Desde
que me conheço por gente, sempre desejei ter um melhor amigo. Não sei
exatamente quando essa necessidade começou, ou se realmente posso denominar
isso como uma necessidade. Mas é fato que por toda a minha vida sempre busquei
designar o título de “melhor amigo” a algum vínculo afetivo. E me frustrei em
todas as tentativas, as quais se prolongaram por três longas décadas.
Quando
pequeno, lembro-me de ter tido um coleguinha que identifiquei como meu melhor
amigo. Era com ele que eu preferia brincar, com quem gostava de partilhar meus
brinquedos. Lembro-me de uma vez que trocamos nossos dois bonecos favoritos no
período de um dia. Chegando em casa, a vovó não gostou nem um pouco e a bronca
foi certeira. Quem empresta não presta.
No
decorrer daquele ano, percebi que ele já não fazia mais tanta questão de
brincar comigo, preferindo sempre estar com os demais. Na festa junina da
escola, me vi isolado na mesa enquanto os outros coleguinhas confraternizavam
como se eu simplesmente não existisse. A professora se aproximou e perguntou
por que eu estava ali sozinho. Não soube responder. Na verdade, eu não queria
responder. Era desconfortável ter que explicar, já aos cinco anos, que eu me
sentia desconectado.
A
escolinha oferecia seu ensino até a Alfabetização, e após a formatura do ABC
nunca mais tive contato com nenhum deles. Nova escola, novas amizades. Na
fileira ao lado, na minha 1ª série do Ensino Fundamental I, sentava um
garotinho amarelo do cabelo loiro. Eis ali o novo melhor amigo. Fazíamos
trabalho juntos, tomávamos bronca na sala juntos. Disputávamos, inclusive, o
pódio dos melhores alunos da classe. Fiquei em terceiro. Ele ficou de fora. Mas
me deu um parabéns vigoroso, desses de quem torce por a gente. Encerrado o ano,
tirei-o no Amigo Secreto e dei-lhe a cobiçada maleta preta de lápis de cores,
canetinhas e aquarela que toda criança de seis anos nos anos 90 gostaria de
receber. Recebi do Alfredo um CD do cantor de axé Netinho. Chorei um misto de
decepção e ódio.
Após
o encerramento do Ensino Fundamental I, anteriormente chamado de Ensino
Primário, mudei de escola e perdi contato com o cidadão, reencontrando-o cerca
de dez anos depois, no aniversário de um amigo que fiz no Ensino Médio.
Contente em revê-lo, fui cumprimentá-lo.
Desculpa,
cara. Você estudou comigo? Não lembro. Mas beleza, foi uma satisfação.
Entre
meus oito e nove anos, passei alguns fins de semana na casa de meu primo. Futebol,
videogame, bicicleta. Você é meu melhor amigo. Foi a primeira vez que
verbalizei isso. No sítio do vovô, apesar de vestir camisas de times rivais,
sentíamos em campo que éramos imbatíveis. Era maravilhoso desbravar o sítio,
correr na mata desesperadamente após ouvirmos algum barulho supondo ser uma
raposa, ou então ouvir histórias de lobisomens antes de dormir. No São João as
bombinhas ficavam por sua conta, sempre fui hipersensível a sons intensos.
Preferia as chuvinhas ou os estalinhos. Gostava de assistir também os vulcões.
No quintal de sua casa, a hora preferida era a piscininha que assistíamos
pacientemente encher com a mangueira. Jogos de ação? Amávamos. Jeancley e
Peterson, esses eram nossos nomes de guerra quando vestíamos uma bandana e
empunhávamos nosssas armas de brinquedo para combater nossos inimigos quintal
adentro.
Certa
vez, já adolescentes, encontrei-o no shopping, com seus pais. Quando corri com
brilho nos olhos para abraçá-lo, fui recebido com um aceno seco: Oi.
E
nada mais.
