A Enseada: Capítulo III: Rubi

 

Havia também naquela praia, a certa distância dali, não mais que cinquenta ou cem metros, uma menina que dançava sobre a areia. Parecia-lhe que o vento ministrava a música que ela sutilmente coreografava, pois a cada leve morno soprar, seus braços se lançavam com delicada desenvoltura   para a esquerda e para a direita, acompanhados do mover de seu tronco, coberto de um vestido que mesclava cores quentes e vibrantes, vermelho e amarelo, e do balançar de seus cabelos vermelhos amarrados por uma fita preta e enfeitados por um lenço de seda vermelho, de cor tão vivaz como a rosa que estava entrelaçada por entre os fios de sua rubra cabeleira. Junto aos assobios da brisa marítima que soprava, ecoavam notas de música entoadas por sua voz juvenil. Era uma bela criatura jovem e bonita, nem menina, nem mulher. Madura e formosa demais para ser criança, singela e ingênua demais para ser mulher. Seu canto se confundia com o sopro do vento e o coro das gaivotas, abafados pela agitação das águas.

Enquanto isso, Davi, que havia passado horas a fio deitado sobre a areia úmida, com a cabeça apoiada em seu braço direito e o corpo estendido a fim de proteger o castelinho de areia das investidas do mar ou do vento fresco e  litorâneo, contemplando cada detalhe da construção erigida por seu novo amigo Jacó, e criando em sua mente imaginativa histórias envolvendo castelos, reis, rainhas, cavalarias e dragões. Reposicionou  seu corpo sobre a areia que se aquecia cada vez mais, posto que o Sol   já havia passado do centro do céu fazia uma ou duas horas.

Deitado em decúbito lateral, de frente para o mar, de costas para o castelo, seus olhinhos castanhos entreabertos pesavam de sono, fome, sede  e cansaço, mas isso não o impedia de contemplar o mar com um sorriso estampado no rosto, enquanto sentia a água morna e vespertina banhar-lhe o corpo e rosto em suas incontáveis idas e vindas do oceano.

A brisa que refrescava sua pele e bagunçava seus cabelos trazia para o pequeno garoto uma leveza que lhe acalentava corpo e alma.

Pôs-se sentado na areia novamente para que ao mar admirasse melhor. Coluna ereta, pernas dobradas em posição borboleta, até que uma voz rubra a sua direita roubou-lhe a atenção e fascínio, anteriormente voltados para o oceano.Viu de relance a moçoila a cantar e dançar com seu timbre angelical e corpo esguio e elástico coberto com suas vestes coloridas,  a seguir as notas entoadas por sua voz doce, fresca e branca como uma bruma matutina. A menina, ao passo que cantava, bailava à beira do mar, lançou os braços para trás,contorcendo o próprio tronco,  modelando o corpo em formato de ponte, para que suas mãos tocassem a areia umedecida pelas águas e ela pudesse sentir o mar passar por debaixo de seu corpo, enquanto as ondas molhavam-lhe os cabelos. Ao terminar sua magnífica performance , seus olhos encontraram os de Davi, que assistiu a toda a cena maravilhado. Por um instante, ela pôs-se novamente de pé,  voltada para o mar, e lançou seu olhar rubro de jovem cigana vem direção a ele, fitando-o por cima do ombro, através de seu olho desaforo e seu nariz arrebitado. Ele retribuiu o olhar com um sorriso tímido, em contraste com a a áurea exuberante da moça que acabara de conhecer. Ela apenas se virou, mas ela mesma virou os olhinhos. Em seguida, retomou seus passos de dança, como se ninguém a ela assistisse. Mas, de relance, Davi a tudo observava, admirado com tamanha maestria e desenvoltura daquela dançarina que cativara sua atenção. A distância, a jovem bailarina seguia coreografando os sons da natureza que compunham aquela tarde azul, mesmo quando Davi desviou sutilmente o olhar para o Sol, cuja luz de veludo tocou-lhe a pele pueril e acariciou-lhe os cabelos. No canto do cisco do seu olho,  no canto do seu olho, a menina ainda dançava, e dentro da menina de seus olhos, os quais se fechavam com o toque da luz solar, ela ainda dançava. Ainda que seus olhos se fechassem, a menina ainda dançava dentro da menina de seus olhos, bailando no fundo da sua retina até que o Sol anunciasse sua despedida pouco a pouco, pondo-se por trás do ombro daquela jovemcigana, em cujo nome, que traduzia sua beleza e encanto, estava tatuado em seu  ombro esquerdo em delicadas quatro letras:  Rubi.

