Sexta-feira.
Essa palavra é um bálsamo para os ouvidos de qualquer profissional, em especial
aqueles que trabalham envolvidos na educação de adolescentes. A papelada com a
qual eu necessitava lidar diariamente estava espalhada sobre o vidro da minha
mesa, de modo que eu não sabia qual parte do trabalho eu deveria finalizar
primeiro. Eu e minha mania de causar digressões nos meus processos.
Os
pés que gritavam pelo corredor já haviam subido as escadas e já estavam acomodados
(ou incomodados?) em suas salas de aula, e eu então poderia raciocinar melhor como proceder diante de tantos afazeres. Sem perceber, os minutos foram passando, e
em instantes os alunos retornariam ao pátio a fim de se organizarem para ir embora
para suas casas.
A
porta da minha sala abriu, mas eu estava deveras concentrado para erguer minha
visão de imediato, como de costume. Ouvi meu nome. Pois não? Preciso falar com
você, sussurrou a voz ferida. Olhei para ela. A professora me direcionou um
olhar pesado, que me esfriou a espinha. Ninguém quer lidar com problemas de
gravidade severa ao meio dia de uma sexta-feira de sol castigante. A fome já me
roía os ossos, àquela altura, e o cansaço recaía sobre meus ombros e semblante.
Esperei
que ela falasse, para não apressar a má notícia que eu já aguardava com minha
respiração presa. Vim deixar este celular com você, e espero que você possa
conversar com o aluno, ouvi-a recebendo o celular sobre a minha mesa empapelada.
Tudo bem, aliviei a respiração. Sendo o problema esse, está tudo bem para mim, pensei.
Conversar com alunos sobre uso de celular em sala de aula era o menor dos meus
problemas, que não eram poucos. Mas ela continuou. Ele se levantou e caminhou em
minha direção, mas não pôs o celular sobre a mesa. Ele simplesmente bateu-o no
birô, não apenas com a mão, mas também com a palavras; e essa foi a parte que
mais me doeu. Até semana que vem, bom final de semana.
Inesperadamente,
doeu em mim também. Fiquei com os dedos entrelaçados sobre os quais apoiava meu
queixo, pensativo. Como ele foi capaz de dizer aquilo? E mais do que isso: por que
ele? Quando a gente lida com adolescentes, aprende-se de imediato a primeira
regra: eles vão nos desapontar. Por mais que meus até então dez anos de carreira
me explanassem isso cotidianamente, a vida um dia nos mostra que sempre há uma
ferida que ainda pode ser tocada. Ele era uma.
Uma
poção amarga de lidar com adolescentes em uma escola é quando eles deixam de
ser número e passam a ter nome. Com ele, foi inevitável. Ele era irmão caçula
de um amigo muito próximo, então apesar de ser apenas o irmão de meu amigo, ele
era irmão de meu amigo. E isso, no nosso íntimo, faz diferença. Ele tinha pai,
mãe, irmão e endereço. E eu conhecia tudo isso, de perto. O que quer que eu tivesse
de falar, o que quer que eu precisasse fazer, deveria ser dito ou feito ali na
escola, sem atravessar os portões. Porém, quando se atravessa sem pedir licença
a janela da alma, a conversa é outra, e não há esse profissional que não se
abale.
Ao
adentrar aquela porta, ela sabia o que estava pedindo, por isso pediu com tanta
veemência, porque ela sabia o quanto seria desafiador para mim. Eu precisava matar
em meu interior o irmão de um amigo, para encarar a indisciplina de um aluno.
Todavia, não era apenas isso. Era a indisciplina de um dos melhores alunos da sala,
desses que nasceram e se criaram na escola. Desses que a gente olha com
orgulho, e projeta todas as melhores expectativas possíveis para seu futuro profissional
e pessoal, que nos inspiram a ter filhos iguais a eles.
Meus
devaneios foram interrompidos por uma figura alva, alta e magra, escondida por
dentro de seu casaco azul, que surgia atrás do vidro de minha porta pedindo licença.
Posso pegar meu celular? Não, pensei. Olhei, não para o relógio, mas para
dentro de mim. Em seguida, transferi meu olhar para os olhos castanhos por
detrás dos óculos de armação quadrada que esperavam de mim alguma resposta e lhe
entreguei o aparelho de capa vermelha. Bom final de semana, nos despedimos. Não
era o melhor momento. Todas as emoções e pensamentos que fervilhavam em mim impossibilitavam
que eu tivesse o diálogo profissional à altura do papel que eu exercia na
instituição. Dispensá-lo foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado naquele
instante.
