O céu limpo e fresco, aliado à
monotonia dominical, me impulsionaria a ir à praia naquele domingo de agosto,
salvo se não fosse o que aquela data comemorava. Era dia dos pais. O gosto
amargo e saudosista da infância ao lado do avô misturou-se com o sabor
adocicado do leite gelado no café da manhã, o qual me ajudaria a digerir as
memórias afetivas que vivenciava já tão cedo. Há quem dissesse que o mal-estar
que essa data comemorativa me provoca tenha relação com a ausência da figura
paterna durante toda a minha vida, mas reitero que ela sempre foi bem-vinda nos
anos que compartilhei com meu avô, falecido à flor de minha adolescência.
O último pedaço do pão recheado
com requeijão cremoso deu uma pausa em minhas lembranças e sem muito resistir
dispus-me a lavar os pratos, para que eles não se acumulassem de maneira
diretamente proporcional a minha preguiça matinal. Enxuguei minhas mãos e me
entreguei à maciez negra do meu tapete e de minhas lembranças que ainda se
mantinham vivas no calor de meus pensamentos.
Você vem me ver? O almoço seria,
como de tradição, na casa da avó da namorada, mas permaneci ali deitado, e
neguei minha presença na reunião, posto que possivelmente eu não me manteria
comunicativo e bem-humorado por muitas horas e me tornaria, assim, um convidado
inconveniente e mal-educado. Deixei o celular adormecido no tapete e me vi
abraçado às almofadas que estavam ao meu alcance naquele instante. Costumeiramente
as horas aos domingos tendem a passar mais lentamente, e não havia motivo para
que aquele dia fosse diferente. O ponteiro dos segundos do relógio da sala
marcava de maneira audível seu passo, ainda assim não impediu que a maciez das
almofadas me fizesse adormecer.
Acordei pouco depois das onze
horas, e ao abrir a geladeira em busca de água para me hidratar percebi que
precisaria comprar ingredientes para a realização do meu almoço. A falta de
disposição foi vencida pela necessidade e então fui à mercearia comprar o que
era preciso para cozinhar o que sei fazer de melhor: lasanha com cobertura de
purê de batata. Minha impetuosidade trouxe também a mistura para bolo e os
ingredientes para a sua cobertura.
Hoje eu mereço, sorri. Durante
meu crescimento, encontrei a figura paterna por duas vezes, sendo em meu avô,
durante a minha infância e adolescência, e em mim mesmo, já na vida adulta.
Estranha essa ideia de ter me tornado meu próprio pai, todavia não negarei que
foi isso o que aconteceu. Admito que foi uma estratégia de meu inconsciente um
pouco arriscada, bem como um pouco dolorosa, mas não devo negar jamais que ela
existiu. Eu fui um ótimo pai para mim, e para quem me propus a ser, e por isso
hoje eu mereço comemorar comigo meu dia, disse a mim mesmo ao receber o
comprovante de pagamento no caixa da mercearia.
A tarde já se fazia presente, a
refeição estava pronta, quando recebi uma mensagem de áudio quentinha como o
bolo de cenoura que eu retirava do forno. Estou indo para a casa de meu pai
agora, e quando eu sair de lá passarei aí, pode ser? Confesso neste parágrafo
que parte de minha tristeza matinal se deu por conta do medo de ser esquecido
por meu filho naquele dia que figurativamente me representava. Como não somos
ligados biologicamente, não havia por que cobrar a presença dele naquele dia
comigo, mas minhas expectativas eram imensuráveis, seja por uma ligação ou
mensagem, ainda que o desejo fosse que ele se fizesse presente fisicamente.
Minha paternidade amadureceu bastante no decorrer dos últimos cinco anos de
convívio, uma vez que em tempos anteriores cheguei até a me incomodar por vezes
com o inevitável fato de que via de regra o pai dele não era eu. Difícil era me
convencer disso. Confesso que nunca me convenci.
A responsável fora a tia dele,
irmã de seu pai. Você é o pai dele. Disse-me uma vez aquela senhora sentada à
minha mesa, vestida com a seriedade que seu cargo de diretora de escola exigia
de si. Você diz ser o coordenador dele, mas é muito mais que isso. Você o
adotou. Você cuida dele como filho, você é o pai. E foi ali que tudo começou.
Poderia eu, no auge de meus vinte e seis anos, tomar posse involuntariamente da
paternidade de um garoto de quatorze anos cuja história se assemelhava à minha
no tocante à ausência paterna em nossas vidas? Com admiração, ela justificava
sua fala comprovadamente através de meu comportamento e minha relação com o
garoto. Aquele encontro foi o ponto de partida da construção de minha história
com aquele que posteriormente eu chamaria de filho, e traria para mim toda a
responsabilidade paterna perante ele por todos os dias que a partir dali se sucederiam.
O almoço estava à mesa, e
pacientemente o esperei sentado ao sofá com o celular em mãos, na expectativa de
sua chegada. A fome fez morada em meu interior, afinal, para quem habitualmente
almoça ao meio dia, esperar até às quinze horas é inevitavelmente
desconfortável. E se ele simplesmente não vier? Levantei-me, inquieto, e me pus
a caminhar pela casa a fim de eliminar a angústia que residia na possibilidade
de estar fadado a reviver a amarga experiência da vã espera que tive aos treze.
E, de fato, revivi outrora, por diversas vezes. Além dele, tive outros filhos
clandestinos, por quem me dediquei por anos, e todos eles me deram como destino
a sarjeta de suas vidas à medida que cresciam, apesar de ele, genuinamente, ter
sido o único que me fora filho, de fato, dentro de mim.
A linha indigesta de pensamentos
negativos foi interrompida com o toque da campainha. Antes de abrir a porta,
verifiquei no olho mágico se se tratava de quem eu esperava. Era ele.
