O Barquinho

 

Seguia perseverante quase ao horizonte flutuando sobre a enseada um barquinho. Guiado pela brisa oceânica, cortava a água como se nele houvesse um grande marinheiro, que desbravava os mares à procura de grandes aventuras, no entanto era apenas um barquinho de papel.

Ao longe, aquele que caminhava solitário pela praia o acompanhava, tomando-o por guia naquela manhã azul. Se o barquinho titubeava para a esquerda, assim ele o fazia. Se avançava para a direita, era para lá que ele corria.

O vento arrepiava a superfície da água, e a distância se via o barquinho tomar-se de gostosa agitação, tal qual uma embarcação que enfrenta uma forte tempestade. Os pés, que anteriormente se preocupavam em não deixar marcas onde passava, paulatinamente elevavam seu ritmo ao passo que percebiam que a pequena embarcação se distanciava.

E correu, ainda que meio desajeitado e perdendo o equilíbrio, com seu jeito curioso de pisar batendo os pés ao chão, e balançar as mãos ao inclinar seu corpo para frente para pegar impulso. A cada pisada, sentia a água fresquinha respingar em seu rosto. Com as mãos para frente, brincava de tentar capturar a gotinhas que desciam. Experimentou fazê-lo com a língua, abrindo a boca e fechando os olhos para senti-las melhor. Péssima ideia, a água era deveras salgada. Ainda de olhos fechados enquanto corria, inevitavelmente reduziu o passo e esfregou o dorso da mão esquerda nos lábios. Reabrindo os olhos, desacelerou ao calcular que estava suficientemente próximo ao barquinho para não perdê-lo de vista.

Sentiu uma mancha escura correr por debaixo d’água, entre seus pés. Saltitou para o lado, assustado. Observou ao seu redor através da água cristalina e constatou que nada havia ali de ameaçador. Antes que reiniciasse sua caminhada, viu, novamente entre seus pés, uma mancha pontiaguda e triangular que avançava na mesma direção para onde ele seguia.

Tentou, sem sucesso, capturá-la com os pés. Ela era intocável. Tinha apenas forma, mas era impalpável – era uma sombra. Inclinou seu olhar para o céu e viu pousar como pomba sobre seus ombros e alçar voo em seguida. Ainda que voasse, não era ave. Era um avião. Um aviãozinho de papel.

Persistente e sagaz, a sombra do aviãozinho crescia por dentro da água à medida que se levantava ao sol. Abriu os braços e acompanhou o plano de voo, enquanto os pés cortavam as águas que carregavam sem cansar o barquinho de papel. O vento guiava o avião; a água, o barco. A fé, os pés e braço de quem os acompanhava.

Notou-se que o córrego se estreitava, e com ele o barquinho desacelerava. O caminho da enseada foi-se encurtando até que o barco deixou de correr e flutuou lentamente até encontrar uma pedra fincada à areia. A água límpida conservava sua boa aparência, apesar de saber que o tempo a faria desgastar-se até enfim definhar.

Parado diante da pedra, decidiu se tomaria para si o barco ou o desviaria da pedra para que ele reencontrasse seu rumo. Com receio de que ele se desmanchasse, afinal era um barco de papel repousado sobre a água, espalmou suas mãos e cavou cuidadosamente uma porção de areia para que a embarcaçãozinha tivesse sustentaçao.

Cada dobrinha pareceu-lhe ter sido feita com divino capricho, tendo em vista a sua simetria. Os ângulos e as formas que o compunham encantavam pela organização geométrica de sua estrutura, curiosamente resistente e intacta. Decidiu por levá-la consigo, e o fez da maneira mais ingênua e criativa possível. Apertou-lhe um pouquinho nas extremidades, e ele expandiu às laterais. Cuidadosamente, guardou-o sobre sua cabeça, tornando-o um divertido chapéu.

O aviãozinho, enciumado, pousou em seu ombro. Ao recolhê-lo com a ponta dos dedos para não amassá-lo, notou que em sua asa havia em pequenas letrinhas uma escritura que dizia: “Eis o meu filho amado, que me dá muita alegria”. Sua face enrubesceu e seu espírito se encheu de Silêncio.

Olhou para o Sol e, com a mão esquerda, pegou impulso e arremessou o aviãozinho para cima, que cortou o vento rumo ao infinito seguindo o caminho de luz que o conduzia e desapareceu diante dos seus olhos.

Por fim, pegou a pedra em mãos e com a ponta dos dedos rabiscou o nome que daria a ela. Feito isso, deixou-a no mesmo lugar onde a encontrara e tornou à sua caminhada, que dali em diante marcaria suas pegadas na areia fina, quente e fofa.

E foi assim que no meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Fincada à areia, carregava o nome que lhe deram: Ebenézer.

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