Eu, Barrabás

 Foi após cear, numa quinta à noite 

Quando contou que seria traído 

 No jardim, sozinho, orou esquecido 

Com um beijo foi entregue ao açoite.


Sexta-feira, humilhado com maldade 

Rosto cuspido, seu corpo rasgado

Sob zombaria fora castigado 

Pagou por toda a minha iniquidade.


Lado a lado, fomos dados à sorte 

 Publicamente entregues pelo Estado 

Clamaram que fosse crucificado 

O homem que tomou pra si meu pecado 

No meu lugar foi entregue à morte.


Após ter todo o sangue derramado,

Na pior das mortes, morte de cruz 

Morreu Jesus o Príncipe da Paz

Em meu lugar, maldito Barrabás

No domingo voltou ressuscitado!

A Enseada. Capítulo II: Areia

 Entre risos, sorrisos e bolas de lama, ambos assistiram  voar o tempo daquela manhã que mal começara.

Após duas ou três horas de brincadeiras, posto que o sol já estava se aproximando do centro do céu e a faixa de areia onde brincavam já não estava mais fofa e úmida como estivera no começo da manhã, assentaram-se perto do mar, onde as gaivotas  vagavam junto às ondas. Posicionaram-se sentados um ao lado do outro, de frente para o mar. O garotinho com cabelo de índio resolveu iniciar o diálogo indagando-lhe qual o seu nome. Ouviu-se, inicialmente, uma tentativa de balbuciar alguma palavra como resposta, de modo que não se entendia se o amigo era tímido ou estava com alguma dificuldade para responder. Ele estendeu o braço e, com o dedo indicador esquerdo, pôs-se a riscar o chão arenoso, chamando a atenção do amigo cutucando-o com o cotovelo assim que concluiu as quatro letras que rabiscara. O outrogaroto entrou na brincadeira e também escreveu seu nome na areia, o qual também continha quatro letras de modo que foi assim que ambos revelaram seus nomes um ao outro.

Inesperadamente, as ondas, que àquela hora já invadiam com força a larga faixa de areia da praia, surgiram de surpresa e derrubaram os garotos na areia, os quais, deitados no chão de braços abertos e às gargalhadas, demonstraram ter adorado a brincadeira. Enquanto as duas crianças divertiam-se, as ondas recuavam, retornando para o oceano. Após descansarem por alguns instantes, os garotos  tornaram a sentar lado a lado, erguendo suas cabeças em direção ao sol  para enxugarem seus rostos e assistindo ao tempo sobrevoar o mar salgado como as gaivotas sobre as ondas. O primeiro levantou-se, e, passando os dedos por entre os cabelos lisos e castanhos, apontou para o mar, desafiando o amigo para uma corrida. O outro, agachado, tornava a escrever na areia, enquanto via o amigo já a distância adentrar o mar correndo e pulando. Não querendo ficar para trás, ele ergueu-se apressado e despreocupado que a água morna e salgada desmanchava o que ali havia sido registrado:

Davi e Jacó, amigos para sempre.

Embora o mar tentasse apagar o que fora escrito minutos atrás, jamais desmancharia o laço eterno que ali surgira.

A Enseada. Capítulo I: Despertar

O vento fresco e preguiçoso arrepiava a costa larga da erma praia à luz da aurora renascente enfeitada pelas nuvens de algodão rosadas que passeavam pelo céu de baunilha. O arrulhar dos pombos e gaivotas que ora brincavam, ora brigavam entre si à procura de alimento ecoava pelo vazio, misto ao coro das águas que forravam a areia morna, macia e úmida. Como as teclas de um piano, as ondas se sobrepunham umas às outras sob o respirar divinal que as conduzia para frente e para trás.

