. O garoto ali se recostava. Sentia frio. Sentia fome. Sentia medo. Mas estava ali. Bem ali. Adormecido.

Mas de repente, não mais que de repente, seus leves sonhos e suspiros se romperam, trazendo-o à realidade.

Estava ofegante. Bastante ofegante. Assustado, arrastava-lhe os dedos sobre a parede à procura da luz. Permaneceu ali, por alguns instantes. Tremia, ainda que aliviado. Pôs-se de pé, ajudado pela parede fria e empoeirada. Tropeçou. O chão acabara ali mesmo. Soluçou, com o susto. Mas calma. A alguns centímetros dali, havia mais um pedacinho de solo. Optou por ficar paralisado. Ainda que forçasse a vista, de nada adiantava. Enfiou a mão esquerda no bolso, enquanto a direita apalpava a parede. Retirou dali seu precioso ioiô. Apôs prendê-lo ao dedo pela ponta do cordão comprido, arriscou lançá-lo, concentrando-se no som propagado pelo brinquedinho.

- Zip! Tac! Tac! Zom, zom! Tec! Zum, zum! Toc! Zum... Tuc... Tuc... Tash...! ...! ...! – imitou baixinho o menino, o caminho percorrido pelo objeto.

Coçou a cabeça, pensativo. E disse, sussurrando.

- Cordão! Bate! Bate! Vai, vai! Bate mais fraco! Vai, vai! Bem mais fraco! Vai... Bate baixinho... Baixinho... Pára! ...! ...!

Como se fosse um maestro, David dançava-lhe os dedinhos pelo ar, concentrado.

- Uma escada! – ergueu sorridente o dedo indicador

Enrolando o cordão nos dedos, o garoto ia descendo os degraus pacientemente. Parou. Capturou o objeto, devolvendo-o ao bolso. Estendeu a palma da mão direita, tocando em algo áspero e plano. Foi descendo as mãos. Subindo. Descendo. Caminhando-as aos poucos para a esquerda. Subindo. Descendo. Subindo...

- Achei. – sorriu.

Perante seus olhinhos cegos, encontrava-se a saída. Em suas mãos, sentia a maçaneta. Seu olfato captava um odor forte provindo de ferrugem. Sem muito esforço, abriu a porta. Estava livre. Ou não.

Abrindo a porta, a luz atingiu-lhe como uma espada, os olhos indefesos. Cobriu-os com as mãos, erguendo lentamente suas pálpebras. Um pano suave tocava-lhe o rosto, acompanhado pela luz do sol. Já era dia.

Espreguiçou-se. Deu três passos e bocejou. O piso de madeira deslizante brilhava. O garoto não havia percebido anteriormente que aquele ambiente era tão belo. Tão pacífico. Direcionou-se ao outro lado do corredor. Deparou-se com algo que o fascinou. No topo do corrimão, sobre tão elegante detalhe esférico e dourado, habitava uma borboleta. Não era um coelho. Não era uma coruja. Era uma borboleta. Azul, com sutis detalhes negros, nas bordas das asas. Chamá-la de fascinante seria uma ofensa. Como pode um ser tão pequenino abrigar tamanha beleza?

David aproximou-se, maravilhado. O ser divino espantou-se, batendo suas asinhas e escorregando alguns centímetros sobre o corrimão. O pequenino preferiu deixá-la em paz. Tornou a seguir em frente pelo corredor. Foi surpreendido. Uma nova borboleta, idêntica à outra, pairava sobre ele. Dançou, dançou e pousou, ficando as duas lado a lado. O garoto achou divertido. Mas novamente preferiu retomar seu antigo rumo. Os dois animaizinhos bateram asas e tornaram a sobrevoar o garoto. Tomaram a frente e pousaram sobre a maçaneta da última porta. David deixou-se guiar por elas. Aproximando-se da porta, os insetos afastaram-se. Lembrou-se de que as portas, com exceção da última do lado oposto do corredor, estavam trancadas. Afastou a mão direita, que ali estava apoiada. As borboletas bateram as asas, inquietas e tornaram a voar, inquietas. David compreendeu o sinal e reaproximou sua mão, colocando-a no mesmo lugar em que estava apoiada. Os dois animaizinhos puseram-se a se debater contra a porta, como se tentassem abri-la. David sorria, à proporção que se espantava. Ao segurar firmemente a fechadura, a porta tremeu. O menino não conseguia soltá-la. A maçaneta brilhava intensamente, e as borboletas se debatiam em movimento frenético. O brilho apagou. A porta cedeu. Milhares de borboletas, idêntica às outras duas, saíram daquele cômodo. O garotinho abriu os braços, rindo. As borboletas cercaram-no, formando ao seu redor um fantástico tornado azul. As cortinas se abriram. A janela abriu. Parte das borboletas o agarrou, levando-o para o lado de fora da casa. E juntos voaram em perfeita sincronia. Com o vento. Com o canto. Dos pássaros. E do novo mundo!

3 comentários:

Gustavo Monteiro disse...

Vc conseguiu ser sutil. Isso é bom, a simplicidade é algo complexo, por incrível que pareça... Gostei do "não mais que derrepente", Soneto de separação neh?! Ficou mt massa, se vc ler só essa parte, sem o resto, parece outra história, dessa vez com um final! Tem cara de final, é o final? Vc evolui a cada postagem, essa última então, se pudesse salvar uma parte do conto, salvaria essa.
abraços

Dji disse...

veeelho! já te disse, tive de reler os outros capítulos pra me situar aqui, e o mais incrível é que me parece que cada vez que releio uma nova interpretação bate pra tentar encontrar a sua intenção com a história. não vou mentir, preciso discutir umas hipóteses contigo pra ter certeza de um comentário... agora, quanto ao texto, pelo texto em si, a referêcia ao soneto da separação logo no início realmente é das boas. consciente ou não. e falando em poema, as frases finais só me passam essa idéia: de que você tornou prosa uma idéia poética. se me pedissem pra escolher um pedaço pra explicar isso, bem... "Com o vento. Com o canto. Dos pássaros.". Separar o complemento nominal do nome, meu filho, só na poesia mesmo =D

Anônimo disse...

faço minhas novamente as minhas velhas palavras de quando li esse capítulo há um tempo atrás:

"a referência ao soneto da separação logo no início realmente é das boas. consciente ou não. e falando em poema, as frases finais só me passam essa idéia: de que você tornou prosa uma idéia poética. se me pedissem pra escolher um pedaço pra explicar isso, bem... "Com o vento. Com o canto. Dos pássaros.". Separar o complemento nominal do nome, meu filho, só na poesia mesmo..."

de resto... que fumada foi essa com as borboletas vá?! será pq "david" de trás pra frente vira "divad" kkkkkkkkkkkkkkkkk lol