A sexta-feira que nascia era azul
e ensolarada, como tinha que ser uma sexta-feira na minha cidade durante o mês
de julho, uma vez que a temporada de chuvas constantes costuma-se encerrar ao
final do mês anterior. Precisava me organizar para a viagem que realizaria no
dia seguinte, para o casamento de um amigo de infância, cuja cerimônia ocorreria
na cidade grande onde ele mora.
Entre malas, gravatas e sapatos,
recebi a mensagem de um amigo não tão antigo para ser considerado “velho amigo”,
mas não tão recente para não receber a devida importância que lhe darei aqui.
Tudo certo para daqui a pouco? Perguntei-lhe, e ele avisou que em instantes ficaria
pronto e eu poderia ir buscá-lo em casa.
Não posso negar que se trata de uma
amizade que anos atrás eu jamais imaginaria trazer em minha casa para almoçar e
passar o dia, tendo em vista a forma como ele me foi apresentado. Estranho,
sombrio e um pouco psicopata foram apenas alguns dos adjetivos que puseram em
meu colo quando eu o encontrei pela primeira vez. E, de fato, todas as pessoas
ao nosso redor agiam de forma que confirmassem essa falsa verdade a que fui exposto
logo em nosso primeiro contato. O tipo de pessoa que todo mundo que conhece
alega já ter sentido medo em algum momento de suas vidas, seja por uma fala ou
comportamento apresentado de maneira atípica.
Atípico. Esse é o adjetivo que,
sem medo ou rótulos, posso atribuir-lhe sem receio de estar provocando um mau
julgamento acerca de sua pessoa. Você é a única pessoa que ele respeita ou por
quem ele demonstra qualquer sentimento. Ouvi isso, não poucas vezes, e tal colocação
me deixava entre o lisonjeado conforto e o inevitável medo do indivíduo com quem
paulatinamente eu estreitava os laços. Entretanto, foram esses laços que me fizeram
confrontar toda e qualquer opinião ao seu respeito, posto que nossa relação de
amizade me revelava exatamente o contrário.
Participamos, junto, de uma
apresentação teatral, da qual ele julga se envergonhar até hoje, diga-se de
passagem. O palco de um teatro é o último lugar onde se imaginaria encontrá-lo,
pois é de sua natureza a aversão a qualquer tipo de exposição de sua imagem. Todavia
ele esteve ali. Não digo que contra a sua vontade, há quem diga que foi por
consideração a mim. Sendo esse o motivo, eu realmente devo ter o mínimo de importância
que seja, aos seus olhos. A propósito, seus olhos castanhos parecem longans
maduros que tudo observam minuciosamente, detalhe por detalhe; quando fitados
por outrem, eles revelam ter contato direto com a alma de quem ousar encará-los.
Cheguei à portaria de seu condomínio,
onde fui recebido com o tradicional beijo e abraço com o qual cumprimento todo e
qualquer amigo. Seguimos para uma mercearia, cuja existência e localização me
surpreenderam, uma vez que o espaço revelava que sua existência é de longa data,
mas da qual jamais tive conhecimento, ainda que ela se localize a caminho de
meu trabalho.
Quantas batatas? Trouxe-me de
volta à realidade, enquanto eu me perdia decidindo qual massa de bolo eu compraria
para a sobremesa. Diferente de mim, ele foi assertivo e não hesito em
determinar sua preferência. De cenoura, com cobertura de chocolate, por favor. Sem
retrucar, apanhei os materiais selecionados e o encontrei na fila do pagamento.
Dividimos a conta e seguimos viagem para a minha casa.
Como de praxe, ele foi muito bem
recebido pelos meus gatos, em especial pelo branquinho, o mais agitado, porém
também o mais carinhoso. Não tardou para que ele revelasse que nunca havia visto
gatos tão hospitaleiros, uma vez que eles costumam se esconder ao encontrar
estranhos. Vamos jogar xadrez? Desafiei-o, todavia ele achou mais inteligente preparar
o almoço para que pudéssemos jogar enquanto a lasanha estivesse no forno. Ajudamos
um ao outro, salvo o fato de que o perfeccionismo que ele apresentou ao amassar
as batatas tenha me irritado um pouco.
Sua linha de pensamento era
unifocal, e a multifocalidade proveniente de minha hiperatividade se utilizou disso
para que eu pudesse derrotá-lo no xadrez três vezes consecutivas sem muito
esforço. Ao término da terceira partida, ele deu um sorriso sem graça,
aceitando meu triunfo. Não fica com raiva de mim não, viu? Levantei-me da cadeira,
beijei-lhe o rosto em tom de brincadeira e satisfação com minha vitória.
A lasanha estava pronta, entretanto
precisávamos decidir se compraríamos o leite que esquecemos ou usaríamos o
creme de leite para a preparação do bolo vindouro. Como ambos não estavam
dispostos a sair de cara para o que quer que fosse, arriscamos sem medo de errar
o uso do creme de leite, que nos caiu como uma luva. Enquanto preparava a calda
de chocolate, notei sua concentração incomum perante à tela de celular. É um
jogo que jogo com um pessoal da Índia, riu consciente de que eu iria me
surpreender com aquela informação. Então se dispôs a detalhar todas as funcionalidades
de seu joguinho, e até me apresentou o grupo do qual ele faz parte, em que as
pessoas conversam em sua língua nativa cujo significado ele precisa se
desdobrar para compreender.
