A Pipa

 

Havia abandonado na praia um tronco de árvore, o qual não se bastava a ponto de enfeiar a paisagem, no entanto não era discreto de modo que permanecesse despercebido por quem cruzasse com ele, uma vez que sua casca era grosseira, o que lhe dava uma aparência bastante robusta. Não era possível calcular de forma precisa como ele chegou até ali, dado que não havia árvores naquele entorno, o que seria justificado apenas com a interferência humana.

O modo como o tronco fora parar ali não lhe era nem de longe a verdeira preocupação, mas sim aquilo que o adornava. Armada por varetinhas de madeira caprichosamente encapadas por um fino papel de seda, presa à linha que mantinha atrelada ao tronco estava uma pipa, cuja cauda valsava com o vento, que a ritmava lentamente um passinho para a direita, outro para a esquerda.

O andarilho olhou para os lados e arriscou voltar-se para trás, a fim de se certificar de que ninguém o observava. Ele se encantou por tamanha sutileza, não só pela combinação entre os tons de verde que a coloriam, mas também pelo cheiro suave que ela exalava.

Devagarinho, tirou da cabeça seu chapéu pontudo para que não danificasse a preciosa obra de arte que contemplava, e então aproximou seu nariz junto à seda que compunha a asa da pipa, a qual, como se o compreendesse, inclinou-se, recostando-se ao lado esquerdo de sua face, e, como o beijo de um casal apaixonado, sua cauda enrolou-se a seu braço, acariciando-o.

Era mistério quem a teria colocado ali; em contrapartida, era nítido o seu desejo por ser livre. Deslizou seus dedos pela linha, até encontrar onde estava o nó que fazia dela prisioneira do tronco abandonado.

Desatado o nó, sem hesitar abandonou-a ao vento, para que ela pudesse usufruir da sua liberdade. Duas, três piruetas ao ar abanando o rabinho, a Pipa girou em torno do seu próprio eixo e descansou ao seu lado. Não havia nada que a impedisse de voar, do contrário, a ventania lhe era favorável. Mas ela permaneceu ali.

Afastando-se lentamente, o andarilho acenou, despedindo-se da amiga que libertara. A linha, por sua vez, enroscou-se ao seu pulso e puxou-lhe de súbito, fazendo-o tropeçar em seus próprios pés. Na asa, em meio aos diversos tons, havia dois pequenos losangos  separados simetricamente pela varetinha central, que se assemelhavam a olhos de esmeralda.

A rabiola verde-mar se agitou, a surpreendê-lo provocando um pequeno redemoinho que magicamente tirou seus pés do chão. De olhos entreabertos, sentiu seu coração acelerar em um misto de fascínio e confusão. Mais surpreso que assustado, agarrou-se à rabiola, lançando seu próprio corpo de volta para o chão.

O redemoinho foi-se tornando uma tempestade de areia, que o ascendeu para o alto lentamente, contra a qual ele não tinha forças para lutar. Por mais que agitasse seus pés em direção ao chão, a Pipa resistia ao peso que carregava e o levava ao destino que lhe reservara.

Ele respirou fundo e nesse inspirar encontrou silêncio dentro de si, posto que a elevação a que estava submetido logo lhe trouxe paz, após o breve momento de estranhamento.

Naquele instante, seu espírito encontrou plenitude, e ele se ouviu cantar em uma língua que nem mesmo ele conhecia. Mas sua alma compreendia cada palavra balbuciada com louvor. Nela ecoava uma orquestra ministrada por anjos, cujo coro se manifestava através de sua voz.

Aos seus pés, a areia se dissipava à proporção que a Pipa o conduzia, e de cima ele podia visualizar a corrente de ar desfazendo suas pegadas, uma a uma, até a última, apagando assim da memória da praia os sinais de seu arrebatamento. Até que a tempestade de areia subiu para escoltá-lo, e sua intensidade não lhe permitia mais enxergar o caminho com os olhos naturais.

Decidiu, assim, continuar sua viagem onírica com os olhos da própria fé, mediante a certeza daquilo que se esperava, provando a si aquilo que não se via.


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