Carta suicida



Terra de ninguém, 30 de maio de 2008

Por alguns desprezíveis instantes, a quietude me abraça, preenchendo o vazio avassalador que a meu interior domina. Um sorriso fraco, acanhado, quase morto, imperceptivelmente brota em minha face pálida. Um sorrisinho meia-boca, tão acolhedor e descartável quanto um cigarro. Mas era um sorriso. Confortável. Enganador. Assim... Como uma boa noite de sono. Nada pior que um dia após o outro.

O relógio. Ah, o relógio. Meus olhos céticos, cobertos por minhas pálpebras cansadas o observam. Retiro do bolso uma caneta, e me disponho a escrever esta carta. Sem destino. Apenas um desabafo. Um escarro. Quem sabe uma lágrima. Lágrimas? Eu, mortal frio e calculista, as desconheço. Ao senti-las, todos os sentimentos putrefatos, decompostos em meu subconsciente vêm à tona. Você não sabe o que isso significa, mas isso arde como o inferno. É um cálice que me persegue desde a infância. Sendo mais exato, apenas uma dose dele. De toda essa dor que me molesta.

Minha infância. Ai, minha sofrida infância. Serena, tanto quanto entediante. Quantas vezes eu me pus de joelhos perante a cruz? Perante a dúvida... Todavia, eu devia acreditar. Perdoa-me, pobre mãezinha! Perdoa-me tê-la enganado. Eu tentei. Juro que eu tentei. Era preciso confiar em alguém que me protegesse. Alguém a quem eu me refugiasse. Era uma pobre criança. Inocentemente apavorada. Acredite em mim, imploro beijando seus pezinhos suaves: Eu não consegui!

Por ato de misericórdia, aos dezessete anos a vida me concedeu um pneumotórax. Foi minha última chance de liberdade. Nunca respirei tão bem em toda a minha vida. Naquele mês de agosto do ano de dois mil e sete. Eu podia tocar a Morte. Podia sentir seus olhinhos brilhantes. Todavia minha hora não chegara. Foi só uma doce ilusão. Prefiro confiar no fato de que minha sobrevivência, idem à minha existência, foi um acidente. Mas havia algo a ser dito. O destino se escreve corretamente em linhas tortas. Definitivamente não era minha hora, para o meu infindável desespero.

Agora meu coração palpita doentio. Impassível. Continuo rabiscando com meus dedos epiléticos, num olhar vago e lacrimejante. Lembro-me dos meus amigos. Da minha família. Da minha mãe. Sentirão eles minha falta, ou todos se abraçarão em profundo alívio? Ou, quem sabe, em imenso prazer por minha partida tão repentina? E inválida. Perdoem-me aqueles que a esta carta lerem (ou ouvirem). Não digo por mal, muito menos por rancor. Absolutamente. A angústia grita perante minha tranqüilidade paralítica (tantos pronomes possessivos em um texto de alguém que possui tão pouco). E é ela quem me salvará. Quem me dará a coragem de ser tão covarde e correr ao abraço da mais bela das imortais.

A culpa é sua, mãezinha. Foi a senhora quem me ensinou a entregar-me pelo mundo. Pelo estúpido bem-estar de todos esses vermes famintos. E foi pensando neles que eu me esqueci... De mim mesmo! Inocentemente, aprendi a distribuir um amor vão. A minha mãe. A meus familiares. A meus amigos. A todas as minhas amantes. Um amor tão agradável, do qual nunca recebi átomos de sua reciprocidade. Não que eu vivesse esperando seu retorno. Acho que eu o entreguei demais. Acho que eu me entreguei demais.

Amor é suicídio.

9 comentários:

Gustavo Monteiro disse...

Estou paralisado!
inquietante... vc conseguiu a incrível habilidade de ser profundo e superficial ao mesmo tempo..! Uma reticências! [...]hauahuahuahuaha
mano velho, acho que nosso livro não vai rolar... num tenho nem como competir!
vc eh fodaa!
parabens..!

Dji disse...

a tranquilidade paralítica me salvará, me dará coragem de ser covarde e correr ao abraço da mais bela das imortais.

tá ligado q o principal do suicida está em se tornar feliz ao optar pela morte né? e mtas vezes precisar contar isso ao mundo. daí escreverem cartas.

mas q esse é um suicida com um belo de um vocabulário, ah isso é! ^^

Unknown disse...

Gostei muito, apesar de vc não ter me convidado a ler, mais a Bia me disse..
Mais uma vez, vc soube de seus pensamentos, colocar os sinônimos e antônimos de grandes fatos, que reluzem em sua memória..

Grande expector,,

Anônimo disse...

Muito foda veio! o final foi brutal!!!

Henrique

Unknown disse...

Meu irmao vei! ele nao morreu pow! o fato de ele amar o faz ter essa sensação de morte por entregar a vida sem ser correspondido! eta caraio, ficou muito bom !

Anônimo disse...

Depois dessa não almoço +... o.o
Goethe se sentiria humilhado se lesse isso. ah sim , tomem café depois de lerem isso, reanimar a paralisia é preciso.
tu és picas-master writer!
_o/

Lari disse...

Licença que eu vou ali me matar, ok?!
hauahauahuah

Rafa, mais uma vez, sem comentários para sua arte-habilidade com o manejo exato das palavras.
Parabéns. ^^

Anônimo disse...

Bem legal.!
bem criativo vc.!
Parabéns!

Dimítria E. disse...

Olá!
Quanto tempo hã! OLha, adorei o texto! ^^ eu mesma ando cortando meu lado para contos, sempre quis dizer demais e não conseguia resumir, trabalho em algo maior agora^^.
Bem, seu texto é otimo, vai direto ao ponto ^^ um abraço! Saudades!