Eu, Barrabás

 Foi após cear, numa quinta à noite 

Quando contou que seria traído 

 No jardim, sozinho, orou esquecido 

Com um beijo foi entregue ao açoite.


Sexta-feira, humilhado com maldade 

Rosto cuspido, seu corpo rasgado

Sob zombaria fora castigado 

Pagou por toda a minha iniquidade.


Lado a lado, fomos dados à sorte 

 Publicamente entregues pelo Estado 

Clamaram que fosse crucificado 

O homem que tomou pra si meu pecado 

No meu lugar foi entregue à morte.


Após ter todo o sangue derramado,

Na pior das mortes, morte de cruz 

Morreu Jesus o Príncipe da Paz

Em meu lugar, maldito Barrabás

No domingo voltou ressuscitado!

A Enseada. Capítulo II: Areia

 Entre risos, sorrisos e bolas de lama, ambos assistiram  voar o tempo daquela manhã que mal começara.

Após duas ou três horas de brincadeiras, posto que o sol já estava se aproximando do centro do céu e a faixa de areia onde brincavam já não estava mais fofa e úmida como estivera no começo da manhã, assentaram-se perto do mar, onde as gaivotas  vagavam junto às ondas. Posicionaram-se sentados um ao lado do outro, de frente para o mar. O garotinho com cabelo de índio resolveu iniciar o diálogo indagando-lhe qual o seu nome. Ouviu-se, inicialmente, uma tentativa de balbuciar alguma palavra como resposta, de modo que não se entendia se o amigo era tímido ou estava com alguma dificuldade para responder. Ele estendeu o braço e, com o dedo indicador esquerdo, pôs-se a riscar o chão arenoso, chamando a atenção do amigo cutucando-o com o cotovelo assim que concluiu as quatro letras que rabiscara. O outrogaroto entrou na brincadeira e também escreveu seu nome na areia, o qual também continha quatro letras de modo que foi assim que ambos revelaram seus nomes um ao outro.

Inesperadamente, as ondas, que àquela hora já invadiam com força a larga faixa de areia da praia, surgiram de surpresa e derrubaram os garotos na areia, os quais, deitados no chão de braços abertos e às gargalhadas, demonstraram ter adorado a brincadeira. Enquanto as duas crianças divertiam-se, as ondas recuavam, retornando para o oceano. Após descansarem por alguns instantes, os garotos  tornaram a sentar lado a lado, erguendo suas cabeças em direção ao sol  para enxugarem seus rostos e assistindo ao tempo sobrevoar o mar salgado como as gaivotas sobre as ondas. O primeiro levantou-se, e, passando os dedos por entre os cabelos lisos e castanhos, apontou para o mar, desafiando o amigo para uma corrida. O outro, agachado, tornava a escrever na arei, enquanto via o amigo já a distância adentrar o mar correndo e pulando. Não querendo ficar para trás, ele ergueu-se apressado e despreocupado que a água morna e salgada desmanchava o que ali havia sido registrado:

Davi e Jacó, amigos para sempre.

Embora o mar tentasse apagar o que fora escrito minutos atrás, jamais desmancharia o laço eterno que ali surgira.

A Enseada. Capítulo I: Despertar

O vento fresco e preguiçoso arrepiava a costa larga da erma praia à luz da aurora renascente enfeitada pelas nuvens de algodão rosadas que passeavam pelo céu de baunilha. O arrulhar dos pombos e gaivotas que ora brincavam, ora brigavam entre si à procura de alimento ecoava pelo vazio, misto ao coro das águas que forravam a areia morna, macia e úmida. Como as teclas de um piano, as ondas se sobrepunham umas às outras sob o respirar divinal que as conduzia para frente e para trás.

O incessante louvor era ministrado pelas águas que se aqueciam sob o sol nascente, cujas línguas de fogo pousavam suavemente sobre a maré baixa. O sopro quente e invisível agitava os grãos de areia que se dissipavam pelo ar litorâneo dissolvendo-se no azul da aquarela daquela manhã que surgia.

O Silêncio pairava sobre as vagas entreabertas, deleitando-se nas mornas espumas de sal que se formavam e logo se desmanchavam no encontro com a areia fina e esbranquiçada. Num suspiro suave, as ondas tornavam a adentrar o oceano, desnudando a praia em sua quietude, e assim sorrateiramente, num beijo mais demorado, o mar pudesse invadi-la em sua intimidade, amaciando-lhe a areia e refrescando-lhe a costa nua.