Ele
está tendo um dia ruim, pensei. Meses depois, na festa de Natal, lá estávamos
juntos de novo. Vamos jogar futebol? Não, obrigado. Vou ficar aqui tocando
violão, disse sem sequer me direcionar o olhar. No decorrer da festa ele
apareceu na quadra, mas não fez a mínima questão de trazer de volta a dupla
imbatível dos garotos do sítio.
Na
aurora dos anos dois mil mudei de escola, bem como para o apartamento onde
morei por 16 anos, onde conheci um garoto pouco mais baixo que eu, dois anos
mais novo, que jogava bola como ninguém. Chamavam-no até de Canniggia, em
homenagem ao ídolo do futebol argentino, o qual tinha, assim como ele, cabelos
lisos e loiros.
Estudávamos
na mesma escola, apesar de alocados em blocos diferentes, tendo em vista que eu
iniciava o Ensino Fundamental II e ele ainda estava na 2ª série do Ensino Fundamental
I. Apesar disso, a gente sempre se encontrava. Em pouco tempo, ele mudou de
casa, mas antes que meu coração ficasse de luto, fui informado que aos fins de
semana ele estaria lá na casa dos avós, e que ele continuaria estudando na
mesma escola. Não tardou para que eu passasse a frequentar a casa dele. A avó
dele me adorava, o avô nem tanto. Os pais e tios também gostavam muito de mim,
bem como seus irmãos mais novos. Lá eu me sentia em casa, como se estivesse
entre avós, irmãos, tios e primos.
Na
casa de praia de seus avós, soltávamos pipa o dia inteiro e criávamos histórias
com monstros de areia e praia vulcânica cuja lava devoraria quem pisasse na
água. Criamos personagens cujos nomes eram os nossos nomes reais ao contrário.
Até mesmo a volta para casa se tornava um evento divertido, enquanto
atravessávamos o Rio Sergipe navegando sobre a balsa que levava e trazia
milhares de pessoas todos os dias.
Certa
vez, houve a comemoração junina do condomínio. Fiquei superanimado por conta de
que a presença dele estava confirmada, e assim todo o nosso grupo estaria reunido.
Todos caprichados em sua roupinha xadrez, botas e jeans. As meninas, algumas de
vestido. Já no desenrolar da festa, depois de comermos bastante milho e
bebermos muito refrigerante, avistei-o ao longe adentrar o condomínio com os
pais e irmãos. Vieram caminhando devagarinho até chegarem ao salão. Não o
esperei sentar, levantei-me de onde estava e acenei, chamando-o pelo nome. Ele
desviou a atenção, procurando onde sentar. A mãe cutucou-o, mostrando-lhe que
eu falava com ele, que não deu a mínima. Ela acenou de volta, sem jeito,
comprimindo os lábios e fixando-me o olhar. Reclamou da atitude dele, em
seguida, e ele demonstrou impaciência.
Ambos
estávamos entrando na adolescência. Ele queria crescer, tornar-se um homem. Eu
queria ser criança para sempre. Na festa, eu queria brincar; ele não, pois
brincar é coisa de criança. Fiquei desapontado, e não consegui disfarçar isso.
As demais crianças do condomínio me convidavam para brincar, mas eu só queria
ficar sentado, pensativo, digerindo minha frustração.
Os
anos se passaram e eventos como esse se tornaram rotina. Festa de aniversário?
Ele não comparecia. Jogar futebol? Os colegas do novo condomínio e os garotos
da escola jogavam muito melhor que eu. Videogame? Eu tinha um Super Nintendo,
ele jogava Play Station com os amigos. Comer hambúrguer na lanchonete da frente
após o futebol da tarde e após o banho ficar conversando em roda na
arquibancada do condomínio ao lado? Beber se tornou para ele muito mais
interessante.
Ele
nunca foi seu amigo.
Eu
deveria ter escutado minha mãe.
À
mesma época havia um garoto no condomínio que tinha exatamente a mesma idade
que eu. Cinco meses mais jovem, sendo mais exato. A forma como o conheci foi a
mais inusitada possível. Ele convidou meu irmão para sua festa de aniversário,
mas eu fui no lugar. O nome dele era diferente, a ponto de eu achar que era um
apelido. Foi no aniversário que descobri que era seu nome, realmente.
