As Dunas

 Não se sabe ao certo por quanto tempo ele viajou, mas sugere-se que todo o itinerário fora percorrido durante algumas horas, dada a posição do Sol naquele momento. No olho do furacão de areia que o redemoinho se tornara, a Pipa resistia a todos os obstáculos que enfrentava e o andarilho segurava-se firme a ela, sem se preocupar com a altura em que se encontrava, pois cria que a força da tempestade o impediria de cair, além de confiar na força de tração da linha que o levara até ali.

A garganta marrom que o mantinha em cativeiro rugia e ruminava areia, e por dentro dela o vento uivava. Os pés pendurados balançavam em ziguezague e o corpo girava feito um acrobata em torno de sua corda no ato final de um espetáculo circense.

Pouco a pouco a poeira fina e terrosa dispersava-se, e no céu era possível admirar a Pipa verdinha norteando-se para as dunas, na parte mais alta da região. Paisagem adentro, tudo era areia e sal. O mar era o manto azul que cobria toda aquela costa, sem que houvesse um trecho sequer de mata verdinha que pudesse cobrir sua nudez.

Existiam duas grandes dunas, idênticas entre si, e foi no ponto de encontro entre as duas que a Pipa o repousou e partiu, para que ele mesmo escolhesse para onde iria a partir de então. O andarilho curvou-se para a esquerda e pôs-se a caminhar sobre a areia quente, posto que o Sol acusava que eram meados da tarde. Não bastasse o calor e a inclinação da subida, a caminhada era lenta e homeopática uma vez que seus pés afundavam a cada passo da escalada.

À tardinha, a areia já esfriava, e o céu se alaranjava, alarmando que a noite em breve chegaria. O Sol não mais o castigava, pois se escondera do outro lado das dunas. Tivesse ainda forças, arriscaria o esforço para prestigiar o pôr-do-sol, mas o cansaço não permitia que ele sequer pensasse em tal possibilidade.

A noite chegou e com ela a praia tomou uma coloração fria e cinzenta. Ao menos era mais confortável caminhar sobre as dunas naquele instante. Erguendo sua visão para o alto, viu um ponto de luz no topo e descartou a possibilidade de ser resquícios do pôr-do-sol, já que ele se punha por completo. Como estava bastante próximo, aguardou com paciência até que se aproximasse para verificar o que era aquela luz.

Era uma fogueira. As brasas eram vivas e a chama consistente, mas não parecia ela ter sido acesa recentemente, inexistiam sinais de que alguém por ali tivesse passado nas últimas horas ou até mesmo dias. A fumaça proveniente era esbranquiçada, e destoava com a negritude da noite vazia e escura.

Visto que a única fonte de iluminação era a fogueira, procurou nas proximidades o melhor espaço em que ele pudesse adormecer. As opções não eram diversas, afinal, tratava-se de um lugar desértico, inabitado, desflorestado, reduzido minimamente ao pó. Ataques por animais de hábitos noturnos eram improváveis de acontecer, por isso sua única preocupação seriam as variações de temperatura até que amanhecesse.

Com as mãos em formato de concha, ajuntou uma porção de areia para que lhe servisse de travesseiro e ele pudesse recostar sua cabeça. O frio não era intenso, destarte seu agasalho aliado ao calor da fogueira o manteriam aquecidos. Deitado, olhos ao céu, contemplava a escuridão plena da noite sem lua nem estrelas. A fumaça branca na subida se perdia, a chama ardia, mas não se consumia.  O andarilho, sob o calor do fogo, adormecia.

As nuvens surgiam densas, por todo lado da Terra, como montanhas de gelo suspensas que se derretiam em chuva arrojada. A água fria respingava sobre o corpo do andarilho, que sequer se movia. A fogueira não se intimidava e queimava sem cessar. A terra molhada, cada vez mais viscosa e enlameada, lentamente afundava o corpo daquele que dormia, o qual, por fim, despertou. Trêmulo e assustado, sem assimilar o que estava ocorrendo, levantou com certa dificuldade, pois seus membros e a lama já estavam em estado de simbiose.

Sobrepondo as mãos ao fogo para mantê-las aquecida, temia perder sua única fonte de luz e calor, que felizmente resistia com êxito. Olhou para dentro da fogueira para se certificar de que ela duraria até o amanhecer, mas seus olhos incandesceram, pois poderosa era a sua luz. Repentinamente, a chuva deixou de molhar a ele, à terra e a tudo o que estava no topo daquela duna. E era possível tudo enxergar como se fosse dia, pois a chama brilhava como o sol.

Toda a sua luz se tornou branca, que permitiu que o andarilho enxergasse sem que seus olhos se irritassem. E ele teve a seguinte visão: No coração de uma praia paradisíaca, surgiu um reino que continha um gigante castelo de areia, governado por uma rainha vestida de pérolas. O príncipe, seu filho, era protegido por um lobo branco. O castelo tinha quatro torres, e em cada uma delas habitava um animal guardião, sendo eles um uma águia, um cavalo, um falcão e um guepardo. Em seguida, viu o céu enrubescer, tomado por uma lua de sangue, e todo aquele que olhasse para ela ficaria cego. Por fim, viu o príncipe vestido de branco chorando sobre os escombros do castelo de areia, e à volta, por toda a costa, tartarugas mortas. Após a visão, a luz branca se ofuscou, transformando-se novamente na chama que ardia.

Do fogo, materializou-se uma pomba branca que trazia consigo um punhal de ouro. Saltando em sua direção com as asas abertas, ela lho entregou e se desfez em cinzas. Atemorizado, o andarilho sentiu as mãos e a fronte arder, e tomado por profunda sonolência, caiu em terra, com a arma empunhada e o rosto em pó, até a viração do dia.

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