Até logo

 

A chuva que se derramava contra os vidros da janela do meu quarto me acordou naquele dia. Eram vinte e nove de fevereiro do ano de 2020. As nuvens de chumbo me encararam com profundo pesar quando abri uma frestinha da cortina para verificar qual seria o grau de dificuldade que eu enfrentaria para ir ao trabalho naquele sábado letivo. O céu estava triste, pesado e cinzento. Mas era dia de prova, e para coordenadores não existe segunda chamada, afinal. Levantei-me pouco depois das cinco e meia da manhã, de modo que a tempestade lá fora não me permitia escutar meus próprios passos dentro de casa.

Tentei não pensar demais. Tomei meu banho rápido e gelado de todas as manhãs, comi meu pãozinho com um copo de leite e me apressei para ir à escola. Já eram mais de sete. Tudo naquele dia me fazia pensar: o céu cinzento, o vento afrontoso, as janelas embaçadas, até a enorme aranha caranguejeira que encontrei no corredor, ao descer as escadas. Ela sobreviveria, se não fosse o berreiro do filho do vizinho do 204 que impulsionou o pai a matá-la a chineladas logo que passei por ela.

À porta, a rua pavorosamente alagada. Senti frio, ainda que estivesse agasalhado. A chuva não permitia que eu enxergasse dois metros à frente dos meus olhos, e seria uma piada acreditar que o guarda-chuva florido que fora de mamãe aguentaria a ventania que me aguardava edifício afora. Ainda assim, dei meu corajoso passo de partida e segui até o carro.

A dança das árvores em torno do condomínio localizado no coração de um manguezal, junto ao cinza dos edifícios que se misturava com o céu tenebroso, cujas cores mortas borravam na chuva torrencial que agredia meu para-brisas, provocavam-me a sensação de estar sendo engolido.

As ruas estavam vazias, frias, mórbidas. Não sabia eu se o meu interior coloria o mundo lá fora ou se o mundo lá fora invadia meu interior. A verdade é que naquele dia ambos se misturavam, a ponto de eu não mais saber distinguir o que vinha de dentro ou de fora.

Tive que selecionar as vias que não afundavam para finalmente chegar a meu destino. Iniciei a prova com uma hora de atraso, pois não faltaram ligações e mensagens de estudantes que estavam impossibilitados de chegar ao colégio, e todas elas foram respondidas com a devida compreensão.

Ao sair da escola, fui abraçado pelo calor de meio-dia de um sábado ensolarado. Coisa mais esquisita, pensei. Para onde foi toda aquela tempestade? Acho que o avanço das horas trouxe-a de vez para dentro de mim. Do estacionamento, avistei de longe seu edifício e suspirei um até logo. Apressei-me e cheguei em casa sem dificuldades. Almocei e deitei um pouco. Meu coração ainda estava cinzento. Pedi ao relógio que demorasse a chegar as quatro horas, mas naquele dia ele estava de mal comigo.

Já está vindo, irmão? Ouvi sua voz meio embargada e tive dificuldade de identificar se se tratava de alegria ou tristeza, mas quis acreditar que era uma mistura agridoce de ambas. Num suspiro, saltei da cama, e me organizei para enfrentar a verdade da qual eu fugia. A ansiedade me fez chegar antes. Fui recebido com alegria. Nossos amigos estavam lá. Vó, mãe e irmãos seus também. O salão de festas estava azul como o meio-dia, mas cheio de corações cinzentos como a manhã de chuva. Já eram quatro da tarde. Conversei através do olhar com sua mãe e vó diversas vezes. Sem dizer uma palavra, conseguíamos ler uns aos outros, e isso era muito bom, mas às vezes incômodo. Sentia-me despido, invadido.

Vou ficar lá em cima um pouco, irmão. Disse uma voz engasgada por trás do meu ombro direito. Ainda que eu sempre respeitasse seus momentos de solidão, desta vez eu o afrontei. Subimos juntos, nós três. Eu, você e o silêncio. Ele falava sobre algo ao qual eu não me atentara, pois meu coração trovejava alto demais para ouvi-lo naquela hora. Deitei na sua poltrona, como sempre o fizera. Você, no sofá. Da janela, contemplei o céu alaranjado. Ele tinha som e cor de até logo. Virei o rosto para o centro da sala: eu ainda não estava pronto para encarar essa verdade. Não tardou que nos procurassem. Descemos o elevador com o mesmo silêncio com que o subimos e adentramos o salão. Teu irmão estava te procurando, disse-me Vó. Eu respondi com um sorriso frouxo, e ela compreendeu.

A noite escura e sem nuvem já se apresentara lá fora, enquanto no salão os risos de memórias, petiscos e bebidas frescas coloriam o ambiente. Mas meu coração permanecia cinza, como a chuva torrencial que me acordou às cinco e meia. Olhei para você e reencontrei em sua retina o moleque chato e irreverente que conhecera cinco anos antes. Rimos juntos, com os olhos. Por algum instante eu desejei que o moleque não tivesse crescido. Que ele não precisasse partir. Vó nos olhava de longe, sorrindo. Era como se ela pudesse enxergar minha alma, tal qual uma porta aberta.

À meia noite, nossos amigos partiram para suas casas. Eu e seu amigo grandalhão, não. Era chegada a hora. Prateleiras e gavetas esvaziavam-se ao passo que suas malas se preenchiam. De repente, eu me vi com uma sacola cheia de camisas de super-heróis e três pares de sapato. Tudo seu, elas são a sua cara. Pode levar, riu sua mãe. É sua, irmão, deu-me você uma correntinha dourada, junto ao ‘r’ retroflexo e arrastado que só você poderia me entregar.

Deitei em sua cama e fechei os olhos para  fingir por um segundo que tudo era um sonho ou um pretexto criativo para escrever uma crônica. Irmão, vamos. Você vai comigo ao aeroporto? Acordei atordoado, com todos os que estavam no quarto rindo da situação. Tateei a cama à procura do celular a fim de ver que horas eram e li uma mensagem que me fez chover por dentro.

A madrugada já sussurrava, e sem demora fomos ao aeroporto. No carro, o grandalhão já chuviscava. Eu, completamente cinza. No aeroporto, beijos, abraços e fotografias. Até logo, irmão, dissemos. Sem você, assistimos juntos ao céu negro engolir o avião que alçava voo, como o casaco que você costumava vestir na adolescência e lhe devorava até os joelhos. Sorri um sorriso breve, saudoso. Na volta para casa, o grandalhão chovia escondido voltado para a janela, como aquela manhã de sábado. Soluçava, baixinho, para que ninguém o escutasse. Aquela chuva fria, fina e cinzenta. Aquela chuva de despedida.

1 comentários:

Yago disse...

Irmão, confesso que me emocionei um pouco. É muito bom ver que lembra de tudo!! Adorei o texto, Vc é muito bom 👏🏼👏🏼

P.S: Amigo grandalhão kkk Muito bom!!