Nossa,
como vocês se parecem. Branquinhos, cabelo preto, magrinhos, mesma estatura,
mesma idade. E as semelhanças não paravam por aí. Pais separados, apegado a um
irmão mais novo, enfim. E torcíamos para o mesmo time. Realmente éramos muito
parecidos. Éramos um prato cheio para sermos uma dupla de melhores amigos
imbatível.
Nós
tínhamos o mesmo perfil de dominação de território. Gostávamos de liderar as
brincadeiras no condomínio, de inventar novos jogos, criar novas histórias, e
isso criava em nós um clima de disputa vezes saudável, vezes nem tanto.
Brigávamos,
brigávamos bastante. Certa vez sua vó descobriu e nos obrigou a fazermos as
pazes. Vocês são como irmãos, não podem brigar. Bonita frase, mas eu acho que é
justamente porque éramos como irmãos que brigávamos tanto.
Eu
era atacante, ele era goleiro. Se eu fazia o gol, a provocação era certa. Se
ele defendia todos os meus chutes, eu não tinha paz o resto do dia. Em
campeonatos de videogame, concorríamos a lanterna da tabela, que era decidida
geralmente no critério de desempate: quem levava menos gols dos adversários. O
mesmo ocorria em campeonatos de futebol de botão, apesar de eu geralmente levar
vantagem nos confrontos diretos. Se alguma menina novata aparecia no
condomínio, disputávamos a atenção dela,
ainda que nenhum dos dois nunca conseguisse sucesso. Não que esse fosse o nosso
real objetivo, éramos apenas duas crianças. O nosso real objetivo era o prazer
em competir.
Certa
vez mãe, tia e vó tiveram de se mudar para um bairro distante. Foi a partir
dali que passamos a unir mais forças do que medi-las. Passamos a sentir falta
um do outro, até de brigar um com o outro. Os melhores passeios eram sempre
quando íamos para sua casa no interior, embora se durássemos muito tempo juntos
por lá, não perdíamos a ocasião para gerarmos contenda. Bolo quentinho às três
da tarde, videogame e brincadeiras na varanda o dia inteiro. Às vezes futebol
no paralelepípedo para sangrar o dedão.
E
assim crescemos juntos, amadurecemos juntos, até que concluído o Ensino Médio a
vida o convidou para alçar voo, e assim o nosso contato foi diminuindo, nosso
convívio foi deixando de existir, mas um jamais deixou de querer saber do
outro, seja através das redes sociais, seja através das sagradas ligações de
Feliz Aniversário.
No
Ensino Médio mudei de escola e de turno, passando a estudar pela tarde. Até que
não foi difícil me acostumar, tendo em vista que sempre acordei cedo e isso
facilitou minha organização nos estudos. Minha sala tinha poucos alunos, não
mais que vinte ou vinte e cinco. Foi uma experiência nostálgica voltar a
estudar na escola onde concluí o Ensino Fundamental I, a qual guardava
preciosas memórias de minha infância.
Dentre
meus colegas de infância só encontrei uma garota, que logo me reconheceu e de
mim se aproximou. Passado um ou dois meses de aula, vi um jovem de cabelo liso,
alto, olhos verdes e pele de boneca de porcelana, desses que as meninas tomam
como referência de padrão de beleza tocando violão na sala. Ele se encaixaria
nos tais padrões de beleza se não fosse um completo desastrado e ingênuo, cuja
preocupação era ser o melhor aluno da sala, criar jogos de RPG e tocar violão.
Identifiquei-me.
Entre
vozes e violão, fomos os únicos restantes na roda musical e passamos a
conversar sobre jogos, música e desenhos animados. E, de forma discreta, sobre
as meninas e como elas passam a ser muito mais bonitas e interessantes depois
que passamos dos quatorze anos.
Pouco
a pouco tornávamos amigos cada vez mais próximos. Frequentávamos a casa um do
outro, sempre convidávamos um ao outro para sair com os amigos que foram se
tornando amigos em comum, seja para jogar futebol ou ir ao cinema. A propósito,
ele foi o primeiro vínculo afetivo construído na escola a me chamar para o
cinema, e aquilo teve um grande significado para mim, o suficiente para que eu
o alocasse na posição de melhor amigo.