Como um casal apaixonado que celebrava as núpcias a cada amanhecer, mar e praia desfrutavam de seu eterno amor. Como uma mão aveludada, os dedos de sal escorregavam pelo tapete arenoso, a encontrar um pequeno castelo de areia.

O muro que protegia as dependências do castelo era dotado de elegante singeleza, bem como a formosidade com a qual as torres foram erguidas. Adornado com pequenas conchas que reforçavam a proteção contra investidas inimigas, o muro alto resistia aos sopros matinais, bem como ao confronto das espumas. Sendo assim, o átrio externo não inundava, deixando a salvo a cavalaria guardada nos estábulos.

Ao passo que a manhã se estabelecia no azul celestial, a faixa de areia se encurtava, e, não fosse o corpo deitado à sua volta, o castelo certamente desmoronaria.

A água morna e agitada não fora suficiente para acordá-lo, posto que se encontrava em sono profundo. O castelo era protegido como um pai a um filho recém-chegado, posto que, adormecido em torno de sua criação, seu corpo formava uma barreira suficientemente eficaz.

A maré, por sua vez, seguia avançando, alagando os entornos do castelo. Enquanto ela subia, num breve respirar, aquele que descansava o rosto na areia aspirou água por seu nariz e boca, acordando assustado em breves espasmos. Seus olhos entreabertos assistiam o mar diluir o muro de seu castelinho, com a ajuda de uma gaivota que buscava alimento entre as conchinhas que o enfeitavam.

Lentamente, o pequeno sentou-se a admirar, de costas para o mar, tal formosa obra de arte, sem se importar se a água arenosa e salgada das ondas remanescentes que vinham de encontro a seu tronco mancharia  sua camisa branca, encharcada e agarrada ao seu corpo franzino, ou  seu casaco azul com a lama que se formara após a invasão da maré ao seu território protegido por ele com tanto zelo. Observava, sentado, a perfeita arquitetura daquele castelo. Enquanto passeava seus olhos castanhos pelos arredores da pequena construção, percebeu que ali, em frente a ele, do outro lado,  um outro garoto o observava, com um sorriso no canto dos lábios.

A criança, que era notadamente um pouco mais velha que ele, modelava caprichosamente as torres do castelo. 

O Sol aquecia a face alva daquele que descansava, secando-lhe os cabelos negros que, cacheados, adornavam-lhe a fronte. Enquanto isso, a mesma luz acariciava o rosto pardo e macio do menino que, sorrindo, enquanto edificava sua majestosa criação, observava-o dormir. Seus cabelos eram lisos e castanhos como de um pequeno indígena. Sua habilidade em modelar a areia ao construir aquele castelo revelava que ele era dotado de admirável criatividade. Enquanto assistia ao outro garoto dormir, percebeu que a água  salgada que inundava o exterior do castelo  dava à  areia um aspecto lamacento. Com  suas mãos em formato de concha, colheu um pouco daquela lama pastosa e resolveu acordar seu pequeno companheiro, atirando em seu rosto a porção de lama.

O garoto dorminhoco acordou de súbito e, ao se deparar com o menino travesso que perturbara seu sono, não titubeou em revidar, atirando nele também um punhado de lama, acertando-lhe a testa.

E riram juntos e brincaram juntos sob aquela refrescante brisa de verão, de modo que a alegria que cada um carregava dentro de si permitia-lhes ouvir um ao outro ao pulsar no eco de seus corações.


Isquemia


Não precisas me dizer quem devo ser

 com quem devo andar

 Ou para onde eu devo ir

Tua falta de compaixão e de amor me fizeram cair

Ao longe ouço as sirenes ecoarem

Passos e vozes desconhecidos 

A me socorrerem

Meu corpo e espírito não conseguem me manter de pé


Sinto tua escuridão a distância 

Ela me faz desacreditar de mim 

Tuas falsas orações não me impediram  de sucumbir


Tudo o que sou jaz esquecido ao fim daquele dia

Meu amor e o calor da minha fé interrompidos em silêncio 

Pelo romper dessa isquemia 


Tudo aquilo que amei não pode esvanecer

Na crueldade de tua mão fria

Meu amor não irá silenciar ao romper dessa isquemia


Digo a mim mesmo pela última vez 

Que não necessito de tua misericórdia nem tuas verdades vis

Nem me dobrarei de joelhos a ti novamente

Fujo da tua a penumbra, mas ainda há luz no dia

Do teu olhar a cada abraço ou riso não consentido 

Teu julgamento não mais prevalecerá.

