Terças-feiras
são dias de trabalho cansativos por natureza. Pobre segunda-feira, sempre criticada
por ser o primeiro dia de labuta após nossos tradicionais dois míseros e preciosos
dias de descanso, popularmente conhecidos como fim de semana. Mas ninguém fala
sobre a terça. Diferente do dia que a antecede, ela carrega sobre si o fardo de
suceder um dia de trabalho e de anteceder outros três, quando não quatro. Envio
de boletins, devolução de simulados, preparação de revisões para o NEM,
organização de reunião de pais e mestres. Esse era o retrato do meu terceiro
dia da semana, por cujo fim eu já clamava ali, às dezoito horas, enquanto
conferia as notas da terceira série do Ensino Médio.
Telefone
vibrou à mesa. Pais, alunos, professores, diretora, colegas de coordenação. Todos
eles justificam o fato de meu aparelho permanecer no modo silencioso desde o dia
de sua compra. Ao deslizar meu dedo pela tela para atender a chamada, a ligação
foi encerrada. Era Vó.
Vó
não é minha avó. Mas é. Todos aqueles que convivem comigo encaram com naturalidade
minha parentalidade clandestina. Vó é uma delas. Ela, assim como alguns irmãos
e meu filho, não compartilham do mesmo sangue que eu, e me conhecera após os
meus vinte e cinco anos. Ainda que seu neto e meu irmão tivesse partido para o sudeste
do estado em março do ano passado, nosso contato permaneceu, como bons neto e
vó que somos. Dia dos avós, aniversário de ambos, saudades ou novidades acerca
do meu irmão, sempre houve um motivo para uma breve ligação, uma vez ao mês que
seja.
Meu
coração se agitou de alegria. Em uma de suas ligações, ela me comunicara que
meu irmão viria para a cidade, passar um tempo conosco. Talvez fosse um convite
para um café, e ao chegar lá eu me depararia com ele sentado no sofá e de braços
abertos, prontos para receber meu beijo e abraço. E se ele abrisse a porta
quando lá eu chegasse, contando que ficaria na até o final do ano? Para não
estragar surpresas, evitei pensar demais e achei de bom grado retornar de
imediato a ligação.
Como
se ainda estivesse com o celular em mãos, não tardou que ela atendesse. Oi, meu
neto, que saudade. Meu peito aqueceu, e sem esforço, sorri. Está chegando meu
aniversário, e gostaria que você estivesse aqui conosco, para a gente se despedir.
Minha língua dobrou-se entre meus dentes, a respiração cessou e senti meus pés formigarem.
Estou indo embora para Fortaleza, e no meu aniverário quero me despedir de meus
entes queridos. As pessoas por aqui não estão gostando muito da ideia, mas nem tudo
na vida é como a gente quer, não é mesmo.
De
fato. Não me senti à vontade para perguntar-lhe o motivo que a levaria embora
para tão longe, por isso aguardei alguma informação a respeito. Não me recordo
de ela ter parentes em Fortaleza. Estava eu tão desnorteado, que não compreendera
que não apenas ela partiria, mas toda a família. Minha filha foi promovida. Todos
nós iremos embora.
Todos.
É
demasiadamente empolgante ouvir que a mãe de seu irmão foi promovida. A notícia
está diretamente ligada a sucesso profissional, bem-estar e prosperidade. E
demasiadamente frustrante foi entender que, se a família do meu irmão, o qual
vive hoje em São Paulo, está partindo para Fortaleza, as nossas possibilidades
de reencontro praticamente se anulam. Meus olhos corriam pelo chão branco do
corredor frente à minha sala, e senti as frestas entre os pisos se abrirem e a
saudade me engolir.
Tivera
eu aproveitado os cafés após o trabalho, sucedidos pela poltrona reclinada e as
carícias do pequeno cachorrinho que não parava de saltar de alegria sobre mim,
entre lambidas e latidos? Usufruí eu das partidas de futebol no videogame,
ainda que tivesse que aceitar que minhas habilidades eram infinitamente
inferiores? Cada abraço de chegada ou de partida foram dados com a significação
que eles mereciam? Poderia eu ter cantado mais uma música junto a meu irmão no Karaokê
nas festas de família, embora nossos gostos musicais fossem tão distintos? E se
eu tivesse rejeitado meu sono mais um pouquinho, só para ouvir mais uma peripécia
da infância de meu irmão contada à mesa por sua mãe? Deveria eu ter pulado na
piscina com a Vó em seu aniversário de setenta anos, em vez de ter rejeitado o
momento por não estar com a roupa apropriada? E todos os beijos na testa da Vó,
foram suficientes? E todas as vezes que acordei, após o almoço, e meu irmão
dormia no sofá, observei-o em silêncio? Beijei-lhe cuidadosamente a cabeça antes
de voltar ao trabalho sem que o acordasse?
A
tempestade de lembranças foi interrompida pela vozinha embargada do outro lado
da linha, que desejava minha presença em sua festinha de aniversário. E sua
despedida. Ainda com os olhos ao chão e monossilábico, procurei fragmentos do
meu coração que ali se despedaçara. Ao fim do telefonema, o gosto amargo do nunca
mais. Não o nunca mais do que está porvir, pois este não me pertence. Mas o
nunca mais daquilo que passou, daquilo que vivemos, que não mais poderá ser
revivido, apenas reapreciado por intermédio de meus vocábulos perdidos nesta folha
onde derramo minhas memórias, de riso ou de pranto.
0 comentários:
Postar um comentário