Mas
ele não é seu amigo, avisou mais uma vez minha mãe.
Já
ao Ensino Médio ele entrou em um processo depressivo, que na ocasião eu julgava
ser por conta das pressões que estudantes de terceiro ano colocam sobre si para
que sejam aprovados. Foi quando descobri que eu era um dos responsáveis, por
conta dos meus diálogos por vezes mórbidos, tendo em vista a influência
ultrarromântica e simbolista nas minhas leituras, bem como minha fascinação por
Radiohead.
Você
é um maníaco depressivo.
Ouvi-lo
desabafar essa frase foi um soco na boca do meu estômago. Seguido de todas as
piadas fora de hora ou comentários julgados como desnecessários que, confesso,
sempre tive o hábito de fazer. Eis o motivo, verbalizado por ele mesmo, de
nosso real distanciamento, já às vésperas do vestibular. Aprovados na
Universidade Federal, reatamos os laços, que novamente se fortificaram aos
poucos, até que eu fosse rejeitado na surdina de viajar com nosso grupo de
amigos para o sítio dos seus avós no interior de Alagoas. O motivo era bem
simples e nem um pouco surpreendente: não havia vaga para mim, posto que
haveria um passeio para uma casa de praia alugada por sua então namorada e eu
não era bem-vindo na ocasião.
O
episódio fragilizou novamente nossa amizade, e só se abandonaram as mágoas
depois de informado que ele se mudaria temporariamente para a França. Na
despedida, beijos e abraços fraternos e pedidos de desculpa mútuos, por tudo.
Dali em diante, permanecemos amigos, mas não mais melhores.
No
mesmo ano em que mudei para a escola onde estudei quando criança, conheci um
garoto cabeçudo que jogava basquete na quadra do condomínio ao lado, onde se
localizava boa parte dos meus amigos. Seu apelido combinava o suficiente com
ele para que ninguém o chamasse pelo nome. Três anos mais novo, estudávamos na
mesma escola.
Ao
passo que eu concluía o Ensino Médio, tornamo-nos grandes amigos, o bastante
para dizer que seria uma das histórias de amizade mais legais que já me aconteceram
se não fosse o seu trágico e traumático desfecho.
Fui
tomado por ele como referencial de irmão mais velho. Fazíamos parte do
cotidiano um do outro diretamente, a ponto de eu ensinar-lhe o dever de casa
por um bom tempo. Lembro-me bem do primeiro beijo que ele deu em uma garota, na
arquibancada do condomínio, que provocou grande festa entre nosso grupo de
amigos.
Uma
vez arranjamos namoradinhas no mesmo dia, durante o aniversário de um amigo do
grupo, o baiano. Minha relação durou algumas semanas, a dele se estendeu por
alguns meses, e foi justamente a partir daí que as coisas começaram a desandar.
Havia,
digamos, um sentimento de paz armada entre mim e sua namorada. Ela o queria o
tempo inteiro, toda vez que julgasse necessário. Eu não admitia que ela
manipulasse e brincasse com os sentimentos dele, enquanto mostrava
explicitamente interesse em outros garotos durante o namoro. A bem da verdade
era um namoro sério demais para dois adolescentes de 14 e 13 anos. Eu, aos 17,
bancava o irmão superprotetor que não queria vê-lo sofrer. E era justamente
essa superproteção que levava, mais uma vez, algum vínculo afetivo para o
limbo.
Fui
operado ao completar dezoito anos. Pneumotórax. Todos os meus amigos se fizeram
presentes para me visitar no hospital, exceto ele; havia combinado de ir ao
shopping com a namorada e ela não aceitou que o encontro fosse desmarcado.
Ironicamente, ela foi me visitar, sozinha. O pai a levou. Perguntei por ele,
ela justificou que ele andava ocupado e não poderia vir.