Afoitamente, abri a porta e não esperei que ele adentrasse a sala para que eu o
recebesse com forte abraço. Feliz dia dos pais, disse a voz repousada sobre meu
ombro. Fechei a porta enquanto ele retirava da mochila uma caixa de bombons que
me fez beijá-lo o rosto e abraçá-lo novamente. Estou morrendo de fome,
desabafou ele fitando os pratos vazios posicionados sobre a mesa.
Entre uma mastigada e um gole de
refrigerante, experienciei a interessante sensação paterna de admirar o filho e
sentir que não há tempo que faça a gente abandonar a ideia de que ainda que
eles cresçam e se tornem homens e mulheres, sempre serão nossas crianças.
Perante mim, não estava apenas um homem em formação de dezenove anos, que
falava sobre seus planos para o futuro ou os amores que encontrava no caminho,
estava o mesmo adolescente de dezesseis anos que três anos atrás me pediu para
passar o dia dos pais comigo pela primeira vez. Sorri com a alma.
Felizmente o banquete fora
registrado antes que ambas as feras o devorassem impiedosamente. Sentados ao
sofá, uma fotografia. Na tela, pai e filho abraçados de lado, com olhar
preenchido por serenidade. Essa foto ficou muito boa. É a nossa melhor foto, estamos
ficando cada vez mais parecidos, disse-me com ar de orgulho e satisfação. Senti
em suas palavras que ser parecido comigo era motivo de sua gratidão a Deus, e
mal sabia ele que ali ele me dava o seu maior presente.
A tarde findava e ele adormeceu
na cama do quarto, enquanto eu fiquei assistindo a clipes de música no sofá da
sala para aliviar o tédio. Já havia escurecido quando ele surgiu cambaleando no
corredor em passos lentos e preguiçosos esfregando os olhos e perguntando que
horas eram. Pediu bolo de cenoura, como era de se esperar de um filho meu.
Servi-o e lhe preparei a surpresa de conversar com seu melhor amigo, para que
pudéssemos confraternizar juntos àquela noite de dia dos pais.
Garoto divertido, alto-astral.
Brincalhão, mas ajuizado, desses que a gente que é pai ama que seja amigo de
nossos filhos. Entre orla e pizzaria, optamos por buscá-lo e trazê-lo para
casa. É hoje que eu te derroto no futebol de botão, desafiou-me meu “filho por
tabela”, como eu o chamo carinhosamente, uma vez que ele e meu filho se têm por
irmãos. Sem muitas surpresas, ganhei a primeira partida modestamente e
massacrei-o em seguida, e deixei-os jogando, divertindo-me com a falta de
habilidade que eles demonstravam ter no jogo. Obviamente, tirei vantagem do
fato de minha geração ter usufruído de jogos palpáveis como futebol de botão e
pebolim, em contraposição à geração digital da qual eles fazem parte. A
simplicidade habitava na realização de um momento em que três estranhos se
constituíam de forma tão bonita e sincera como família.
Depois de comermos, e bebermos, e
rirmos, e jogarmos, decidi contra a minha vontade que era hora de deixá-los em
suas casas, pois trabalharia no dia seguinte. Pedi ao meu filho, que chegara à
tarde de bicicleta, que me acompanhasse até à casa do amigo, e ao retornarmos,
ele partiria para seu lar. Sem titubear, ele atendeu à solicitação. No carro,
um sambinha de fim de noite para deixar o céu estrelado ainda mais bonito.
Deixamos nosso amigo em casa, agradecemos sua presença e retornamos para o
condomínio onde moro.
Ao chegar, subimos ao apartamento
para buscar a mochila que ele deixara no sofá, junto ao seu carregador de
celular. No coração, aquele leve aperto de despedida, ainda que pairasse sobre
nós a certeza de incontáveis reencontros que estavam por vir. Obrigado, ouvi
sua voz antes que eu movesse a fechadura. Por tudo. Seu olhar de gratidão
desarmou quaisquer palavras que eu tivesse a lhe dizer naquele momento. Tudo.
Pronome indefinido, que tem por significado “a totalidade das coisas; o que é
importante, essencial; o que de fato importa”. Meu filho me agradeceu por tudo.
Eu lhe agradeci em retorno com um abraço. Obrigado por aceitar ser meu filho,
sussurrei. Ele riu. Obrigado por ter me escolhido, entre todas as pessoas que
você já conheceu, para ser seu filho. Nossa história daria um belo livro, completou.
Pediu-me a bênção, beijou minha mão, eu beijei-lhe a sua de volta, e se retirou
no corredor escuro do edifício, em direção às escadas.
E foi quando finalmente percebi
que ele me diz todos os dias aquilo que eu sempre esperava que ele dissesse por
todos esses anos. Ansiava, dia após dia, como o pai que espera o filho
recém-nascido dizer “papai” olhando-o nos olhos; ou como o cão que espera seu
dono à porta após uma viagem ou um longo dia de trabalho. Eu esperei por todos
esses anos por algo que ele me dizia em silêncio cotidianamente. Todavia eu
jamais ouvia, talvez porque não houvesse som; eu jamais lia, porque não estivesse
escrito. Estava no abraço. Estava no riso. Estava guardado na caixa de
chocolate, ou atrás das cortinas, na fotografia. Estava entre uma partida e
outra de futebol de botão, ou no intervalo de um nano segundo entre uma piada e
o riso. Estava no obrigado. E eu não me atentara porque não havia vocativo.
Talvez haja, um dia, mas a partir dali pouco me importa o dia em que isso venha
a acontecer, porque enfim eu percebi que sempre fora dito.
Naquele dia ele me chamou de pai.
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