Tua escuridão tenta me ofuscar a distância

Eu não necessito do teu perdão

Nem do teu amor ou aprovação


Todo o verdadeiro amor que construí  à luz do dia

Não será ofuscado pela sombra de tua isquemia

Todo o teu ódio e desprezo pelos meus em plena luz do dia

Definharão ao esvanecer dessa isquemia


 Era um domingo de manhã cedo quando eu aguardava na sala mainha retornar do hospital. A noite anterior não fora uma noite de sábado de plantão como as que ela costumava ter no seu cotidiano de enfermeira. Ela passara a noite cuidando de vovô, seu pai, que já estava doente havia uns meses e nos últimos dias toda a família já estava temerosa de que sua partida era iminente. A campainha tocou.Mainha havia chegado. Não abriu a porta porque possivelmente não conseguiu encontrar a chave dentro do caos que era sua bolsa. Abri-lhe a porta e beijei-, lhe a testa entre os olhos marejados e vermelhos que me pediam um abraço. Talvez o abraço que ela não conseguira dar nas últimas horas. Ele se foi, não foi? Perguntei. Sim, seu avô morreu agora de madrugada Disse -me desabando em lágrimas em um novo abraço. Vá dizer aos seus irmãos. Atendi rapidamente o seu pedido e direcionei -me aos quartos deles , não em passos saltitantes como fazia quando vovô me chamava pra ir à feira com ele. Mas fui, de imediato. 

Era treze de fevereiro, mesma data em que começaram as aulas na nova escola em que eu estudaria quando passamos a morar com vovô e vovó após a separação de meus pais.


Levanta, vai tomar banho e comer, que hoje é o primeiro dia de escola e quem vai levar vocês é seu avô. Certamente fora assim que mainha teria me acordado nove anos antes, naquele treze de fevereiro de mil novecentos e noventa e seis, quando, ansioso para conhecer a nova escola, acordei para arrumar minha mochila do ursinho Joel para ser conduzido à escola no Marajó verdinho do vovô. 

Bati à porta do quarto de cada um para cumprir o pedido de mainha, mas,antes que eu dissesse palavra, a voz dela surgiu por trás de mim e anunciou o que ocorrera com a objetividade que pertencia a seu perfil. Meu irmão ficou parado à porta de seu quarto, incrédulo; minha irmã, em lágrimas. Eu ainda não havia apresentado uma reação que esboçasse o que de fato eu estava sentindo. 

Todos os dias ouvia seus passos arrastados pelo corredor em direção à cozinha para aguardar vovó preparar seu café da manhã.cuscuz com galinha e café quentinho preparados pela vovó, alimento o qual ele saboreava sentado na ponta da cadeira, hábito que herdei dele sem perceber. Só não herdei o costume de roer o ossinho da galinha após a refeição . Eu, pequenino, por vezes o encontrava já no corredor, mesmo, geralmente às cinco e meia da manhã, horário em que ele religiosamente levantava. Geralmente, na mesa do café da manhã, mesmo, eu lhe pedia a benção, que me era carinhosamente concedida com sua voz levemente rouca.

Os sábados eram um evento semanal para mim. Era dia de feira. Sempre ganhava um real para comprar o que quisesse. O que eu quisesse, reitero. Geralmente eu escolhia os pirulitos em formato de guarda-chuva, balinhas de iogurte ou caramelos em cubinhos.Como brinde ele sempre me dava purulitos em forma de caju, os quais eu amava receber. E se eu tivesse me comportado durante a semana, ainda ganhava um time de futebol de botão quando passássemos na barraquinha que vendia brinquedos na feira. E na saída não poderia faltar o pastel de queijo com caldo de cana.


Domingo de manhã eu o ouvia cantarolar logo cedo uma música que guardo muito afetuosamente na minha memória de criança católica que fui. Ela dizia “A Tua tenura, Senhor, vem me abraçar, e a Tua bondade infinita me perdoar.Vou ser o teu seguidor e Te dar o meu coração, eu quero sentir o calor de Tuas mãos. E sentindo o calor de suas mãos eu ia com ele à missa todos os domingos pela manhã. Como homem de muita fé e devoto a Deus e a Nossa Senhora que ele foi, não havia como sua partida ser em outro dia que não fosse o domingo. Era tão apegado a Jesus que nasceu à véspera do Natal.