Meses
depois o chamei para conversar e contei coisas que vinham acontecendo nos
bastidores do seu relacionamento sem que ele notasse, por estar envolvido
demais. Apesar de considerar que tomei a decisão correta, visto que o convidei
para lhe mostrar a verdade, foi a pior decisão a ser tomada. Eles terminaram,
semanas depois. Mas nossa amizade terminou também.
Liguei
num dia comum para a casa dele, como de costume. Ele está no banho, hoje ele
vai sair com o pai, disse a mãe dele com voz séria e com ar de desconfiança. Senti
de imediato que havia algo de errado. Mandei mensagem através do MSN, extinto
aplicativo de mensagens. Ele não respondeu. O que está acontecendo? À noite
conversamos. À noite ele foi ao meu condomínio para conversarmos, e era nítido
o desconforto em ele estar ali, logo que chegou. Durante o desenrolar da
conversa, rimos bastante e tudo parecia estar bem. Da janela, a mãe dele nos
viu conversar. Suba agora.
Ao
retornarmos para casa, procurei-o por mensagem. Aconteceu alguma coisa? Eu não
posso te dizer, mas é melhor a gente se afastar. Foram horas de conversa por
MSN e tudo o que obtive como resposta foi um seco e inegociável adeus. A mãe
dele fantasiou que vivíamos às escondidas um relacionamento amoroso. Essa
explicação não foi uma teoria da conspiração formulada por minha mente
criativa, mas foi dada por ele meses depois, quando por acaso nos encontramos
no condomínio e ele achou justo me contar a verdade.
Depois
de digerir toda essa situação, compreendi o quanto esse desfecho foi patético,
ainda que trágico. Foi quando eu entendi que é preciso apenas um pretexto para
que sejamos removidos da vida de alguém, por mais esdrúxulo que ele seja.
Lamento ter entendido, mas nunca aprendido.
Recebi
todo o apoio e suporte para superar o trauma por parte do meu irmão, ou aquele
que eu por anos julguei como tal. Baiano, carismático, líder nato. Magrinho,
cabelo preto, branquinho, tínhamos a mesma altura, pelo menos até que ele desse
o famoso estirão da adolescência e ficasse quase dez centímetros maior que eu.
No
início de tudo tinha eu quatorze anos; ele, onze.
Vocês
são irmãos? Essa foi uma pergunta que ouvimos por anos, e que sempre houve
confirmação, ao menos por minha parte. Não é muito difícil achar semelhanças em
dois garotos brancos, magros e de cabelos pretos, exceto pelos olhos verdes e a
pele sem espinhas, que o colocava facilmente à frente como mais bonito aos
olhos das garotas.
Foi
a primeira amizade que me fez alimentar genuinamente o sentimento de
fraternidade. A propósito, por anos fui odiado por seu irmão caçula em virtude
de crises de ciúmes constantes que ele tinha contra mim.
Ele
é meu irmão, não seu. Repetia incessantemente.
Passar
finais de semana na casa dele era rotina, ainda que morássemos a cinquenta
metros de distância. Salvo a rotina escolar, estávamos sempre unidos. Unidos a
ponto de ser regras, por vezes, que não podíamos ficar no mesmo time em
determinadas competições, por conta de que isso tornava nosso time forte e
imbatível demais. Férias significavam colônia de férias em sua casa e não
demorou que eu conhecesse toda a sua família, desde tios e avós até os primos
mais distantes.
Através
dele passei a frequentar a igreja, onde ouvi falar de um Deus que faz de seus
filhos irmãos em nome de Jesus Cristo. De um Deus que é amor, de uma igreja que
é família. Senti minha vida ser transformada, no meu pensar, sentir, no meu
enxergar o mundo, abrindo mão daquela morbidez que dominava meus pensamentos.
Sua mãe, a quem eu carinhosamente chamava de tia, tornou-se líder do nosso
grupo de teatro evangelístico na igreja e aos meus dezenove anos me converti ao
cristianismo protestante e logo me batizei.