O incessante louvor era ministrado pelas águas que se aqueciam sob o sol nascente, cujas línguas de fogo pousavam suavemente sobre a maré baixa. O sopro quente e invisível agitava os grãos de areia que se dissipavam pelo ar litorâneo dissolvendo-se no azul da aquarela daquela manhã que surgia.

O Silêncio pairava sobre as vagas entreabertas, deleitando-se nas mornas espumas de sal que se formavam e logo se desmanchavam no encontro com a areia fina e esbranquiçada. Num suspiro suave, as ondas tornavam a adentrar o oceano, desnudando a praia em sua quietude, e assim sorrateiramente, num beijo mais demorado, o mar pudesse invadi-la em sua intimidade, amaciando-lhe a areia e refrescando-lhe a costa nua.

Como um casal apaixonado que celebrava as núpcias a cada amanhecer, mar e praia desfrutavam de seu eterno amor. Como uma mão aveludada, os dedos de sal escorregavam pelo tapete arenoso, a encontrar um pequeno castelo de areia.

O muro que protegia as dependências do castelo era dotado de elegante singeleza, bem como a formosidade com a qual as torres foram erguidas. Adornado com pequenas conchas que reforçavam a proteção contra investidas inimigas, o muro alto resistia aos sopros matinais, bem como ao confronto das espumas. Sendo assim, o átrio externo não inundava, deixando a salvo a cavalaria guardada nos estábulos.

Ao passo que a manhã se estabelecia no azul celestial, a faixa de areia se encurtava, e, não fosse o corpo deitado à sua volta, o castelo certamente desmoronaria.

A água morna e agitada não fora suficiente para acordá-lo, posto que se encontrava em sono profundo. O castelo era protegido como um pai a um filho recém-chegado, posto que, adormecido em torno de sua criação, seu corpo formava uma barreira suficientemente eficaz.

A maré, por sua vez, seguia avançando, alagando os entornos do castelo. Enquanto ela subia, num breve respirar, aquele que descansava o rosto na areia aspirou água por seu nariz e boca, acordando assustado em breves espasmos. Seus olhos entreabertos assistiam o mar diluir o muro de seu castelinho, com a ajuda de uma gaivota que buscava alimento entre as conchinhas que o enfeitavam.

Lentamente, o pequeno sentou-se a admirar, de costas para o mar, tal formosa obra de arte, sem se importar se a água arenosa e salgada das ondas remanescentes que vinham de encontro a seu tronco mancharia  sua camisa branca, encharcada e agarrada ao seu corpo franzino, ou  seu casaco azul com a lama que se formara após a invasão da maré ao seu território protegido por ele com tanto zelo. Observava, sentado, a perfeita arquitetura daquele castelo. Enquanto passeava seus olhos castanhos pelos arredores da pequena construção, percebeu que ali, em frente a ele, do outro lado,  um outro garoto o observava, com um sorriso no canto dos lábios.

A criança, que era notadamente um pouco mais velha que ele, modelava caprichosamente as torres do castelo. 

O Sol aquecia a face alva daquele que descansava, secando-lhe os cabelos negros que, cacheados, adornavam-lhe a fronte. Enquanto isso, a mesma luz acariciava o rosto pardo e macio do menino que, sorrindo, enquanto edificava sua majestosa criação, observava-o dormir. Seus cabelos eram lisos e castanhos como de um pequeno indígena. Sua habilidade em modelar a areia ao construir aquele castelo revelava que ele era dotado de admirável criatividade. Enquanto assistia ao outro garoto dormir, percebeu que a água  salgada que inundava o exterior do castelo  dava à  areia um aspecto lamacento. Com  suas mãos em formato de concha, colheu um pouco daquela lama pastosa e resolveu acordar seu pequeno companheiro, atirando em seu rosto a porção de lama.

O garoto dorminhoco acordou de súbito e, ao se deparar com o menino travesso que perturbara seu sono, não titubeou em revidar, atirando nele também um punhado de lama, acertando-lhe a testa.

E riram juntos e brincaram juntos sob aquela refrescante brisa de verão, de modo que a alegria que cada um carregava dentro de si permitia-lhes ouvir um ao outro ao pulsar no eco de seus corações.