Após
o almoço, senti o prazer de respirar o silêncio que eu merecia. No pátio, apenas
o som do sol e das folhas secas que se espalhavam com o vento que por ali
corria. Dentro de mim, uma bagunça incômoda. Segunda-feira conversamos, por que
não? Até lá, organizarei meu bom discurso para ensinar a um dos melhores alunos
da classe do nono ano a ter bons modos. Senti um misto de amargura,
desapontamento e tristeza. Por que ele? Tentei me convencer de que eu esperava
demais de um adolescente de quatorze anos, contudo meus argumentos eram
insuficientes. É só esperar até segunda e tudo se resolverá. Até segunda. A possibilidade
da espera me angustiava, pois eu não conseguiria me decepcionar até
segunda-feira, era preciso que o sentimento morresse naquele mesmo dia. E
estava decidido, haveria de morrer.
Peguei
meu celular no bolso e mandei mensagem para o irmão dele, solicitando o número
do indivíduo. Não quis refletir se era antiético, afinal, pelos protocolos
escolares, eu deveria ligar para a mãe dele solicitando que ela se fizesse
presente com o filho na escola. Aconteceu alguma coisa? Desconversei. Disse que
precisava do número dele para falar sobre questões escolares do cotidiano, o
que não deixa de ser verdade, ainda que parcialmente. Afinal, aquela situação
não fazia parte do cotidiano, ao menos não do dele.
Precisamos
conversar. Venha aqui na escola agora pela tarde, se possível. Não me
apresentei, pois sabia que meu número estava salvo em seu celular, ainda
que o salvamento não fosse recíproco. Estou indo aí agora. Nervosismo e alívio
se embaralharam em meu estômago e o aguardei tomado pela seriedade que o
momento exigia. Não tardou que ele ressurgisse à minha porta.
Sente-se.
Não posso dizer ao certo o que ele sentiu naquela circunstância, mas não deve
ser muito prazeroso receber uma solicitação de comparecimento à escola no turno
oposto ao que se estuda para conversar com uma das autoridades máximas em uma
sexta-feira. Você me decepcionou. Atirei contra ele essas palavras ao terminar
de relatar o motivo da convocação. Seus ombros recaíram-se, junto a seu semblante.
Joguei sobre ele todas as minhas expectativas e como elas haviam sido frustradas
pela manhã. Espero que ela seja demitida, disparou para um colega ao retornar à
carteira. Todavia, ela ouviu, e com nitidez. Você sabe como é difícil para uma
profissional ouvir isso de um aluno cuja postura ela admira? Os olhos dele me responderam
com silêncio e vermelhidão.
Pode
se retirar, disse-lhe com seriedade e firmeza. Ele se levantou. Um sincero pedido
de desculpas mudo, envergonhado, escorregou de seus lábios. Aceitei-o. O
arrastar de seus chinelos ressoou pela sala vazia, não em direção à porta, em minha direção. Vi surgirem de repente dois braços timidamente entreabertos caminhando
lentos até mim, e sem pedir licença eles me abraçaram, um abraço que seu vocabulário
limitado de adolescente de quatorze anos não conseguira transmitir segundos
atrás. Um abraço de perdão. Ali se ouvia apenas o leve bater das mãos às costas,
ainda que ambas as almas conversassem. Sinalizei-lhe com a cabeça que estava
tudo bem, e ele aos poucos se afastou. Retirando-se,
olhou para trás uma única vez, certamente para se certificar de que eu o
perdoara. Antes que a porta se fechasse olhei pela última vez para o aluno que
saía, calculando se não havia mais nada que eu deveria dizer para que sua atitude
não mais se repetisse. Não havia.
Você
vem aqui hoje? Era sábado. Vesti minha bermuda e fui à casa dele a convite de
meu amigo jogar videogame. O que se discute no trabalho, não pode sair do trabalho, disse a mim mesmo antes de sair. Talvez eu tivesse sido duro demais. Esquece isso, já está tudo bem. Ao tocar a campainha, uma surpresa. Um garoto alto,
alvo e magro abriu a porta, sorriu e me cumprimentou naturalmente com um abraço. Por trás dos óculos de armação quadrada já não se encontrava mais o
irmão de meu amigo. Por trás daqueles óculos encontrava-se meu irmão.
1 comentários:
Meu Deussss! Velho, quantas lembranças lendo isso. Vc narrou tudo tao certinho, tao bem... caramba! Aquele dia foi uma virada de chave absurda, nao sabia que tinha te decepcionado tanto, pelo menos n tinha ideia da dimensao. Ficou muito top, irmao. Incrível, sério. Obrigado pela crônica. vc é demais! te amo ❤️
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