Comemoramos
juntos aprovações no vestibular, aniversários, títulos de campeonatos de
futebol de condomínio, criamos até um time de futebol society. Compartilhamos
dores, amores e dissabores. Beijamos até, por vezes, as mesmas garotas. Até
que, por fim, ele encontrou uma namorada que duraria bons longos anos.
Num
certo momento, os pais deixaram de aprovar o relacionamento deles. Forçaram o
término.
Pouco
depois o pai foi transferido para a Bahia, levando a mãe e o irmão. Não
tardaria que ele também fosse. E não tardou. Os dias dele na cidade estavam
contados, e eu me esforçava para poder aproveitá-lo, apesar de não sentir que havia
reciprocidade. Nunca havia tempo. Nunca havia disponibilidade. Até que o dia de
ele partir para Salvador chegou.
Posso
ir te dar um abraço? Quando eu voltar do shopping com a minha mãe, eu te aviso
e você vem.
Fiquei
ansioso, aguardando esse retorno. Ia e vinha o tempo inteiro à janela do quarto
verificar se eles já estavam em casa, para poder me despedir do meu irmão, do
meu melhor amigo. As luzes acenderam. Esperei o telefone tocar. Minutos,
dezenas de minutos, uma hora.
Oi,
tia. Posso ir aí ver vocês? Pode, meu filho. Ele já está lá embaixo.
Ele
está me esperando, certamente. Desci correndo as escadas, como alguém que está
prestes a perder um avião. Informei ao porteiro que ele me aguardava e entrei
no condomínio. Ele não estava na arquibancada, ou nos bancos da área de
convivência. Não estava no hall do edifício, tampouco na quadra.
Acionei
o elevador. Ele também não estava em casa. Tia suspirou e desceu comigo as
escadas falando várias coisas que eu não conseguia compreender. Caminhamos
diretamente para o carro deles, que se encontrava na garagem.
Saiam
daí agora, disse ela irritada, abrindo a porta do carro.
Ele
estava tendo a última oportunidade de diálogo com a ex-namorada, de quem sou
amigo até os dias atuais. Foram impelidos a sair do veículo após Tia ordenar
que o fizessem. Se eu não estava entendendo algo, naquele momento eu entendia
cada vez menos.
Tia,
o que está acontecendo?
Como
ele sabia que eu viria, ele se escondeu no carro, para que eu não os
encontrasse e pudessem dialogar em paz. Eu só queria um abraço, mas tudo o que
recebi foi a comprovação de que eu jamais estive onde eu gostaria de ter
estado: na condição de irmão, de melhor amigo.
Fui
embora, sem dizer ao menos até logo. Sem despedida, sem beijo ou abraço
fraterno.
Nunca
conversamos a respeito nos últimos dez anos que se seguiram após o
acontecimento, desde sua partida para Salvador. Permanecemos bons amigos,
tivemos uma história suficientemente bonita para superar os acontecimentos.
Mas
não suficientemente sólida para permanecermos na condição de melhores amigos.
No
início da vida adulta, dando aula em um reforço, conheci um jovem adolescente
alvo, tímido e magro.
Vocês
parecem irmãos, ouvi já ao primeiro contato.
O
ambiente profissional seria em tese suficiente para que não surgisse ali um
vínculo de amizade. Não se o profissional em questão tivesse apenas dezenove
anos, com a maturidade de um garoto de quinze. A simpatia pelo jovem foi
crescendo de tal maneira que no ano seguinte fui chamado para ir à praia com os
amigos dele, que mais tarde seriam denominados como meus novos amigos.
Final
de semana seguinte nos reunimos em sua casa para realizarmos a madrugada dos
games. Campeonatos de futebol se tornaram rotina e assim surgia uma amizade.
Quanto a garotas não há muito sobre o que falar. Ele iniciou um namoro com uma
garota aos quatorze anos, a qual se tornaria a sua futura esposa e a
responsável por nossa história estar descrita neste texto de amizades
promissoras que esvaneceram com o tempo.
Muito
em breve o intitulei por irmão. Muito em breve chamei os pais por meus tios.
