A SOPA

 

Já escurecera, ainda assim eu permanecia frente a meu computador, sentado em minha cadeira que se tornava gradativamente menos confortável com o avanço das horas. Olhos cansados, a coluna pedia cama. Mas o evento seria no dia seguinte, e eu precisava concluir a digitação dos poemas que seriam entregues aos jurados do concurso artístico do dia seguinte. A ansiedade pela realização do evento crescia junto ao palco que se erguia perante mim, e eu podia trabalhar e acompanhar toda a sua organização graças à ampla janela que havia ali na coordenação. Luzes, plano de fundo, cadeiras para a plateia, ornamentação de palco, tudo se inclinava para que o amanhã fosse um dia grandioso.

Meu corpo já não conseguia produzir mais. Além disso, meu filho me esperava no pátio, cansado e faminto, e dependia de mim para voltar para casa. Aliei todas  as minhas emoções e sentimentos contrários à minha permanência ali e decidi que terminaria meus afazeres em casa.

Vamos, filho. Ele pegou de imediato sua mochila, levantou e acompanhou meus passos largos e sempre agitados. No carro, o alívio de uma sexta-feira à noite misturado ao pesar de uma tarefa interminável. A procrastinação tem seu preço e eu precisaria pagá-lo naquela noite. Meu filho, calado e voltado para a tela de seu celular, como todo adolescente de dezessete anos. Preparado para amanhã? Ele respondeu positivamente, não com a voz, mas com o balançar da cabeça sem desviar o olhar para quem com ele puxava assunto. Precisarei ensaiar em casa, eu trouxe o saxofone, daí o senhor ouve e diz se está bom, disse ele após alguns segundos de silêncio acompanhado do incessante labor do limpador de para-brisas que deslizava sobre a chuva fina que caía.

Estávamos ao semáforo, e dessa vez fui eu quem respondi positivamente com o balançar de minha cabeça, não por revanchismo, mas porque havia recebido uma mensagem e aproveitei para lê-la ao sinal vermelho. Amanhã não poderei ir, estou com febre. Fosse um ano atrás eu agradeceria a ausência, na verdade sequer haveria o convite, uma vez que o remetente me era um desafeto. No entanto, naquela circunstância eu me importei; nossas amizades em comum, em especial meu irmão que partira uma semana antes para São Paulo, fizeram com que eu deixasse de detestá-lo para considerá-lo uma companhia ao menos aceitável, ocasionalmente.

Abriu. Tendo ouvido isso, enviei OK para o indivíduo e segui viagem. Por um instante levantei a possibilidade de ele ter mentido, e em vez de admitir que um evento artístico não lhe era atrativo, optou por escolher um motivo que anulasse quaisquer possibilidades de sua presença. Seu irmão, que fora meu amigo, costumava alertar que não acreditasse nele, e talvez ele tivesse razão. Pouco me importava se ele mentia, eu tinha coisas mais urgentes para me preocupar, por isso ao estacionar o carro já avisei a meu filho que tomasse banho enquanto eu organizava o café a fim de não perdermos tempo na nossa subida para casa.

Banho e café finalizados, fomos para o quarto concluir os preparativos para o evento. Ainda que chovesse, a noite era quente demais para permanecer na sala. Meu filho pegou a caixa de som e seu saxofone, enquanto eu ligava meu notebook e tirava da pasta todos os poemas a serem digitados. Ele era muito bom na música, precisava apenas se sentir mais seguro. Eu o ouvia enquanto dava continuidade a minha infindável digitação de textos. Não está ficando muito bom, acho que não vou me apresentar amanhã, anunciou. Nem pensar, ri com ar de reprovação.

A minha febre ainda não passou. Você se alimentou? Você precisa se alimentar, senão ela não vai passar, mesmo. Meu pai não está em casa, não deixou nada pronto e eu não sei cozinhar, então acho que vou dormir sem comer, mesmo.

Não, não vai. Olhei para todos aqueles papéis embaralhados sobre a cama, pensei na possibilidade de não conseguir concluir o trabalho naquela noite caso eu pausasse o processo de digitação. Pensei no risco que correria em dormir tarde e acordar cedo e ter de comandar um grande evento que exigiria de mim muita energia e disposição. O relógio já apontava 21h, e não havia sequer previsão de quando eu terminaria aquilo que mal começara a fazer. Mas eu sabia o que fazer. Saltei da cama e vesti uma camisa. Sugeri que meu filho ficasse em casa ensaiando, mas ele optou por me acompanhar. Desci as escadas com pressa e pedi que ele acionasse o GPS, graças a minha dificuldade em me localizar geograficamente.

No trajeto, ri-me de mim mesmo, tentando compreender por que naquele momento eu me preocupava tanto com ele. Por muitos anos ele me fora um desafeto, e eu nunca fiz questão de esconder; sua presença me desagradava, mas suportava apenas por ser irmão de um amigo, ou ainda por termos amizades em comum. Mas era justamente de mim que ele precisava naquela noite, e isso fez minha alma aquecer por dentro, ainda que o orgulho permanecesse como adversário.

Não era dele que o senhor não gostava? Perguntou meu filho ao revelar-lhe para quem eu entregaria a sopa quentinha guardada no potinho que eu conduzia para o carro. Pelo visto, minha ojeriza pelo jovem era até mais pública do que eu tinha conhecimento. Respondi-lhe com um sorriso e desconversei ligando o som do automóvel para distrai-lo com minha cantoria desafinada.

Saindo do carro, olhei para o seu condomínio portão adentro e logo o vi a distância, ainda que ele fosse baixo e magro. Ele aproximava-se lentamente, os braços cruzados nos quais roçava as próprias mãos indicando estar com frio. Tome, é para você. Sopa de macaxeira, espero que goste, até veio com um pãozinho francês de acompanhamento. Seus passos, que eram lentos, cessaram. De imediato interpretei que ele esperava que eu também me aproximasse, por isso direcionei-me até ele. Toma, e vê se come todo, entreguei-lhe o potinho com a sopa. Olhei-o nos olhos, e percebi que eles estavam vermelhos e marejados.

Abruptamente, ele me abraçou. Abraços não são acontecimentos extraordinários na minha vida, uma vez que o distribuo diuturnamente a meus amigos, mas aquele foi um abraço diferente. Não porque senti em meus braços seu corpo febril; aquele abraço me transmitiu tamanha gratidão que seu “obrigado” em seguida se perdeu no vento que ali atravessava. Comprimi com as mãos sua cabeça a meu peito, que ao fim do gesto continha duas gotinhas proveniente de suas lágrimas. E ali permanecemos em silêncio por alguns instantes. Um silêncio de um abraço, um abraço de gratidão. Em silêncio, uma barreira se quebrava dentro de mim.

E foi assim que saí de casa achando que curaria a doença de um corpo; e retornei com a certeza de que Deus me levou para que eu curasse minha alma.


“Dá de comer a seu inimigo no de dia de sua fome. E no dia de sua sede, dá-lhe de beber. Porque assim amontoarás brasas vivas sobre sua cabeça”. (Romanos 12:20)

 

1 comentários:

Arthur disse...

Ficou incrível, irmão! Muito bom mesmo. Escorreu uma lágrima minha, acha isso bonito, moço? Ficou muito bom, velho. Tu tem um talento inexplicável para isso.