Após o almoço, rendi-me aos
encantos de meu tapete, e percebendo o
quanto eu estava à vontade, ele fez o mesmo no sofá. Não é possível mensurar quando
e por quanto tempo cochilei, mas asseguro que não foi por muito tempo. Sentei-me
e nos pusemos a conversar sobre tudo o que nos viesse à mente, sem preocupação
com filtros impostos socialmente para com a conversa entre dois amigos adultos,
seja sobre a sessão na psicóloga ou sobre relacionamentos antigos que se enveredaram
para o fim.
Falamos do passado, de amigos em
comum, relacionamentos amorosos anteriores e um pouco sobre os atuais, e assim
consumimos as horas a fio que se rendiam ao nosso bom papo. Quero bolo de cenoura,
pediu-me quando sentiu que o papo já esfriara um pouco. Peguei-o com cuidado
para não machucar as mãos, posto que ele esfriava o sobre o balcão da cozinha,
e repousei-o sobre a mesa. Comemos bastante e bebemos, mas nem tanto, visto que
o refrigerante já estava perto do fim após ser devolvido à geladeira ao fim do
almoço.
Como precisava prestigiar a exposição
artística de minha irmã mais velha, comuniquei-o que era chegado o momento em
que me fazia necessário tomar banho e me organizar para ir ao encontro dela, no
shopping center. Reapareci à sua presença instantes depois, devido à rapidez
com que tomo banho e me arrumo para sair. Abri a porta, sem despedidas, pois
precisava cumprir meu papel de deixá-lo em casa novamente.
No carro, procurei em suas mãos a
agressividade que o acusavam ter e não a encontrei. Apenas a cumprimentei no
dia em que ele estava prestes a entrar em confronto fisicamente com um amigo e
eu corajosamente esbravejei que se aquilo acontecesse eu não pouparia esforços
para estapear cada um dos dois. Não sei como nem por que tive essa coragem, mas
é válido dizer que funcionou naquele dia, e eu fui o único capaz da apaziguar
aquele conflito. E se eu não o conhecer de verdade? Cheguei a imaginar, mas
preferi depositar minha fé na crença de que sou um dos poucos que o conhecem, que
ele permitiu conhecê-lo de verdade.
Acabada a exposição, recordei-me
de que eu necessitava me preparar para a viagem que realizaria amanhã. Liguei
para o salão de beleza e agradeci a Deus por ele ainda estar em seu pleno
funcionamento às vinte horas de uma sexta-feira pandêmica. Visual repaginado,
voltei para casa e fiz as malas sem muita dificuldade, afinal eu permaneceria
naquela cidade por apenas dois dias. Tive sorte de encontrar passagem para a
manhã do sábado, e sosseguei diante de minha irresponsabilidade de resolver tudo
de maneira demasiadamente apressada e urgente.
Abri a geladeira e vi que ainda havia
parte majestosa da lasanha e o bolo praticamente inteiro, os quais seriam
desperdiçados, pois era certo que ao retornar os encontraria embolorados e
estragados na geladeira. Mirei o relógio, e eram quase vinte e duas horas. Por
sinal, eu já deveria estar dormindo naquele horário, contudo naquele dia fiz
diferente. Tudo ficou muito bom, aquela lasanha estava de outro mundo. Certifiquei-me
de que era o certo a se fazer. Vou levar aí, então. Se ela permanecer na geladeira,
estraga. A essa hora, nego? Perguntou-me utilizando o vocativo que sempre
utiliza ao se dirigir a mim.
Entrei no carro e fui guiando-o
junto às vasilhas que carregava. Dessas de sorvete, claro, para não haver o
risco de perder alguma de minhas tupperware. Em poucos minutos cheguei lá,
apesar de ter contado com a sorte de haver uma blitz na avenida e ter sido
liberado sem abordagem policial. Licenciamento do carro atrasado, e quem deve
teme. Parei o carro próximo à portaria e logo ele chegou vestindo uma camiseta
preta e um sorriso. Entrou no carro e me beijou o rosto e abraçou-me como se
tivéssemos nos encontrando a primeira vez em anos. Foi sua forma de
agradecimento, li de imediato.
Boa viagem, ele me disse antes de
fechar a porta. Pelo outro lado do vidro, um novo sorriso, esse um pouco mais
tímido. Você sabe ou eu preciso te dizer? Eu sei, respondi rindo com leveza. Através
do vidro, mando-me um beijo pela última vez naquele dia e eu retornei para a
casa que recebera mais cedo, alguém cujas circunstâncias confirmariam um
desafeto sem dificuldade, e do contrário tornara-se uma daquelas poucas
companhias que nos permitem sermos autênticos o tempo inteiro, como tem que
ser. Com ele descobri que nem toda capa permite que seu livro seja julgado, e
se ele for lido por alguém que não tenha a sensibilidade literária necessária
para compreendê-lo como ele merece, certamente ele se torna ilegível e
indigesto. Mas quando se é um leitor ativo e persistente, não há bolo de cenoura
ou lasanha que se compare ao prazeroso saber de uma boa leitura.
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