Muito em breve tomei sua namorada como minha cunhada. Nossa amizade desenrolou
de uma forma incrivelmente natural e avassaladora. É como se tivéssemos
crescido juntos, vivido momentos da infância e adolescência juntos. O nível de
cumplicidade, de lealdade, consideração e afeto eram realmente invejáveis para
todo aquele que desejasse ter uma verdadeira amizade.
Vi-o
formar no Ensino Médio, bem como ser aprovado no vestibular. Sua casa fazia
parte da minha rotina de forma que no ano em que ele foi aprovado na
Universidade Federal passamos o Réveillon juntos, e fiquei em sua casa por dez
dias seguidos, voltando a minha casa apenas para buscar roupa limpa e levar a
roupa suja.
Vai
morar lá, é? Questionou minha mãe em tom de brincadeira.
Choramos
juntos cada conquista. Amadurecemos juntos, vimos um ao outro crescer e toda a
nossa história transparecia um vínculo indestrutível aos olhos de quem quer que
fosse. Em seu casamento, fui padrinho. Lembro-me com detalhes do dia em que o
casal me entregou o convite para exercer papel tão importante na vida deles.
No
dia da cerimônia, chorei como uma criança. Era meu irmão ali. Era meu melhor
amigo. Toda e qualquer pessoa que me conhecesse já ouviu falar nele, ou a ele
foi apresentado. Era aquele em quem eu mais confiava, o amigo que eu mais amava;
verdadeiramente o meu irmão. Era ele a quem eu entregava as chaves de minha
casa e carro quando porventura eu precisasse viajar. Meu coração era aberto a
contar-lhe tudo a meu respeito, como se em sua presença eu fosse um livro
aberto.
O
que está acontecendo, irmão?
Sua
esposa ficou fria e distante comigo. Não direi que foi de repente, mas
aconteceu com o tempo, e eu não sabia explicar o motivo. Quinze anos de
amizade, de vínculo fraternal, não deveria haver barreiras entre nós, deveria?
E foi no dia em que eu realizei meu sonho, a publicação de meu primeiro livro,
que vivemos o nosso último abraço.
Ele
estava tenso. Ela não quis subir ao palco para me parabenizar ou tirar fotos.
Mensagens
não respondidas se tornaram a rotina de um amargo mês de dezembro. Convites
para ir à casa deles já não havia mais. Natal juntos que sempre passávamos, já
não passamos mais. E a cada dia uma mensagem sem resposta.
Não
estou pronta para falar sobre isso no momento.
Até
que o dia chegou. Venha aqui em casa, vamos viajar amanhã, então venha cedo
antes de irmos, avisou ela.
Inconveniente.
Grosseiro. Desnecessário. Falso. Difícil de confiar. Sonso. Cínico.
A
narrativa firme e bem construída socava meu rosto enquanto meu semblante caía e
eu chorava por dentro. Após sua fala, apresentei minha defesa, em vão. Eu já
estava disposta a sair da sua vida, já estava seguindo a minha. Determinei a
ele que você estava proibido de vir aqui, mas agora que você se explicou, pode
aparecer, se quiser. Só não pense que nossa relação será como antes, porque não
vai ser. Pode até um dia voltar a ser, mas acho difícil. Não por agora. Se
quiser ir agora conversar com ele, pode ir.
Não,
não vai ser. Nunca mais. Meu coração estava dilacerado. E não havia mais o que
conversar. Tudo já havia sido dito. Ela explicou tudo em palavras. Ele, em um
mês de silêncio.
Está
consumado.
Não
há um intuito de delimitar anos de longas histórias em oito páginas mal
rabiscadas, seria um pouco injusto. Entretanto, esse texto não é sobre
histórias, é sobre sentimentos. É sobre como por toda a minha vida eu busquei
em amigos a amizade genuína, que deveria ter nascido no berço da paternidade,
que não tive. Assim, o melhor amigo que não tive, o meu pai, foi fragmentado em
relações de amizade que se frustraram como uma casa que se firma sobre a areia,
a qual não suporta a tempestade.
Acontece
que não sei responder se sou casa, tempestade ou areia.
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