Natal em família era o evento mais esperado do ano. Não apenas por ser Natal, mas por ser aniversário de vovô, e reunir toda a família, filhos e netos para confraternizar e celebrar mais um ano de sua vida. Depois que ele se foi, o natal nunca mais foi o mesmo. É como se o natal tivesse perdido a essência do que a data representava para nós.Ele era nosso pilar, nosso porto seguro, para filhos e netos. 



Chegando ao velório, ao vê-lo deitado em um caixão, desabei em lágrimas, só cessando o choro quando retornei para casa, muitas horas depois. O enterro foi em Riachão do Dantas, cidade onde ele nascera e se criara, bem como onde casou e criou seus filhos.

No trajeto de Aracaju até o cemitério só se ouviam meus soluços no carro, abraçado à minha mãe, como uma criança de colo, apesar de já estar no auge de meus quinze anos. Não sabia que você amava tanto seu avô, disse minha mãe dias depois. Nunca te vi chorar tanto. Naquele dia eu não perdia apenas meu avô. Naquele dia eu perdia meu pai, o homem que mais amei na minha vida inteira , acima de irmãos, tios, e obviamente de meu genitor, que jamais exerceu a função de pai. 

No dia dos pais na escola nova em minha primeira série, realizada em mil e novecentos e noventa e seis, confeccionamos em sala um presente para o papai. Fora uma flanelinha com as iniciais do nome dele. Entreguei -, lhe com bastante alegria, pois ele amava limpar o carro de manhãzinha passando-lhe uma flanelinha e a partir de então ele usaria a flanelinha que EU lhe dei de presente customizada com as iniciais do seu nome. E isso me deixou muito orgulhoso de mim mesmo. Certamente ele gostou, pois eu o vi várias vezes limpar o carro utilizando -a.

Dia de semana à noite ele gostava de sentar à varanda após o jornal para fazer sua leitura diária. Eu amava quando sua leitura era o seu almanaque Abril, pois ele me encantava com seu conhecimento em geografia. Às vezes ele brincava, como quando ele disse que Camarões tem esse nome porque a população de lá só se alimentava de camarão. Eca, pensei, posto que na infância esse não era um alimento que me agradava . Outra vez ele contou que a cidade sergipana de Salgado tem esse nome porque uma vez um caminhão de uma fábrica de sal caiu no meio da rua e resolveram dar o nome de Salgado para a cidade porque o chão dela ficou salgado. Era o tipo de brincadeira que eu levava a sério e contava para os coleguinhas da escola com a justificativa de que eu falava a verdade porque fora o vovô que me ensinou assim , afinal o vovô não mentiria nem jamais me ensinaria algo errado, não é mesmo? Tenho absoluta certeza ainda hoje que não. Ele segue sendo um dos homens mais inteligentes que conheci e meu maior referencial de paternidade, honra, dignidade e fé. Descanse em paz, vô. Descanse em paz, meu pai. Amo-te e amar-te-ei até o dia de nosso reencontro, na eternidade, onde sentirei novamente o calor de suas mãos 

ãos 





Lírico Laço

Dedicado a meu irmão Kevin 

O surgir de tal lírico laço

Forte, indescritível e eterno,

De Um sentimento paternal e fraterno

Lembra a cor natural de teu cabelo


E a nossa união que carrega a fé e o amor como selo


Sustentada na verdade de cada abraço


A Natureza com tamanha inteligência abençoou teu brilho 

Tu és udo aquilo que almejo um dia para um filho,


Tens qualidades quase sobrenaturais 

Mas há um detalhe surreal

Outro de ti não há de haver igual

Nem amarei outrem de mesmo modo jamais 



Salmos 30:5

 No silêncio surdo, sacro e sideral

Entregue a frios lençóis e travesseiros

No covarde aconchego dos cabelos

Ecoa minha voz imaterial.


As paredes emudecem o soluço

De minh'alma entrelaçada em lamento

A vãs lembranças, memórias de um tempo

Insuprível sobre as quais me debruço.


Entretanto, ao findar da madrugada

Que o mar salgado sob meus olhos rega

E o meu peito em desespero se entrega


Tua luz me encontra à aurora de joelhos

Leva-me a brandas águas meus artelhos

Sobre as quais eu caminho na alvorada.